Monday, January 28, 2008

Arte e instituição: a revolução conservadora

Tudo o que venho escrevendo aqui aponta para algumas hipóteses sobre a arte contemporânea (não sobre as obras de arte em si, nem sobre artistas isoladamente, mas sobre o conjunto de práticas e discursos que determinam o estado da arte hoje, isto é, a estrutura simbólica dentro da qual os artistas produzem e difundem suas obras, goste ou não eu delas).

Primeira hipótese: a arte contemporânea promoveu uma revolução conservadora, se comparada às práticas artísticas do período moderno - do começo do século 20, com as vanguardas européias, até meados dos anos 70, quando, por uma série de fatores, os valores e princípos do Modernismo perderam força e começaram a ser substituídos por um novo paradigma, pós-moderno. Conservadora não no sentido político estrito, já que diversas manifestações artísticas têm a pretensão de um conteúdo "de esquerda", mas sim por reverter processos emancipatórios que a arte moderna deflagrou.

A idéia de que a produção contemporânea é “radical” ou “revolucionária” não resiste a qualquer exame sério. Por exemplo: parece inegável que após décadas de um movimento em que a arte confrontava as instituições, nos últimos 20 ou 30 anos verificou-se uma reinstitucionalização clara da atividade artística. Mesmo aquelas práticas que por princípio eram opostas às idéias de museu, coleção e mercado – happenings, instalações, obras deliberadamente efêmeras (tanto nos conceitos quanto nos materiais) – foram apropriadas pelas instituições e pelo mercado.

(Entenda-se por “mercado” não somente o conjunto de negociações financeiras nos estabelecimentos comerciais, leilões e galerias, mas também o conjunto de espaços, institucionais e não-comerciais, como museus e centros culturais, por onde a obra de arte circula e adquire valor. Mesmo que não haja comércio propriamente dito nestes locais, processa-se aí uma troca simbólica de valores que constitui o fundamento do sistema mercantilista. Ver, a essa respeito, A economia das trocas simbólicas, de Pierre Bourdieu)

Nesse processo foram enquadradas e domesticadas práticas que vinham desde o Dadaísmo, e que eram chamadas de site-specific, incluindo a land-art, os earthworks, algumas obras radicais da arte conceituale do minimalismo etc. Todos estes movimentos ou categorias procuraram, de alguma forma, incorporar o local à obra de arte, adicionando-lhe novos significados a partir de dados externos, isto é, que que não pertenciam intrinsecamente à obra.

Outro movimento em que houve um retrocesso evidente foi o de questionamento da noção de "autor" - paralelo às teses de Roland Barthes e Michel Foucault, que demonstraram a constituição histórica da própria idéia de autoria. O pós-modernismo reverteu todas as tentativas de dissociar a criação artística de manifestação de uma individualidade iluminada: hoje o artista ocupa mais do que nunca a posição de pop star, mesmo que seu trabalho se limite à assinatura de objetos prontos ou de imagens alheias.

Nesse papel, o artista sabe que precisa atrair atenção: emite opiniões sobre qualquer assunto, faz gracinhas, adota um comportamento exótico ou supostamente desafiador em relação às convenções sociais, defende o uso de drogas, protesta contra o que considera censura, freqüenta as colunas sociais etc. Um dos resultados, paradoxalmente, é o distanciamento total do público em relação à obra de arte em si: o artista passa a ter interesse como personagem, seja de publicações in, seja da revista Caras, e não pelo que produz.

Segunda hipótese: esse processo de institucionalização da arte contemporânea leva ao declínio do senso crítico e ao nivelamento com base no mercado, estreitando as brechas para qualquer tipo de contestação. Num cenário onde não existe mais um ponto fixo a partir do qual se possa analisar a obra de arte, o papel do aparato crítico e historiográfico se limita ao registro flácido e ao testemunho neutro: o próprio estabelecimento do significado de uma obra é variável, pois depende de dados externos a ela, dificultando muito a missão do crítico.

Terceira hipótese: essa aliança com o mercado e as instituições afeta todas as etapas da produção artística contemporânea. Há uma redistribuição de poderes entre o artista, o curador, o público, o galerista, o marchand. Na imprensa e na academia, a crítica, por sua vez, acuada pelas pressões desses agentes, se limita a uma descrição não comprometida de forma e conteúdo, que não coloca em questão os postulados e o contexto da criação, nem os critérios de qualificação ou desqualificação desta ou daquela tendência.


