Sunday, February 10, 2008
Estado da arte (3): Do moderno ao pós-moderno
O tempo da invenção passou. Vivemos a época da reiteração, da citação, da reciclagem, da recombinação e da apropriação. Hoje tudo, rigorosamente tudo, é potencialmente validável pelo sistema da arte contemporânea, isto é, reconhecível e vendável como arte - ironicamente, até mesmo a pintura e a escultura.
Perdeu-se a perspectiva histórica. Não se trata mais sequer de negar a tradição, nem de contestá-la, mas de ignorá-la: todos os movimentos artísticos do passado só interessam hoje pelo repertório de ingredientes que fornecem para a análise combinatória pós-moderna. Mas, para entender as implicações deste novo cenário, é preciso, justamente, interpretá-lo historicamente.
À medida que avançamos no século 21, ficam mais claras as diferenças entre dois modelos ou projetos: o moderno e o pós-moderno. Por exemplo, se pensarmos nos últimos cem anos, é mais ou menos fácil identificar uma série de características comuns aos movimentos artísticos que eclodiram entre o cubismo, nos primeiros anos do século 20 - o Cubismo, por sua vez, derivou de Cézanne, que derivou dos Impressionistas, que derivaram de Manet etc, mas vamos estabelecer o Cubismo como ponto de partida, por uma razão metodológica - até as últimas vanguardas, nos anos 60 e 70; e outra série de traços típicos da produção artística do período que começou no final dos anos 70, e no qual ainda vivemos.
A, por assim dizer, "aventura moderna" durou mais ou menos 70 anos. O pós-moderno já está trintão. Paradoxalmente, a produção artística do período 1980-2000 parece mais envelhecida e datada que a de qualquer artista ou movimento moderno. Este é o preço que a arte pós-moderna (ou pós-estética, ou contemporânea) paga pela sua capitulação total a uma lógica de obsolescência acelerada, ditada pelo mercado especulativo e justificada no plano teórico pela tese do fim da História da arte. Que artista dos últimos 30 anos tem a dimensão e a importância de um Picasso, de um Matisse - ou mesmo de um Marcel Duchamp?
Todos os "ismos" modernos, mesmo os mais questionáveis - como o realismo socialista da Rússia soviética - formularam programas e manifestos que traduziam uma ambição transformadoras e emancipadora. Todos engendraram pesquisas radicais, que tinham por trás de si um norte, uma fundamentação e uma convicção, em suma, tinham metas - em nome das quais muitas vezes se caía na intolerância, é verdade. Cada movimento tinha a pretensão de superar o predecente, como portador de uma verdade absoluta.
Para o bem e para o mal, essa pretensão foi abandonada. A inovação, a transgressão e a subversão são valores superados. Assumiram o seu lugar uma experimentação fria e tediosa, o comentário irônico do mundo, a afirmação da própria impotência da arte em transformá-lo. As obras de Picasso continuam gritando cada vez que olhamos para elas - cito Picasso como um representante emblemático do impulso transformador do Modernismo, mas poderia citar dezenas de outros artistas, por exemplo, Modigliani, Kandinsky, Marc Chagall, Egon Schiele, até mesmo Jackson Pollock. Em contrapartida, a quase-totalidade produção artística dos anos 80 e 90 já não diz mais nada, se calou, ficou muda, se dissipou numa atmosfera de tédio burocrático, sem peso.
(Isso se torna ainda mais evidente quando essa produção é assimilada pelos museus: no espaço institucional, sobressai a esterilidade e a inofensividade da produção artística contemporânea, ainda mais se comparada às obras modernas expostas nos mesmos museus; com raras exceções, as obras contemporâneas parecem envergonhadas de estar ali. Mas isso tem a ver com outra distorção: obras por natureza perecíveis ou fugazes, como as instalações e happenings, foram inicialmente concebidas para rejeitar e mercantilização e os espaços institucionais - mas foram reapropriadas pelo mercado e pelos museus, com o consentimento dos artistas, começando com o próprio urinol de Duchamp!).
Aqui é preciso tomar um partido, Para mim, este grito e este silêncio representam a negação de uma idéia pós-estruturalista, fundadora do sistema da arte atual, isto é, a de que toda arte é uma fabricação cultural, uma ficção, de que não existe perfeição estética e, a rigor, de que não existe arte tal como ela era entendida e hierarquizada. O fato de sabermos hoje que o gosto é culturalmente determinado não elimina a experiência estética que temos diante de uma grande obra, não justifica a nivelação por baixo, a relativização de todos os valores, a redução da arte a um efêmero e sempre renovável produto comercial de elite.
Somente uma arte que acredita em si mesma pode gerar algo novo e relevante, algo rico e inventivo, algo conseqüente. Assim, para citar apenas dois exemplos, o vigor do Dadaísmo lançou a sementes do ready-made, da poesia fonética, das colagens, das performances e dos happenings; o Cubismo abriu o caminho para a consciência da superfície plana da tela, para pesquisa sobre a autonomização das cores e das formas geométricas, ou sobre a especificidade dos materiais e suportes.
Quantos terrenos de investigação não foram abertos e explorados pela convicção do artista no potencial transformador de sua arte, por meio da sistematização de problemáticas e questionamentos? Isso para não falar da crítica ambiciosa que acompanhou aquela arte ambiciosa: que crítico tem hoje a pretensão de um Clement Greenberg, de quem ainda hoje se lêem com proveito textos escritos há 50 ou mesmo 70 anos - por exemplo, seu ensaio Vanguarda e Kitsch, de 1939 (!) levanta questões de impressionante atualidade - mas sobre as quais hoje não interessa a ninguém refletir.
No projeto moderno, a arte tinha uma solidez cultural, política e social que se desmanchou no ar da pós-modernidade. Arte e sociedade se complementavam, mesmo quando se desafiavam mutuamente. Hoje, apesar de pacificadas pelo mercado, não acrescentam nada uma à outra.
Na ilustração, uma obra de Vanessa Beecroft, artista italiana contemporânea.
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment