Saturday, November 17, 2007

O amor não tem preço, mas a arte tem


Eu não pretendia voltar tão cedo ao tema, mas não resisto.

Uma nota nos jornais de hoje informa que Rindy Sam, uma jovem artista plástica cambojana, foi condenada por desenhar um beijo com batom num quadro do pintor americano Cy Twombly exposto em Avignon, no sudeste da França. Ela vai ter que desembolsar 1.500 euros, além de prestar 100 horas de serviço comunitário. Terá também de pagar um euro simbólico, por perdas e danos, ao artista, que a processou declarando-se horrorizado com a atitude da jovem. Rindy chegou a afirmar que o desenho dos seus lábios melhorou a obra.

Avaliada em 2 milhões de euros, a tela beijada era imaculadamente branca. Em sua defesa, Rindy declarou que o "beijo" foi um ato artístico e um gesto de amor à arte: "Meu beijo foi um testemunho daquele momento, do poder da arte. Cy Twombly tinha deixado aquele branco para mim", declarou. Seus advogados argumentaram que ela foi arrebatada pela emoção diante do quadro, reafirmando que o beijo foi um gesto de amor. Os advogados do dono da tela, o galerista parisiense Yvon Lambert, responderam: "No amor, é necessário o consentimento das duas partes". Também argumentaram que a restauração da pintura vai custar 33.400 euros, valor considerado exorbitante pela Corte francesa.

Agora vamos lá: fiz um passeio virtual pelos sites dos jornais franceses, para ver como o assunto estava sendo tratado. O crítico Demian West escreveu o seguinte:

"O pior é que Rindy Sam foi considerada culpada, quando sua culpa foi ter respondido ao apêlo que o próprio Cy Twombly fez naquela tela, tão branca que exigia uma marca indicial que enfim a animasse de uma vida contingente. (...) É claro que Rindy Sam tem nesse escândalo uma excelente ocasião para conquistar seu lugar ao sol no mundo das artes. (...) Quanto a Twombly, que não era assim tão conhecido na França, agora vai ser." (De fato: na foto abaixo, Rindy aproveita seus 15 minutos de fama, num programa de televisão)



Outro crítico, Jean-Philippe Domecq, foi muito mais radical, denunciando a impostura e a arrogância da tela em branco apresentada como obra de arte (e avaliada em 2 milhões de euros). Domecq é autor do livro Misère de l'art (editora Calmann Lévy, 1999), no qual analisa a produção artística dos últimos 50 anos, segundo ele miserável. Domecq faz menção à peça teatral ART, de Yasmina Réza, sucesso em Nova York e em várias capitais européias nos anos 90 (houve duas montagens brasileiras), sobre três amigos que entram em crise depois que um deles gasta uma fortuna na aquisição de uma tela em branco, justamente. Aliás, outros artistas também pintaram telas em branco, como o meu favorito Yves Klein.

Mas o ponto que me chamou a atenção é: enquanto no Brasil quem ousa debater os rumos da arte contemporânea é sumariamente condenado à fogueira, e críticos de 40 anos atrás (Arthur C. Danto, Clement Greenberg, David Sylvester) são publicados como se fossem grande novidade, na França, aparentemente, existe uma atitude crítica e uma disposição para o debate muito maiores.

2 comments:

Blogildo said...

Curioso! O que me impressiona é que tanto o branco quanto o beijo me parecem inócuos.

Marcos Caiado said...

adoro qdo vc escreve sobre as artes plásticas!