Mas, voltando a questão da institucionalização: um exemplo eloqüente é o famoso urinol de Marcel Duchamp. Concebido em 1917 como anti-arte, como uma provocação, como um objeto para não ser exposto – pois foi recusado até pela exposição em Nova York que tinha como critério não recusar nenhuma obra, exposição da qual o próprio Duchamp era um dos curadores - nem muito menos comercializado, o urinol original desapareceu pouco depois de ser fotografado popr Alfred Sieglitz. Em 1968, traindo o espírito de sua própria criação, Marcel Duchamp “produziu” e "assinou" oito réplicas do ready-made, que foram compradas por diversos museus e colecionadores – que, desta forma, enquadraram numa lógica institucional e mercadológica uma obra produzida contra esta mesma lógica.

O mesmo processo vitimou diversos objetos dadaístas, hoje comportadamente expostos, para o deleite de turistas apressados,em museus que viraram centros de entretenimento. Da mesma forma, foram esvaziados e enquadrados a politização da idéia de lugar no caso do site-specific e o caráter sublime da natureza no caso da land art, além da "especificidade de lugar" das instalações e happenings.

O resultado disso é que, ao ser exposta, a obra de arte contemporânea traz sempre uma incompletude, um componente de falsidade. Se ela foi concebida para se relacionar com algo que lhe é externo, algo passageiro e circunstancial, ao se submeter às salas conservadoreas dos museus ou às quatro paredes do “cubo branco” da galeria, a obra se mutila, torna-se apenas uma sombra ou um resíduo do original.


Neste sentido, foi notavelmente coerente a argumentação de Richard Serra no caso de sua obra Tilted Arc, instalada numa praça pública, o que gerou diversos protestos, por atrapalhar a circulação, quebrar a harmonia da paisageme tc. O governo local determinou que a obra foi retirada da praça, mas o ponto aqui não é defender ou não a permanência da obra no local – voltarei a esse assunto em outro post, pois é um episódio bem revelador das relações entre o poder público e o privado -, mas dar razão a Serra quando ele afirmou que “remover a obra é destruir a obra”.

Da mesma forma, expor o urinol de Duchamp num museu ou comercializá-lo é destruí-lo no que ele tem de relevante: é estabelecer com o urinol uma relação fetichista, negando o que ele continha de deboche, contestação e revolta, e que era sua própria razão de ser. Da mesma forma, comprar por milhões de dólares um muro grafitado por Banksy e removê-lo de seu local para uma institruição é destruir a obra de Banksy. Mas pouca gente parece se dar conta disso: só se fala nas cifras, que é o que interessa à mídia e ao mercado.

A grande pergunta é: existe alguma forma de o artista e sua obra driblarem esses mecanismos de apropriação e institucionalização?

Quarta hipótese: até o projeto moderno, uma obra de arte era autônoma em relação à sua exposição, isto é, uma pintura de Matisse ou Picasso, mesmo que jamais fosse exposta, continuaria sendo uma obra de arte. Ou seja, o local onde a obra era exposta não interferia diretamente no seu significado e no seu valor. Ora, o mesmo não se dá com a arte contemporânea, na qual o objeto artístico não pode mais existir sem sua exposição. Uma estante de vidro e metal com pílulas coloridas de Damien Hirst só se torna obra de arte quando é designada como tal pelo sistema da arte, exposta e comercializada por um preço exorbitante: antes disso será apenas uma estante de metal etc.

Assim, se antes os museus e galerias vinham a reboque da obra de arte, isso é, se a exposição era uma conseqüência ou um reconhecimento do seu valor artístico, hoje os museus e galerias determinam não apenas o valor artístico e financeiro da obra, mas sua própria existência enquanto arte. Pois não se trata mais de obras com qualidades intrínsecas, mas sim de uma obra que, ao ser designada como tal pelo sistema da arte, ganha valor com essa designação. O local e o tipo da exposição, seu curador, sua presença na mídia etc modificam a obra e lhe atribuem status, sendo que determinadas galeria e museus imprimem à obra mais valor que outros museus e galerias, e assim por diante, numa deformação mercadológica da idéia do site specific.

Ou seja, a pós-modernidade estabelece novos mecanismos valorativos e consagratórios: hoje não existe mais oposição entre obra boa e obra ruim (uma e outra podendo ou não ser expostas), mas entre obra (exposta e reconhecida pelo sistema) e não-obra (não exposta, por maiores que sejam sua qualidades intrínsecas). É o velho mecanismo de distinção (também analisado por Bourdieu) inflado ao extremo, a ponto de se tornar o centro do sistema: o valor e a própria realidade da arte são artificialmente constituídos.

Neste sentido, o contexto, que inicialmente não fazia diretamente parte da obra de arte, passou a integrá-la como parte de um projeto moderno de integração entre arte e vida e, na pós-moderndiade, passou a determinar, como contexto mercadológico, a própria existência da obra, a tal ponto que hoje, literalmente, qualquer coisa pode ser designada como arte.

O preço disso é o rompimento de um acordo tácito entre o sistema da arte e a sociedade sobre o que é ou deve ser a arte. O sistema se desliga assim da realidade e passa a operar num plano abstrato, virtual, puramente especulativo, sem qualquer lastro. A obra circula entre a instituição e o mercado, num vaivém infinito, ou melhor: a instituição é absorvida pelo mercado, na medida em que perde sua autoridade de legitimação autônoma da arte, desprendida de seu valor de troca.

No sistema da arte contemporânea, o artista e sua obra ocupam o degrau mais baixo: subordinam-se às instituições, e estas se subordinam ao mercado. Os mecanismos de validação da arte já não se distinguem dos mecanismos através dos quais o mercado opera. Do papel ativo nas utopias artísticas revolucionárias dos anos 60 e 70, que questionavam o papel do mercado e das instituições, o artista passou ao papel de escravo do sistema mercadológico, de poderes irrestritos.

Trata-se aqui de expor os mecanismos que definem e constituem as estratégias de validação doa artista e sua obra, por meio de sua circulação nas instituições públicas e privadas. Em suma, investigar qual é a agenda do sistema da arte - secreta talvez até para os artistas, que muitas vezes ignoram para quem estão trabalhando, que valores estão reforçando etc etc. A quem esta investigação pode incomodar?

Não tenho a pretensão de fazer aqui um balanço completo da produção artística contemporânea, portanto não se estranhe a ausência deste ou daquele nome, do Brasil ou do exterior. Artistas e obras só são citados na medida em que ilustram determinadas hipóteses que tenho apresentado. Tampouco pretendo atacar a arte contemporânea como um todo – o que facilitaria as coisas para quem se sentir afetado.

Minha intenção é refletir e levantar questões sobre a dinâmica de funcionamento do sistema da arte, sobre as estruturas materiais e simbólicas dentro das quais o artista produz e difunde sua obra. Aliás respeito e admiro diversos artistas, com diferentes propostas. Mas isso não muda o fato de que eles têm que lidar com processos, em curso, de comercialização e trivialização da arte, que tem sido reduzida à condição de uma mercadoria a mais no mercado global.

Da mesma forma que seria ingênuo negar a arte cotnemporânea em bloco, parece ingênuo aceitá-la acriticamente. Na ausência de debate, é o que acontece: a arte é ignorada (pela maioria das pessoas) ou aprovada de forma incondicional. O problema é que os argumentos de quem está dentro do sistema são muito frágeis. Por exemplo, alega-se
que, ao longo de toda a História da Arte, o novo foi rejeitado por não ser familiar, o que é verdade; mas inferir daí que tudo que é estranho é bom e inovador é um sofisma.

A mensagem implícita é que a arte que produzem está acima do alcance da compreensão das pessoas – arrogância reforçada pelo esoterismo dos textos acadêmicos. Contribui-se assim, conscientemente ou não, para a continuidade de um sistema que se baseia na discriminação, na exclusão de qualquer pensamento dissidente. Reforçam-se as estruturas de poder estabelecidas.

O medo do questionamento trai insegurança, é claro: no fundo os artistas contemporâneos sabem que a imensa maioria das pessoas não está convencida de que o que eles fazem é arte. Fecham-se então na sua tribo, onde se reconhecem reciprocamente e são reconhecidos pelo demais agentes do sistema. Ergue-se uma parede que impede a comunicação com a sociedade, que está preocupada com outras coisas, e que em geral entende a arte de outra maneira. A arte se exclui deliberadamente do debate intelectual. A arte se exclui deliberadamente do debate intelectual.

O fato é que, para a maioria das pessoas, a produção artística contemporânea não inspira nem emociona, não desafia, não contesta, não modifica nem derruba fronteiras, não altera a compreensão do mundo, não torna a vida culturalmente mais rica. É, em suma, uma arte inofensiva, cujo comportamento é dirigido pelo mercado (como as “tendências” da indústria da moda), e cujo sucesso é medido pela publicidade a mídia e pelas altas nas cotações. Considerações monetárias prevalecem sobre valores estéticos, aliás considerados irrelevantes pelos próprios críticos.

