Friday, November 30, 2007

Mais Gullar sobre arte


Achei outra entrevista interessante do Ferreira Gullar, que saiu publicada no Jornal de Brasília. Vale a pena ler.

É importante lembrar que Oiticica e Ferreira Gullar participaram juntos da criação do Neoconcretismo, no final dos anos 50. Em 1959, Gullar escreveu o Manifesto Neoconcreto, que influenciou decisivamente o desenvolvimento da obra de Oiticica. Em seguida, Gullar formulou sua Teoria do Não-objeto, a partir da observação do processo criativo de Lygia Clark.

Na foto, Helio Oiticica sambando com Rose da Mangueira.

Jornal de Brasília - No que consiste e o que induziu a esta situação de mistificação no território das artes?
Ferreira Gullar - A questão é que as tendências mais radicais da arte contemporânea levaram a uma destruição das linguagens artísticas. Por falta de coragem, não se faz a crítica deste processo, no momento em que as propostas radicais da vanguarda chegaram a um ponto de exaustão, chegaram a um ponto onde não tem mais nada a ver com a arte.

J.B. - Como isto se torna possível?
Gullar - Por um lado existe uma crítica omissa, conivente e conveniente por outro lado existem instituições que, de alguma maneira, dependem desta situação para sobreviver. Você tem o exemplo de uma exposição de renome internacional como a Bienal de Kassel, que teve como curador um sujeito que declarou que não sabia mais o que era a arte. Ele selecionou os nomes dos artistas. Claro que não é possível definir cientificamente o que é arte. Mas se uma pessoa não sabe o que é arte não tem condições de organizar uma Bienal.

J.B. - Qual o alcance da crítica que dirige a Marcel Duchamp? Até que ponto nega Duchamp? Ele não ampliou o repertório, os materiais e os limites da arte?
Gullar - É preciso colocar as coisas em seu devido lugar. Eu não nego a importância de Marcel Duchamp. Mas ele é apenas um dos ampliaram o campo da arte para as novas formas como objeto. O caminho que ruptura com as formas tradicionais já havia sido aberto pelos dadaístas. E o próprio caminho que Duchamp segue é uma conseqüência de papier collé cubista. A utilização da estopa, areia e prego nos quadros cubistas já prenuncia o abandono da tela e a incorporação do objeto como matéria da arte. Duchamp não nasceu do nada. A diferença está entre o que Duchamp fez no tempo dele e no que se quer fazer hoje.

J.B. - Em que sentido?
Gullar - Quando Duchamp enviou um urinol a um salão estava realizando um gesto de alto inconformismo e denunciando uma série de imposições que envolviam a arte naquele momento. O urinol não é obra de arte. Quando ele fez isto o seu gesto era rebeldia, mas hoje seria puro conformismo. As instituições já assimilaram este gesto. Esta atitude de denúncia e de arte sem linguagem já se exauriu. Em Duchamp esta atitude era significativa de uma postura ética. Mas por outro lado contribui para a destruição da obra de arte. Duchamp sacrificou a sua obra em razão desta atitude ética. A obra de Duchamp é datada.

J.B. - Em entrevista, você afirmou que Lygia Clark e Hélio Oiticica eram excessivamente cerebrais. Mas a busca dos dois não era precisamente do sensorial?
Gullar - O Hélio era um cara de um indiscutível talento e que levou ao ponto extremo as experiências do neo-concretismo do qual eu era o teórico. E digo mesmo que houve uma influência recíproca dos artistas plásticos sobre a minha poesia e da minha poesia sobre os artistas plásticos. O meu Poema Enterrado influenciou os trabalhos de Hélio. Então eu não estou falando de fora. Nós pegamos a linguagem concreta e altamente intelectualizada e colocamos uma nova substância nela. A Lygia tem uma trajetória de uma enorme coerência, desde o momento em que os quadros delas incorporaram a moldura como espaço de expressão até a série Bichos, inovadora e verdadeira. Mas, ao invés de aprofundar o desenvolvimento desta linguagem, ela resolveu seguir adiante, destruindo a própria linguagem. Quando coloca sacos de papel na parede ou fios de nylon na boca, reduz a experiência estética a algo meramente sensorial. Acaba com a dimensão reflexiva e espiritual da obra de arte. E consequentemente o homem se torna um bicho. E agora respondo a sua pergunta: o excesso de intelectualismo levou ao puro sensorial.

J.B. - Mas você faria esta mesma avaliação do trabalho de Hélio Oiticica?
Gullar - O último trabalho que vi do Hélio era uma instalação no Hotel Meridien. Era um espaço com água e pedrinhas. Você tinha de retirar o sapato para sentir a água e as pedra. Olha só aonde leva este cerebralismo: a idéia de recriar a natureza dentro de um hotel. Francamente, se é para sentir a natureza acho melhor ir para Mauá. E, ao invés de colocar as implicações deste tipo de atitude, a crítica fica louvando. Quem criticar isto é careta ou reacionário. Outro dia eu tive uma discussão com uma amiga minha e ela citou Andy Warhol que dizia que uma atitude podia ser uma obra de arte. Mas quem é Andy Warhol? É o papa? É deus? Ele era um artista interessante que se rendeu ao comercialismo. Como teórico para mim era um babaca.

J.B. - Não haveria, por exemplo, sintonia entre os parangolés de Hélio Oiticica e os mantos de Arthur Bispo do Rosário?
Gullar - Não tem nada a ver. Os parangolés surgiram a partir do momento em que Hélio Oiticica passou a freqüentar a escola de samba da Mangueira. É algo muito pobre se você comparar com a roupa de uma porta-bandeira, colorida, barroca, popular. É uma arte que remonta ao século 17. Aí o Hélio botava a roupa em um passista e pedia ara o cara rodar e falava que isto ele estabelecia uma relação da forma com o espaço e a luz. É pura teoria. Qualquer objeto rodando mantém uma relação com o espaço e a luz.

J.B. - Mas a incorporação que o Bispo faz dos objetos não evoca a procedimentos da arte moderna?
Gullar - O Bispo é exatamente o contrário da arte moderna. Em seu delírio, ele quer salvar os objetos do mundo. Ele começou a desfiar o próprio uniforme de interno para bordar um manto sagrado. A sua busca é busca do sagrado. Não tem nada a ver com a sofisticação vazia da arte moderna. Só um louco se entrega totalmente a esta missão de salvar os objetos do mundo. É uma loucura que imprime esta força interior aos objetos do Bispo. A arte moderna é de decadência, de cerebralismo, de sofisticação exaurida. O que a arte precisa é de paixão e não de cerebralismo. No contexto pretensioso desta arte moderna todos se acham gênios. O Leonardo da Vinci, quando pediram a ele uma escultura, realizou um estudo reunindo todos os escultores que admirava no passado. Hoje o sujeito enrola três tijolos com arame, manda para a Bienal e diz que é arte. Na Bienal de Veneza, eles aceitaram um açougueiro que tinha cortado uns pedaços de tubarão. Agora não é mais necessário aprendizagem artística. Nas bienais nós temos açougueiros, marceneiros, eletricistas, cineastas. Li que Almodóvar expôs na Bienal de Veneza. Eu queria perguntar a ele se para ser cineasta não é preciso aprender a linguagem do cinema.

J.B. - E, agora, que perspectivas vê para a arte diante do mundo?
Gullar - Acho que o que a arte tem de fazer é parar de falar sobre ela mesma e começar a falar do mundo. Nós temos 40 mil anos de arte falando do mundo e dos problemas do homem no mundo. A arte de voltar a falar da vida.

Sol LeWitt, Helio Oiticica e mais reflexões sobre a arte contemporânea



A história da arte após a Segunda Guerra é a história da ruptura com os suportes tradicionais. No limite desse processo, artistas conceptuais rejeitaram a própria realização material da obra de arte, apresentando em seu lugar idéias e projetos ainda em esboço, acrescentando muitas vezes orientações precisas para o público. Desmaterializada, a arte se aproximou assim de questões filosóficas e semiológicas.

O artista Sol LeWitt, aliás falecido este ano, confirma: "Em arte conceitual, a idéia ou conceito é o aspecto mais importante da obra. Quando um artista usa uma forma conceitual de arte, significa que todo o planejamento e decisões são tomadas antecipadamente, sendo a execução um assunto secundário. A idéia torna-se na máquina que origina a arte".

LeWitt vai além: “Uma vez que a arte é um veículo de transmissão de idéias através da forma, a reprodução apenas reforça este conceito. É a idéia que está sendo reproduzida". Em outras palavras, a arte conceitual dá ao projeto artístico o status de arte, conferindo ao conceito original a mesma importãncia de sua realização material.

Artistas conceituais recorreram com freqüência ao uso de fotos, mapas e textos prontos, como verbetes de dicionário (ver meu post sobre Joseph Kosuth). Em algumas criações de Lawrence Weiner, por exemplo, a obra se limitava a um conjunto de instruções escritas que a descreviam, sem que ela se realizasse concretamente. Isso refletia a recusa de alguns artistas de serem assimilados por um sistema que reforçava a idéia tradicional da arte, ligada aos museus e galerias.

Este mesmo espírito de resistência animou os happennings - termo cunhado em 1959 por Allan Krapow para descrever manifestações que aconteciam fora dos museus e galerias, geralmente em espaços abertos, envolvendo imprevisisibilidade e participação do público, e aproximando as artes plásticas das artes cênicas.

O ponto relevante aqui é a recusa dos artistas de serem assimilados pelo "sistema da da arte". Esta atitude política era um elemento importante do movimento. Ora, esse espírito contestador deixou de existir, ou só existe hoje na retórica, como a transgressão só sobreviveu na retórica. Na verdade ninguém contesta mais o sistema, ao contrário: o que se busca hoje, como na Paris pré-Impressionista, é o reconhecimento oficial dos salões, é entrar nos circuitos estabelecidos, é vender. Obras "transgressoras" são feitas sob encomenda e saem diretamente do estúdio do artista para espaços nobres dos museus e galerias.

Daí a distorção citada pelo crítico Robert Hughes: se o que importa no fundo é o comércio, o valor de um artista passa a ser medido pelo número de vezes que aparece na mídia, ou pelo preço que suas obras alcançam. Além disso, o mercado passa a depender de novidades artificialmente lançadas a cada temporada, para alimentar a lógica do sistema.

(Parêntesis: No seu momento, Sol LeWitt, como muitos outros artistas já citados neste blog, teve uma importância capital na história da arte do século XX. Um texto seu, Paragraphs on Conceptual Art, uma lista de 35 frases publicada em 1969, influenciou toda uma geração de artistas conceituais e minimalistas. Não estou, portanto, nem de longe falando mal dele, como não falei mal de nenhum outro artista. Minha abordagem desse tema, desde o primeiro post, não é de crítico de arte, que não sou nem pretendo ser, mas de alguém que tem um interesse intelectual na reflexão sobre a arte, sua história, seus aspectos sociológicos, econômicos, simbólicos).

Agora vejam só que interessante: o principal artista brasileiro ligado a esse movimento todo de renovação e desconstrução dos anos 50 aos 70 é, seguramente, Helio Oiticica. Sabem o que Helio Oiticica disse da arte conceitual? Disse isso:

Detesto arte conceitual, nada tenho a ver com arte conceitual. Pelo contrário, meu trabalho é algo concreto, como tal. (...) Para mim o conceito é uma etapa, como o sensorial, o ambiental, etc. que no fundo são conceitos também; o que acho ruim é quando o conceito é tratado como objeto-fim artístico, é que passa a ser redundante, fechando-se em si mesmo (...) eu quando faço um projeto é para ser construído mesmo; não me satisfaz o reconhecimento da possibilidade do mesmo".

Ou seja, ele bate de frente com o princípio básico do movimento, citado lá no alto. Alguém ousaria desqualificar Oiticica por ter dito isso? Claro que não. Para gostar de um é preciso desqualificar o outro? Também não. O que venho tentando sugerir é o seguinte: embora tenham existido outros movimentos após a arte conceitual (como o hiperrealismo), são os princípios desta corrente que continuam prevalecendo: mais de 40 anos depois da emergência da arte conceitual, a arte continua voltada para o próprio umbigo, discutindo conceitos e dicotomias de si própria: realidade x representação, idéia x forma, suporte x superfície. Dentro deste espectro, não há o que já não tenha sido discutido, só resta a repetição - e a repetição descontextualizada, dissociada dos fatores que lhe deram origem. Aí ou o sujeito produz uma coisa anódina, ou se agarra a uma nostalgia da transgressão - é nesta hora que surgem artistas se mutilando ou matando cachorros de fome.

As imagens deste post são de obras de Sol LeWitt e Helio Oiticica, respectivamente.

Museu da transgressão

Tentei mudar de assunto, mas chegou agora um texto do próximo livro do ARS, e como é complementar a algumas idéias já postadas aqui, destaquei os trechos diretamente relacionados à arte.

MUSEU DA TRANSGRESSÃO
Affonso Romano de Sant'Anna

Um dos princípios da arte moderna é a transgressão. Transgredir tornou-se o primeiro e, em alguns casos, o único mandamento da modernidade. No princípio, quando derivava da necessidade de sair do aprisionamento do sistema clássico, a transgressão estética era árdua e sujeita à penalidades.

Mas um dia a transgressão virou norma. Como assinalou o poeta e crítico
Eduardo Sanguinetti, que foi vanguardista do "Grupo 1963", na Itália, esse movimento de transgressão teve dois momentos no século passado: o heróico e o cínico. O primeiro consistiu na luta pelo poder, o segundo na manutenção paradoxal desse poder.

Sim, a transgressão virou norma. Qualquer artista iniciante começa por transgredir. Ainda não sabe as regras, mas já as renega. E cria-se uma situação absurda. Transgredir o quê, se antes dele, no passado recente, só havia transgressores? Transgredir a transgressão? Ora, isto, a rigor, leva a um paradoxo, pois a única maneira de transgredir radicalmente a transgressão é contestar a transgressão, reinstalar uma certa ordem e refazer o sistema.

Mas se alguém contesta a transgressão é logo taxado de conservador, de reacionário e retrógrado . Como sair dessa armadilha da modernidade? Passamos tanto tempo achando que o transgredir nos instalava na modernidade, que receamos repensar a transgressão temendo com isto ser expulsos da modernidade. (...)

Na arte exacerbou-se o princípio da transgressão já exposto no futurismo, dadaismo e outros movimentos. A arte saiu de vez dos museus, espalhou-se em instalações pela natureza. O teatro foi para a rua, para qualquer lugar configurando happenings e performances. Até o lixo virou arte de luxo. Tudo passou a ser música: John Cage enche de espectadores um prédio em Nova York para ouvir um concerto vivo de buzinas e barulhos de carros que passam pela avenida. Disjecta membra: fragmentação, cadáveres expostos, sangue, esperma e fezes viram obra de arte na bienais e galerias, e o cinema se compraz em catástrofes cada vez maiores, como contraparte estética à tragédia cotidiana. No palco expõe-se o corpo nu, e exibem-se cruamente relações eróticas nos meios de comunicação. (...)

No princípio da modernidade os artistas diziam como Mário de Andrade: "Eu insulto o burguês!" . Mas paradoxal e ironicamente os burgueses contornaram, domesticaram e deliciaram-se com os insultos, com as transgressões. Compraram os quadros, foram aos concertos e construiram museus fabulosos para armazenar os impropérios éticos e estéticos.

A transgressão virou peça de museu. A universidade já absorveu, cum laurea, Sade e Masoch, através de Foucault, Barthes e Bataille. Hoje a transgressão está de tal modo catalogada, que pode-se escrever a história da transgressão. E pior: visitar o Museu da Transgressão.

Thursday, November 29, 2007

Arte à venda na Glória

Caro Blog Plural,... ainda não mude de assunto!
Seria possível ultrapassar a soberania do mercado de arte contemporânea e
escrever algo sobre o nosso projétil ARTE À VENDA que lançamos todos os sáb
e dom em plena Glória no Rio de Janeiro???... é arte contemporânea!
Guto Macedo

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Exatamente: é arte contemporânea. Que medo!

Retórica dos bons sentimentos

Luiz Fernando Veríssimo é muito bom quando escreve textos de humor, mas é melhor ainda nos textos sérios. A segunda parte de sua coluna de hoje é genial - embora as conclusões que se podem tirar de sua leitura sejam várias, e muito diferentes. Eu tirei as minhas, mas vou guardar para mim: já chegam as polêmicas sobre as drogas e a arte contemporânea, por ora.

Segue o texto em questão:

Há um sentimento generalizado, mesmo que não seja dito, que a maior parte da população do mundo é lixo. Excrescência irrecuperável, condenada a jamais ser outra coisa. Esta não é certamente uma constatação nova e nem qualquer utopista ultrapassado chegou a pensar que o contrário era completamente viável. A novidade é que hoje se admite pensar o mundo a partir dela. Já se pode dormir com ela. A ordem econômica mundial está baseada na inevitabilidade de a maior parte do planeta ser habitada por lixo irreciclável. Ser "politicamente correto" hoje é dizer o que ninguém mais realmente pensa - sobre raças, sobre os pobres, sobre consciência e compaixão - para não parecer insensível, mas com o entendimento tácito der que só se está preservando uma convenção, que a retórica dos bons sentimentos finalmente substituiu totalmente os bons sentimentos. É a intuição destes novos tempos sem remorso que move o entusiasmo crescente do público com a truculência policial na nossa guerra do dia a dia. Nem tem sentido discutir se as vítimas mereceram ou não. Não existe lixo inocente ou culpado. O que está no lixo é lixo. Demasia. Excesso. Excrescência.

Entr'acte, de René Clair



Francis Picabia, Erik Satie, René Clair, Marcel Duchamp, Man Ray e Jean Borlin se uniram em 1924 para realizar este curta-metragem surrealista, que explora diferentes recursos da linguagem cinematográfica. O filme era exibido no intervalo do balé Relâche, de Picabia e Satie. Do balé só restaram fotos, mas o filme está aí, intacto.

Sinopse: Clair intercala planos agressivos e ângulos inusitados de uma bailarina barbuda, de um funeral em ritmo frenético, balões infláveis soltos no ar, de Man Ray e Marcel Duchamp jogando xadrez, para "contar" a história da perseguição de um artista que, no final, faz desaparecer todos os personagens, inclusive ele próprio.

Marcel Duchamp e o xadrez


O debate sobre arte contemporânea no qual inadvertidamente me meti pode ter deixado em alguns a impressão de que não gosto de Marcel Duchamp. Ao contrário, se falo dele tantas vezes é porque reconheço sua importância capital na arte do século XX. Duchamp quebrou barreiras e abriu portas, e neste sentido foi genial. Ao mesmo tempo, concordo com o crítico Robert Hughes quando ele diz que a influência de Duchamp sobre a arte contemporânea foi liberadora, mas também catastrófica, pelos motivos já expostos.


Tenho outra razão para gostar de Duchamp: ele foi um excelente jogador de xadrez. Na verdade, numa determinada altura da vida, passou a se interessar mais pelo xadrez que pela arte: de 1924 a 1933, ele participou de diversos torneios internacionais, como as Olimpíadas de Xadrez, e em 1925 esteve perto de se tornar campeão nacional francês. Além disso, disputou partidas com grandes mestres da época, como Lilienthal, Marshall e Znosko-Borovsky.


Duchamp também aparece jogando xadrez com o fotógrafo Man Ray no filme Entr'acte, de René Clair, um clássico do cinema de vanguarda francês dos anos 20. Man Ray, outro aficionado, é responsável pelo design das peças da foto acima, aliás.


Quem tiver interesse pode estudar on line as partidas de Duchamp no site www.chessgames.com, clicando diretamente aqui: http://www.chessgames.com/perl/chessplayer?pid=36967

Abaixo, uma bela partida, em notação algébrica, que mostra o estilo "dadaísta" de Duchamp no tablueiro:

White "Jan Kleczynski"
Black "Marcel Duchamp"
Paris, 1924
1. e4 Nf6 2. e5 Nd5 3. c4 Nb6 4. d4 d6 5. exd6 exd6 6. Nc3 Be7
7. Be3 O-O 8. Bd3 N8d7 9. Nf3 Nf6 10. Qc2 h6 11. O-O-O Be6
12. b3 a5 13. d5 Bd7 14. Bxb6 cxb6 15. a4 Rc8 16. Kb1 Kh8
17. h3 Ne8 18. Nd4 Nc7 19. f4 Bf6 20. Nf5 Be8 21. Ne4 Nxd5
22. Nfxd6 Ne3 23. Qe2 Nxd1 24. Rxd1 Rc6 25. Bc2 Qe7 26. Qh5
Bd7 27. g4 g6 28. Qxh6+ Kg8 29. Nxf6+ Qxf6 30. Ne4 Qe7 31. g5
Bf5 32. Nf6+ Rxf6 33. gxf6 Qxf6 34. Bxf5 Qxf5+ 35. Kb2 Re8
36. Rd2 Qf6+ 37. Kc2 Re3 38. Qg5 Qc3+ 39. Kd1 Qa1+ 0-1

Por fim, no vídeo abaixo, um interessante depoimento do artista, que inclui imagens suas diante do tabuleiro:

Mudando de assunto


Leio que telescópio espacial Spitzer, da Nasa, captou imagens da estrela mais jovem encontrada até agora: a UX Tau, parecida com o Sol, tem apenas um milhão de anos - uma estrela-bebê - e está a cerca de 450 anos-luz da Terra. Os cientistas encontraram uma brecha circular no disco de gás e poeira cósmica que gira em torno da estrela, o que pode indicar a formação de um ou mais planetas.


Vi a foto da estrela e me lembrei do poema Pulsar, de Augusto de Campos. O que mostra que este é um blog plural, que tem espaço tanto para Ferreira Gullar quanto para a poesia concreta. O poema, de 1975, ganhou uma versão musical de Caetano Veloso, que pode ser vista/ouvida no vídeo abaixo.

A arte contemporânea segundo Ferreira Gullar


Recapitulando:

Duas semanas atrás, a revista Isto É publicou uma matéria do repórter Ivan Claudio sobre duas exposições, na qual ele ouvia as artistas e o crítico Ferreira Gullar. A partir das declarações dos três, escrevi, inicialmente, alguns posts neste blog, e em seguida, um artigo publicado na Folha de S.Paulo. Recebi uma tonelada de mensagens, tanto entusiasmadas quanto enfurecidas, tanto de artistas quanto de gente comum. A Folha já abriu espaço para três réplicas, as duas últimas bastante ralas. Enviei um novo artigo ao jornal, mas não sei quando vai sair. Enquanto isso, usei este blog como espaço para desenvolver o tema e expor algumas manifestações que chegaram sobre o debate. Quem quiser recuperar tudo desde o início deve procurar no arquivo deste blog o post Será arte?

Como, de certa forma, o Gullar foi o pivô da polêmica, e como ninguém é obrigado a saber o que ele pensa sobre arte, acho interessante publicar um trecho de uma entrevista sua. Isso não significa que concordo integralmente com suas idéias: concordo com bastante coisa, mas não acho que seja o caso de condenar a arte conceitual em bloco - apesar de alguns terem atribuído a mim esta generalização (mas respeito quem a faz, como o crítico Robert Hughes - ver post abaixo). Por exemplo, admiro diversas obras de dois artistas que o Gullar cita na entrevista, Cildo Meireles (sobretudo a sua produção dos anos 70, associada a uma contestação severa da ditadura militar; aliás, o fato de no Brasil a arte conceitual ter coincidido com a ditadura fez com que aqui ele fosse menos auto-referente do que em outros países, e até do que é hoje aqui mesmo)e Jac Leiner (sobretudo seus primeiros trabalhos). Aliás, tenho até uma gravura do Cildo na parece do meu escritório.

Ou seja, não tenho o compromisso de gostar nem desgostar de ninguém, só não suporto a burrice e a intolerância. As pessoas precisam parar de formar igrejinhas, de enxergar as coisas em preto e branco - e de achar que quem pensa diferente está automaticamente errado, o que é uma atitude autoritária de quem está desacostumado ao debate. O mais irritante é ser criticado pelo que não escrevi, ou, pior ainda, por intenções que não tive e, por causa de uma leitura torta, atribuíram a mim. É gente que tem preguiça ou medo de refletir criticamente sobre as coisas.

Ilustrando este post, Projeto Coca-Cola (1970), de Cildo Meireles. Ele gravou em garrafas de refrigerantes informações e opiniões críticas, devolvendo-as à circulação. A tinta branca só aparece em contraste com a cor escura da coca-cola, quando a garrafa está cheia. Intervenção da melhor qualidade.

Segue a entevista do Gullar:


O senhor diz que a arte tem que emocionar, caso contrário não é ar­te. No entanto, hoje em dia as pes­soas teorizam tanto a arte...
Existe uma tese da arte conceitual, da arte feita só por idéias. Isso não tem cabimento. Para refletir, preciso ler filosofia, não vou me ocupar do estilo de pintar do Cildo Meirelles para fazer isso. Ele é um excelente pintor, mas por que ele não pinta em vez de fazer o que está fazendo? Co­loca escrito na obra "Urinóis – cocô artificial com planta natural". É para pensarmos sobre isso? O que vamos pensar sobre cocôs e plantas artifi­ciais? Isso é muito pobre. Se ele fi­zesse os guaches que fazia antes, se comunicaria e transmitiria coisas que as pessoas poderiam sentir por meio da arte. Estive agora em Paris e fui ao Museu de Arte Moderna. Só vale pelo acervo de obras realizadas até a dé­cada de 40. Depois disso, nada vale a pena. O museu está vazio, ninguém vai lá. Tinha até uma exposição da Yoko Ono, que só faz besteira tam­bém, mas mesmo assim estava vazio. Só está lá porque ficou famosa de­pois que casou (com o ex-beatle John Lennon). É inacreditável ver os dire­tores do museu convidando esse tipo de gente para expor. O resultado dis­so é que ninguém vai lá ver a exposição. Já o Louvre recebe multi­dões de pessoas, assim como o Mu­seu Picasso.

E quanto aos críticos que escre­vem páginas e páginas sobre essa ar­te conceitual? As vezes, ao terminar­mos de ler uma dessas críticas, nos sentimos péssimos, pois não enten­demos nada.
Nem eles entendem, porque não há o que dizer sobre isso. A Jac Lemer fez uma exposição no Rio de Janeiro com umas maletas de viagem e teve um crítico que citou Heiddeger e Marx para apresentar a exposição. Não tem nada a ver com nada. É um texto indecifrável que, na verdade, não significa nada. O crítico não tem o que dizer e fica inventando. Vai di­zer o quê? Que as maletas estão bem arrumadas no espaço? Realmente não há o que dizer, pois ela nem fez as ma­letas, as comprou prontas. A rigor, não pode haver crítica sobre essa bes­teirada. O difícil é explicar como isso se mantém há décadas. A Bienal de Veneza acabou de ser inaugurada com as mesmas bobagens. Antes de ser aberta ao público, um cara mandou uma proposta de instalação que é um absurdo, e foi obedecida pela direção do evento. A idéia propunha a criação de um muro que fechava a entrada do pavilhão espanhol. Para que a entrada fosse permitida, seria necessária a apresentação do passaporte espa­nhol. Ou seja, ninguém conseguia en­trar. E o incrível é que a Bienal topou isso! Na verdade, o artista estava era fazendo uma grande gozação com a Bienal, gozando a instituição. Essas pessoas são niilistas. Destruíram a ar­te, são pessoas que não têm o que fa­zer na vida e, com razão, gozam uma instituição que quer instituir algo que não existe. Essa instituição tanto vive um impasse que aceita a sugestão de um cara que manda fechar a porta da sua própria exposição. Afinal, se ne­gasse o pedido, ela não seria uma ins­tituição de vanguarda, seria conserva­dora. e como é de vanguarda tem que dizer sim. Só que isso acaba com ela. O que acontece então? Acontece que a Bienal praticamente não tem mais expressão alguma. É moribunda, está se autodestruindo. Aceitar esse tipo de coisa é autodestruição. (...) A última Bienal foi um fracasso. Todos os vídeos eram chatérrimos e cheios de boba­gens. Em Paris, assisti recentemente a um vídeo que só mostrava um cara berrando sem parar. Interna esse ca­ra! Vídeo bom é aquele que narra al­guma coisa.

A arte contemporânea segundo Arnaldo Jabor


Trecho de uma coluna do Arnaldo Jabor (Arte e pensamento estão num beco sem saída, 3/5/2005). Na ilustração, uma obra de Demian Hirst, intitulada The physical impossibility of death in the mind of someone living:

Na arte, então, tudo ficou também um bode negro. A destruição que vemos na vida, o império da sordidez mercantil, a ignorância no poder, o fanatismo do terror, a boçalidade da indústria cultural, a destruição ambiental, em suma, toda a tempestade de bosta que nos ronda está muito além de qualquer “denúncia” artística; o mal é tão profundo que denunciá-lo mecanicamente destruindo a própria arte como uma “prova do crime” acaba virando quase uma cumplicidade.

Sobrou para os artistas uma atitude geral masoquista, se mutilando na body art , se furando, querendo recuperar uma importância que tiveram nos tempos do modernismo, nem que seja pela destruição de si mesmos, para evitar o terrível sentimento de que talvez a arte tenha virado mesmo a mera produção de objetos descartáveis, desnecessários. Aceitar o efêmero da arte é vivido como a aceitação da morte. Aceitar apenas a produção de objetos vendáveis para as salas da burguesia é a derrota consumada. A morte da “aura” da arte está mais difícil de aceitar do que se pensava. Assim, o artista se vê como um profeta abandonado, e ele mesmo passou a usar a luz da “aura”, passou a ter “aura”, como um halo, como uma coroa de espinhos para sua solidão. O artista quer virar a obra de arte. E tudo faz para esquecer seu abandono, mesmo que seja expor seus excrementos numa latinha na Bienal de Veneza.

Caiu-me nas mãos uma revista velha com entrevista de Brad Holland, um ensaísta sacana e brilhante. Ele fala da arte de hoje e, de tabela, refere-se ao beco sem saída a que me refiro desde o início deste artigo-cabeça. Diz ele: “Duchamp fez uma obra-prima que foi um urinol. E chegou no fim da vida jogando xadrez como se fosse um objeto artístico. Meu avô também, acabou num urinol, jogando xadrez.(...) Tanto o dadaísmo como o surrealismo estão superados. É impossível distinguir esses movimentos estéticos da vida cotidiana.” Holland também sacaneia o expressionismo abstrato: “As multinacionais não podiam enfeitar seus “halls-Bauhaus” com retratos de palhaços tristes e casinhas de campo. Por isso, o abstracionismo foi inventado”. E depois: “Estamos tentando romper com as normas é, hoje, o slogan do anúncio do McDonald’s”. E a frase suprema: “Antigamente, o artista de vanguarda chocava a classe média; hoje, a classe média choca o artista de vanguarda”.

E, aí, vemos a verdade: a arte contemporânea está muito aquém da realidade. Que performance ou happening será mais contundente ou expressivo que a destruição de Nova York, do WTC? Que cadáver exposto dentro de garrafas ou latinhas de bosta ou tubarões podres ou latas de lixo são mais assustadores que a eternidade da guerra Israel-Árabe ou do inferno do Iraque? Sobrou uma denúncia tola (que aliás absolve gentalha sem talento), muito aquém da complexidade do horror de hoje.

Com a palavra outro artista


Não era a intenção, mas como as mensagens têm chegado, este Blog está se transformando num forum de discussão sobre artes plásticas. Sinal, talvez, de que faltam outros espaços mais adequados para isso.
Mas que fique claro: nem sempre concordo com as opiniões expostas nestas mensagens, nem necessariamente sou apreciador das obras que ilustram os posts. Se não, daqui a pouco vai ter gente dizendo que eu gosto do Romero Britto.
O texto seguinte é do Maurício Takiguthi (www.takiguthi.art.br), e a pintura, da qual gosto muito, também:
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Olá Luciano,
meu nome é Maurício e sou pintor realista em São Paulo. Como artista figurativo sempre me deparei com os preconceitos decorrentes dessa visão monopolista e excludente por parte dos curadores e críticos contemporâneos, beneficiários do sistema quando se trata de poder político, econômico e ideológico. Do ponto de vista deles, o figurativativismo "não existe" (e portanto, não pode ter acesso aos espaços) por ter cumprido sua função histórica dentro da arte.
Fiz uma exposição de dois anos para cá no Espaço Cultural Banco Central e do Blue Life, quando estabeleci meu primeiro contato com o Affonso Romano de Sant'Anna. Ele enviou-me recentemente artigos seus da Folha. Admiro sua coragem e a iniciativa de incentivar essa importante discussão. Se me permite, gostaria de propor algumas questões para que sejam respondidas pela turma da arte contemporânea: numa sociedade pós-moderna, deve haver pluralismo artístico (entendido como coexistência e acesso de múltiplas manifestações artísticas) ou monopólio? A arte dentro dos principais espaços culturais é feita para o todo da sociedade ou apenas para uma minoria (indagado um professor da USP sobre o eterno divórcio entre público e obra, ele respondeu: não se pode falar em divórcio quando nunca houve casamento)?. A arte deve se auto-sustentar (ser capaz de emocionar, mobilizar o indivíduo sem a necessidade da retórica), ou ela deve necessariamente ter a intermediação de um tradutor, representado pela figura do curador? Enfim, são dúvidas que nunca ouvi um artista ou crítico contemporâneo sequer se dar o trabalho de responder.

Wednesday, November 28, 2007

Obrigado, Robert Hughes





Procurei a entrevista do Robert Hughes à Veja, citada no post abaixo. É um alívio saber que estou em boa companhia: Hughes é considerado por muitos o mais importante crítico de arte vivo. Seguem os trechos mais relevantes para o debate:

Veja – Certas correntes do modernismo difundiram a idéia de que o passado é um peso do qual a arte precisa se livrar. O que o senhor pensa disso?
Hughes – A noção de que há uma oposição entre o presente e o passado é estúpida. Trata-se de uma deturpação vulgar do ideário modernista de primeira hora. Ele consistia em questionar o tradicionalismo, mas não a herança dos antigos mestres. Os futuristas italianos, é verdade, chegaram a propor a destruição das obras de arte criadas no passado – como se fosse possível apagar sua influência apenas com sua extinção por meios físicos. Mas o fato é que toda arte digna de nota feita no século XX se baseou no passado. Os modernistas que realmente importam, como Matisse e Picasso, nunca se pautaram por sua rejeição. Muito pelo contrário: as fontes de que extraíram sua inspiração foram os artistas da Renascença e do século XVIII.

Veja – O senhor teve contato pessoal com artistas como o americano Andy Warhol. Quais suas impressões dele?
Hughes – Warhol foi uma das pessoas mais chatas que já conheci, pois era do tipo que não tinha nada a dizer. Sua obra também não me toca. Ele até produziu coisas relevantes no começo dos anos 60. Mas, no geral, não tenho dúvida de que é a reputação mais ridiculamente superestimada do século XX.


Veja – E quanto ao francês Marcel Duchamp?
Hughes – Foi um prazer conhecê-lo, embora certamente não seja o primeiro artista em minha lista dos mais importantes de sua época. Sua elevação à condição de figura "seminal" nunca me convenceu. Já vi de perto todos os trabalhos que ele fez e nunca obtive nenhum prazer com eles. Duchamp não foi um grande artista, e sim um homem de idéias notáveis. Pessoalmente, prefiro um pintor como o francês Pierre Bonnard. Muita gente considera Duchamp um deus e Bonnard um impressionista enfadonho. Mas eu gostaria muito mais de ter em casa um de seus belos quadros do que um trabalho de Duchamp. Além disso, a influência de Duchamp sobre a arte contemporânea foi liberadora, mas também catastrófica.


Veja – Por quê?
Hughes – Porque ser o pai dessa bobagem chamada arte conceitual não é uma distinção de que se orgulhar. Para compreender o tamanho do estrago, basta dizer que sem ele hoje não haveria as chamadas instalações, aquelas obras tolas em que o espectador é convidado a passar por túneis e outros recursos infantis. Ou precisa ler uma bula para entender o que o artista quis dizer.

Veja – Nos últimos anos, obras de grandes artistas atingiram preços astronômicos em leilões. O que explica que se paguem 104 milhões de dólares por uma tela de Picasso?
Hughes – Francamente, não consigo imaginar uma boa razão. Os preços se tornaram tão obscenos e sem sentido que, a meu ver, só podem ser resultado de algum tipo de doença social. As pessoas que se sujeitam a pagar tanto por um quadro são movidas por motivações ridículas, como ostentar seu prestígio e poder. Não compactuo com essa insanidade.

Veja – Não há arte que valha tanto assim?
Hughes – Para mim, nem a maior obra-prima. A supervalorização atende aos interesses de certos marchands e colecionadores, mas é danosa para a arte. Passa-se a valorizar um artista ou tendência em função de seu cacife no mercado, e não da importância de suas realizações. Além disso, sua transformação em bem de consumo de luxo muitas vezes dificulta que um dia o grande público possa contemplá-las em museus.

Veja – Nas últimas décadas, o interesse pelas artes plásticas parece ter diminuído – desde sua saída da Time, por exemplo, a revista não tem dado o mesmo destaque ao tema. A arte perdeu sua centralidade?
Hughes – É triste, mas o fato de as pessoas terem obsessão pelos altos preços pagos por quadros famosos não significa que elas queiram saber algo mais sobre arte em si. Ela passou a ser vista apenas como um item a mais no cardápio do entretenimento, como as atrações do cinema e da TV. E também a ser avaliada com base nos mesmos parâmetros. Fala-se de um artista não por sua relevância, e sim pelo valor que suas obras atingem – como se fosse o orçamento milionário de um filme. Ou então por sua popularidade – como se fosse o índice de audiência de um programa. É uma visão distorcida.

Veja – Em suas memórias, o senhor comenta que os 3 200 dólares atingidos por um trabalho de Robert Rauschenberg nos anos 60 não dariam para pagar dois drinques de Damien Hirst, o mais incensado artista inglês atual. A arte contemporânea está supervalorizada?
Hughes – É claro que sim. Daqui a vinte anos, veremos quanto se pagará pelas obras de um sujeito como Hirst – que, aliás, não me interessam nem um pouco. Hirst e outros de sua geração fazem do escândalo uma arma de marketing. Mas um renascentista como Piero della Francesca conseguiu ser radical num nível que ele nunca passou nem perto de alcançar.


Veja – O que o senhor pensa desse esforço dos curadores de museus para transformar as exposições em entretenimento para as massas?
Hughes – Não sou contra o entretenimento, em princípio. Só penso que não é função do museu preocupar-se em produzir eventos com esse fim. Há mostras maravilhosas que calham de ser realmente populares. Só que pode haver outras também maravilhosas, mas que não têm tanto apelo – e é saudável que os museus continuem lhes dando espaço. É impossível determinar a qualidade de uma exposição em função de seu sucesso de público.

Veja – Para alguns especialistas, eventos como as bienais de São Paulo e Veneza tornaram-se obsoletos. O senhor concorda?
Hughes – Não ligo a mínima para bienais, trienais, quadrienais ou coisas que o valham. Elas hoje têm relevância apenas para os negociantes de arte. Por baixo da fachada novidadeira, a maioria desses eventos se transformou em feiras vulgares. Nunca estive na Bienal de São Paulo. Mas a de Veneza eu conheço bem. Alguns anos atrás, fui convidado a colaborar com seus organizadores e me vi em tal pesadelo que renunciei a meu posto. Já que é tudo comércio, melhor deixar para quem entende disso.

Veja – Países relativamente novos como o Brasil e a Austrália estão destinados a ter sempre um papel secundário na arte?
Hughes – Não direi que será sempre assim. Mas eles enfrentam um problema e tanto: não têm controle sobre o mercado. Parece-me inusitado que a Austrália amargue uma presença próxima do zero na arte mundial enquanto qualquer porcaria que se produz na Califórnia logo alcança visibilidade. A atmosfera do circuito internacional de arte é corrupta, já que se vive de criar modismos e falsos novos gênios para faturar. Essa é uma das razões pelas quais eu me aposentei como crítico. Prefiro me concentrar em alguns artistas cujo trabalho realmente importa a ver minhas resenhas sendo usadas para inflar as cotações alheias. O presente, em arte, é sempre um terreno pantanoso e sujeito aos golpes de marketing. Tome-se como exemplo o carnaval que se faz no momento a respeito da arte chinesa. A maior parte do que se convencionou rotular de pós-modernismo chinês é apenas uma empulhação bem promovida pelos marchands e casas de leilões. As vítimas deles são os colecionadores novos-ricos que pululam pelo mundo afora e compram tudo o que vêem pela frente. Eles podem ter dinheiro, mas não passam de idiotas e vítimas da moda.

Outra artista com a palavra


Mais um comentário promovido a post, agora da artista plástica Argênide. Quem tiver curiosidade em conhecer seu trabalho, ela tem um site: www.argenide.com.br. Tentei reproduzir aqui uma obra sua, mas não consegui. Então ilustrei o post com uma tela do Romero Britto, que ela cita. Pessoalmente não gosto do trabalho do Romero Britto, é bom esclarecer, mas o que a Argênide diz sobre ele tem procedência.

Luciano,
Parabéns pelas colocações e principalmente pela coragem ao fazê-las.

Há algum tempo, num artigo publicado pela Folha, diversos críticos rechaçavam o trabalho do Romero Britto. Sem questionarmos se a obra dele é ou não relevante, em sua opinião, se ele fosse formado pela ECA ou pela FAAP, os mesmos críticos teriam sido tão duros nas colocações? Porque ninguém saiu em defesa como fazem agora?

Acredito que além do mercado de arte e as galerias, numa outra ponta há o meio acadêmico que não ajuda muito no desenvolvimento de novos talentos, direcionando as suas "crias" para o que está ou não na "moda" da arte contemporânea. Quando se renovará esse caldo ranço que permeia o meio acadêmico? É enferrujado, obtuso e preconceituoso, na sua maioria.

Quando fui para a FAU fazer um curso de pós, há muitos anos, minha crença de que estava indo para um templo de liberdade criativa não durou três dias. Tirando pouquíssimas aulas, e nestas incluo as do Milton Santos, que foram realmente um capítulo à parte, não havia espaço para novas idéias. Tudo deveria estar dentro dos conceitos estéticos valorizados no momento. O que estava na moda ditava o curso.

As suas críticas suscitam um questionamento, acima de tudo. Um questionamento que poucos querem fazer, mas que é muito válido.

Quanto aos trabalhos citados no seu artigo me lembrei de uma entrevista na VEJA, aonde Robert Hughes falou que "Duchamp não foi um grande artista, e sim um homem de idéias notáveis!" e também que "a influência de Duchamp sobre a arte contemporânea foi libertadora, mas também catastrófica." Em seguida explica: "Porque ser o pai dessa bobagem chamada arte conceitual não é uma distinção de que se orgulhar. Para compreender o tamanho do estrago, basta dizer que sem ele hoje não haveria as chamadas instalações, aquelas obras tolas em que o espectador é convidado a passar por túneis e outros recursos infantis. Ou precisa ler uma bula para entender o que o artista quis dizer."

Acredito na arte SEM BULA e que uma coisa é ser criativo e outra coisa é ter talento.

Atenciosamente,
Argênide

Como se processa o reconhecimento da arte contemporânea?


Vou traduzir resumidamente (ou resumir traduzidamente!) as teses propostas no comentário em francês ao post "Mensagem encontrada numa lata". Em itálico, comentários meus:

Já há mais de um século, a transgressão se tornou o princípio mesmo da arte. [A transgressão se tornou portanto um valor, mais depois de um certo ponto se gerou um paradoxo: uma tradição da transgressão, que na verdade passou a transgredir cada vez menos]. Manet, com o quadro Dejeuner sur l'herbe, rompeu com a tradição acadêmica e chocou seus contemporâneos. [Sem dúvida] (...) Depois foram colocadas em questão a técnica pictural (Impressionistas), o realismo figurativo (Cubistas), a figuração (Abstração)... E por fim a própria pintura! [Todo mundo sabe disso].

Casémir Malévitch (Quadrado preto sobre fundo preto, 1913, e Quadrado branco sobre fundo branco, 1918) [a imagem que ilustra este post é do Quadrado preto sobre fundo branco] e Marcel Duchamp, com seus ready-mades (urinol, porta-garrafas, roda de bicicleta)foram até o fundo dessa lógica. O OBJETO SE TORNA OBRA DE ARTE PELA VONTADE DO ARTISTA. [Aqui está o nó. Se é unicamente a vontade do artista quem estabelece o que é arte, quem dá ao artista esse poder? E quem decide quem é artista e quem não é? Enquanto estas peguntas não forem respondidas com objetividade, qualquer debate patinará num terreno perigosamente ambíguo].

Fazer obra de arte é antes de tudo ser reconhecido [por quem?] na qualidade de artista. O artista é aquele que nos mostra nossos limites e fronteiras (...) Desembaraçado de limitações técnicas e estéticas, o artista só reconhece uma obrigação: inovar [se é assim, muito pouca gente é artista, porque se está inovando muito pouco; mas é mesmo assim? A inovação é o parâmetro?] E assim, recolocar em questão (em questões?) a arte já estabelecida e reconhecida. [Ué, como assim, se acima foi dito que o artista é quem é reconhecido como artista?]

Mas como distinguir entre o artista autêntico e o mistificador [agora se reconhece que existem artistas autênticos e mistificadores?] Como é próprio da inovação e da transgressão não poder ser julgado segundo critérios do passado [quer dizer, cada obra nova pede novos critérios, o que é outra justificativa para alegar que qualquer coisa é arte]. Os amadores/amantes esclarecidos [esclarecidos por quem, segundo que critérios?] e as instituições [Ah... Agora sim. Mas faltou dizer como funcionam essas instituições] vão separar o trigo do joio [sem trocadilho com meu sobrenome].

Assim os verdadeiros amantes da arte, guiados pelos críticos [mas como, se, justamente, os críticos perderam relevância como guias, e quando alguém levanta a voz é recebido é pedradas?] POSSUEM O BOM GOSTO QUE OS DIFERENCIA DO COMUM DOS MORTAIS [sem comentários: eu achava que "bom gosto" era uma categoria ultrapassada e reacionária], ao passo que os museus asseguram a consagração atribuindo aos objetos o estatuto de obra de arte, e aos indivíduos o estatuto de artista.

A arte contemporânea não é o domínio do vale-tudo [conclusão que contradiz as premissas] É um jogo sutil, no qual o artista TRANSGRIDE AS REGRAS, RESPEITANDO AS REGRAS DA TRANSGRESSÃO [sensacional: que transgressão é essa que respeita regras?] que propõem, de forma implícita [seria bom explicitá-las] o mercado (críticos e galerias) e a instituição (museus e mercado institucional).
_____

Pelo que entendi, o original em francês foi extraído do DOSSIER: L'ART CONTEMPORAIN: Au-delà de l'avant-garde, de Georges Strohl. É um texto muito revelador sobre as bases frágeis que sustentam o pensamento sobre arte hoje. É por isso que, na arte contemporânea, tudo é permitido, menos discordar e questionar. Desacostumados a qualquer embate teórico sério, que exija reflexão, atacam e desqualificam qualquer um que tente pensar de forma crítica e independente.

Aí o debate fica reduzido a saber se uma instalação tem 300 ou 7.000 maçãs (como se fizesse alguma diferença para a discussão proposta), como se lê na Folha de S.Paulo de hoje, ou se uma obra foi vista in locu ou através de fotografias.

Mas todo esse barulho me dá razão em duas coisas, explicitadas no meu primeiro texto:
1) é difícil qualquer debate avançar, em arte contemporânea, porque sempre vira Fla-Flu.
2) qualquer voz dissonante é furiosamente rechaçada.

Tuesday, November 27, 2007

Com a palavra, a artista


Recebi com surpresa o comentário abaixo, da Débora Bolsoni, e como muita gente não lê os comments, achei melhor transformá-lo num post. Esclareço que em momento algum tive má intenção (qual seria?) ou pretendi agredir os artistas citados - ao contrário, disse que simpatizava com as maçãs da Laura, um pouco menos com a paçoca da Débora, mas que a questão de meu gosto pessoal não era relevante: o que me interessava era refletir sobre arte contemporânea, levantando algumas hipóteses.

Esclareço também que não reduzi, nem generalizei, nem julguei a arte contemporânea como um todo, o que seria uma idiotice: escrevi claramente que estava comentando apenas uma tendência recorrente nas galerias, não a única. Só quem usa antolhos não enxergou. Igualmente importante: o título do artigo era "Será arte?", citação de um poema do Ferreira Gullar, mas a Folha preferiu pinçar uma frase do texto - o que é uma prática jornalística comum, mas acabou atraindo atenção desmedida para um detalhe lateral. O que não muda o fato de que não afirmei, em momento algum, que todos os artistas são movidos pela busca da fama e de dinheiro, mas sim questionei o sucesso como critério de qualidade num sistema de arte mercantilizado.

De qualquer forma, mesmo sem ter sido a minha intenção, se a Débora ficou magoada peço desculpas (a ela), mas não, é claro, por pensar da forma que penso. Continuo defendendo as mesmas idéias, e a repercussão que o artigo vem tendo é um sinal da necessidade desse debate. Como eu disse outro dia, qualquer discussão sobre arte é potencialmente interminável, mas só tem graça entrar nelas se for para dialogar, não para trocar ofensas, nem para ficar nervosinho (como algumas pessoas ficaram).

Na ilustração abaixo, outra obra de Débora Bolsoni.

E ajudem a Débora a vender o carro!


Olá Luciano,
sinto pelos comentários agressivos que você diz estar recebendo, mas seu artigo da Folha foi bem agressivo.
Não estava motivada a responder às suas críticas porque desconfio de uma má intenção na forma com que foram proferidas.
Não ignoro solenemente as críticas e sei muito bem que opiniões como as suas são representativas de uma parcela significativa do público. Mas o distanciamento da realidade que você atribui aos artistas também pode ser atribuído a essa parcela significativa do público. Não existe um academicismo contemporâneo validando obras afinadas com um discurso homogêneo. O que acontece, acredito, é que muito poucos têm um acesso mais integral ao trabalho dos artistas e devido a esse contato superficial inúmeros preconceitos se enraízam.
Fiquei pensando na relação entre o seu juízo da situação privilegiada dos artistas representantes da “tendência dominante” e a influência do conceito de violência simbólica desenvolvido por Pierre Bourdieu. Fiz essa relação por ler a entrevista que ele te concedeu, e por ter me debatido também com a arte contemporânea numa época em que havia descoberto este autor. Isso foi no final dos anos 90, o mesmo período em que você diz ter sido publicada a entrevista no Globo. Passados quase 10 anos reconheço aliviada que não tenho a tendência de arraigar preconceitos e continuei trabalhando e prestando atenção no que se fazia a minha volta com olhar crítico sim, mas sem desmerecer o trabalho daqueles que circulavam num meio cujo funcionamento eu desconhecia.
Nem de longe passou na minha cabeça que eu me destacaria no circuito de arte por estar me utilizando da paçoca. Pensar nessa hipótese é um absurdo.
Eu quis usar a paçoca porque me interesso por certos materiais e objetos que possam representar uma tática de resistência cultural. Acho estimulante o caldo que existe na fronteira entre o folclórico e o massivo. Gosto de pensar na culinária como um fazer plástico não especializado e nas receitas de domínio público que se tornam característicos de uma cultura. Isso me remete a uma essência que se impõe. Achei que o argumento de sotaque forte presente na curadoria do Moacir dos Anjos para o Panorama ajudaria a evidenciar essas questões que eu via no uso da paçoca.
Outro motivo que justificou o trabalho com a paçoca foi a busca por um material que pudesse substituir a terra. Que pudesse se comportar como tal ao menos em alguns aspectos. Eu queria trazer pro MAM algum artifício característico dos espaços públicos que ficam entre o rural e o sub-urbano. Daí o quebra-molas de uma rua de terra e uma espécie de saudosismo invocado pela paçoca poderiam coexistir com certa naturalidade. Essa foi a minha tentativa. Pensei que esse objeto seria revelador de uma qualidade afetiva da nossa resistência (enquanto sociedade) de avançar. E ainda, que seria curioso que esse obstáculo fosse, na verdade, construído por uma matéria que desmorona tão facilmente. Que fosse um doce “inofensivo”. Muitas outras reflexões e experiências fizeram parte do processo, mas no geral é isso.
Não me sinto fazendo nada excêntrico nem hermético. Não estou inventando nada. A paçoca tem as qualidades citadas acima e também o quebra-molas. Claro que tanto um quanto o outro têm ainda inúmeras outras conotações e qualidades. E, ainda que muitas delas concorram para o sentido que eu quis dar ao trabalho, outras provavelmente serão conflitantes em relação ao mesmo. Mas acho que isso não o invalida.
Também está longe das minhas pretensões repetir o “gesto inaugural do Duchamp”. As operações que ele e outros artistas (de vanguarda ou não) realizaram entraram no nosso vocabulário estético e hoje, se as “repetimos” com um certo distanciamento que te pareceu alienação, e falta de comprometimento, é porque as articulamos como se faz com os signos de uma linguagem estabelecida. Depois de Brunelleschi, Massaccio e companhia a perspectiva continuou por bons séculos como recurso lingüístico embora ela já não fosse mais uma investigação central da arte ou da arquitetura. Nem por isso fez-se uma arte acomodada, pastiche das descobertas do Quattrocento italiano. Um pouco tolo esse meu exemplo ilustrado, mas pode ser útil frente a outras tolices.