Conhecimento de causa, qualquer tipo de idealismo, sem falar em esperiência, técnica, seriedade e discernimento, por não serem qualidades com valor de mercado, são esvaziadas. A dedicação, o estudo, a pesquisa lenta e paciente deixaram de ser recompensadores, tanto para o artista quanto para o público.

4 comments:

Daniel said...

Oi Luciano,

tudo bem?

Bem, primeiro eu gostaria de dizer q voce esta de parabens por seu site.

Ele é excelente, e suas consideracoes, sejam elas breves, ou ainda em forma de artigo mesmo, sao muito boas!

Se voce me permite, eu gostaria de dar-lhe uma sugestao acerca do tema da institucionalizacao da arte.

Existe uma corrente imensa da filosofia da arte que acaba caindo no Danto (ja citado por voce), porem cujas vertentes nao se resumem nas ideias deste.

Possivelmente voce ja conhece, mas acredito q o George Dickie possa lhe ser muito interessante, pois sua ideia é exatamente a da arte como um objeto institucional (apesar que tenho q admitir nao o conhece-lo de verdade). Mas eu ja li alguns comentarios sobre suas ideias, e por isso acredito q elas vao na mesma direcao q as suas expostas aqui.

Apesar dele seguir, em principio, a mesma tradicao do Danto, ele nao é "niilista" como este. Pois, se eu entendo o Danto corretamente, ele busca eliminar a possibilidade de definicao da arte atraves de um comum argumento da tradicao filosofica analitica pos-wittgensteiniana, a saber, q a arte possui uma abertura conceitual muito forte, impedindo a definicao forte tambem, e assim as "artes", dentro de sua pluralidade de midias, estilos e objetos, se assemelham somente por uma semelhanca de familia, e, por isso, a "Arte" é algo q nao existe, mas somente objetos artisticos (um tipo de argumento muito comum q vem do Nominalismo de Witt).

Eu tambem possuo alguns pensamentos acerca da arte, e se vc me permitir, eu gostaria de colocar aqui depois, a fim de iniciar um dialogo (algo q tem faltado em muito atualmente acerca da arte).

Mais uma vez, parabens por seu otimo trabalho aqui. Sempre espero seus novos comentarios!

Daniel
Um grande abraco!

Cardo said...

Em primeiro lugar, me junto aos demais nos elogios pelo excelente espaço, que pode atender a uma demanda por reflexão crítica, que desde já elejo (?) como resposta para a sua grande pergunta, ou seja , é o melhor caminho para driblar a apropriação e a institucionalização. O seu artigo é muito extenso e se torna difícil analisa-lo sem falar muito. Em linhas gerais, concordo com a segunda hipótese, de que os mecanismos de institucionalização levam ao declínio do senso crítico e ao nivelamento, mas discordo da primeira, pois entendo que falta ao argumento do conservadorismo da arte contemporanea, uma análise mais histórica do mercado, que hoje não é o mesmo das primeiras décadas do século passado, sndo muito mais aperfeiçoado no que se refere à apropriações culturais e contra-culturais. A luta hoje é mais desigual, até porque nos faltam aliados e capacidade de articulação. Cada vez mais somos segmentados, especializados ( resisto a tentação de falar em autônomos) e portanto, sem capacidade de crítica. Também concordo que a partir do final dos anos 7o este processo de apropriação pelo mercado teve maior impulso, mas não sei se isto é um paradigma da contemporaneidade, tenho dúvidas, pela heterogeneidade desta última. Por fim, mas sem finalizar, também tenho dúvidas sobre o que seria um valor e uma realidade da arte não- artificialmente construídos. Um grande abraço.

Pedro Leonardo Magalhães said...

Oi Luciano,

fiquei em duvida sobre uma questão que você abordou no final do seu texto.

"Considerações monetárias prevalecem sobre valores estéticos"

eu sou um mero estudante de artes da UFPI, estou começando agora. Não me leve a mal, mas quando faz essa afirmação eu me lembro de muitas situações historicas.

você sabe que na arte da antiga roma e no antigo egito a arte tambem era sujeita a algum poder! e isso, vejo que se repete hj com a influencia de outro poder, o monetário. Antes na roma, com o poder dos imperados e no egito com o poder da religião local. Alias, toda a arte medieval até o barroco eram sujeitas a poderes. Igreja, Reis...

sempre existiu algo por tras da arte, um poder q o moldava... e quer saber se ela é diferente da arte de agora.

vejo como a mesma coisa, ou até melhor. oq temos aqui?

um grande abraço

Leonardo Climaco said...

Exelente texto e blog!...parabens pelo livro "a grande feira"...já estou correndo atras do meu!.
Abraços
Leonardo Climaco