No mais, gostaria que você fizesse alguma auto-crítica ao reler os trechos que destaco abaixo. São trechos da entrevista que você realizou com Pierre Bourdieu. Termino esta carta com esse recorte da entrevista porque me parece que você continua em busca de uma tese generalizante sobre as questões que te incomodam. Um abraço, Débora Bolsoni.

- Como o senhor vê o triunfo planetário do liberalismo e das leis do mercado?

Bourdieu - Esta é uma pergunta muito geral, e o mais importante são as questões específicas. São os intelectuais mediáticos que gostam de falar sobre qualquer assunto, indiscriminadamente. (...)

- Desde a morte de Sartre, há 15 anos, não surgiu na França nenhum "maitre-à-penser"...

Bourdieu - São os intelectuais mediáticos e os jornalistas que dizem isso - porque, naturalmente, eles próprios não são "maitres-á-pensar". É preciso levar em conta que o modelo sartriano de intelectual engajado correspondeu a uma etapa diferente da vida cultural francesa e sobretudo a uma etapa diferente da relação entre os intelectuais e os meios de comunicação. Muitas ações políticas de Sartre, ou mesmo de Michel Foucault, foram bem sucedidas porque contaram com um enorme apoio da imprensa. Hoje o espaço máximo que Sartre teria num jornal seria o de um artigo na página de opinião, porque os intelectuais mediáticos exercem uma espécie de monopólio da mídia. Suas obras são sem interesse, mas eles estão sempre dispostos a falar qualquer bobagem sobre qualquer assunto. Aliás, até mesmo Sartre disse muitas besteiras.

- Em livros como "A economia das trocas simbólicas" o Senhor faz análises penetrantes das transformações da vida cotidiana. Na esfera privada, o senhor acredita que hoje as pessoas são mais conservadoras do que 20 anos atrás?

Bourdieu – É outra pergunta muito geral e sou obrigado a responder: eu não sei. Os intelectuais precisam ter a coragem de dizer "eu não sei", sobretudo diante de perguntas muito gerais, que não levam a nada. (...)

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Ah, sim. Quero aproveitar a fama e anunciar meu carro que está à venda para cobrir as dívidas da minha vida bem sucedida de artista. É um gol 98, gasolina, cinza grafite com mecânica OK mas com o licenciamento atrasado. Estou pedindo R$ 13.000,00. A placa é de São Paulo. Interessados favor escrever para o e-mail: dbolsoni@hotmail.com

Monday, November 26, 2007

Mensagem encontrada numa lata


Como o site chamado Canal Contemporâneo reproduziu sem minha autorização o texto que escrevi para a Folha de S.Paulo, reproduzo aqui, sem autorização deles, um comentário deixado lá pelo leitor Tito de Oliveira:

Penso que é realmente importante ressaltar que: a infinitude criativa da arte contemporânea - muito embora mais consistida em releituras do que em vanguardismo - além da soberania do mercado de arte, liderado por galerias, Salões e bienais, que por sua vez etabelecem a linguagem à ser explorada, impondo ao artista o melhor trajeto, em suas ópticas, para a condução de uma carreira, torna dificultoso o discernimeto entre uma produção efêmera, mas, insinuante, de uma criação permeada pelo anseio desesperado da projeção. Este é algo realmente preocupante não apenas para os críticos, que deveras tornaram-se repetitivos por pejortivarem demasiada criação reacionária, mas, sobretudo por desconstruir cada vez mais o alicerce que atrai o espectador comum para um universo contido em uma existência restrita apenas às classes cultas e elitizadas, que desta forma podem exprimir suas opiniões.

Sereno e objetivo. Sem me dar razão, mostra que toquei em pontos relevantes para um necessário debate sobre arte contemporânea.

Muito diferente é o texto, também publicado no mesmo site, por um certo sr. Moacir (ele me chama de "senhor" quatro vezes, então devolvo a deferência): raivoso, estúpido, mentiroso, me atribuindo idéias que não defendi e intenções que não tive. É um artigo tão imbecil e mal escrito que sequer merece uma refutação ponto a ponto - até porque ele me dá razão quando digo que qualquer questionamento dos rumos da arte contemporânea é recebido a pedradas.

O curioso é que nem Marcos Augusto, de quem sou leitor, nem o sr. Moacir dizem se consideram ou não arte a orelha implantada no braço ou o cachorro que morre de fome. Eu e muitos outros leitores ficamos curiosos para saber.

Ilustrando este post, a obra Merda d'Artista (1961), de Piero Manzoni, que dá o que pensar. Manzoni defecou em 90 latinhas, assinadas e numeradas, e as vendeu a peso, cobrando o preço equivalente em ouro. Com o tempo, naturalmente, as latas começaram a sofrer um processo de degradação natural, deixando vazar o conteúdo, causando inúmeros problemas para museus e colecionadores. (É sério: aconteceu, por exemplo, na Tate Gallery, em Londres, onde especialistas opinaram que não se pode intervir na obra de arte, sob pena de adulterá-la e de modificar a intenção do artista; a solução foi colocar a lata dentro de um cubo de acrílico, onde a obra de arte pudesse seguir o seu percurso natural, longe das mãos e dos narizes do público). Uma das latas, aliás, foi vendida em maio passado, por 97 mil euros (cerca de R$ 250 mil).

Merda d'Artista, porém, não é uma merda. É um ataque frontal e um comentário irônico ao mercantilismo da arte e à idéia, moderna no mau sentido, de que não há limites para a arte, de que a arte está em toda parte, de que tudo é arte. Mais de 40 anos depois, a mensagem não foi compreendida, a arte se mercantilizou de vez, e a mediocridade triunfou. E ai de quem apontar o dedo para isso.

Freud e a cocaína





O ponto principal do post Verdades e mentiras sobre a Lei Seca é que não se pode nivelar os efeitos de todas as drogas, lícitas e ilícitas, como argumento para a descriminalização. Não existe uso social do crack e da heroína, por exemplo: em duas doses o usuário cria uma dependência química e psicológica sem volta. Por isso há quem diga que o crack foi criado para dizimar os negros pobres nos Estados Unidos.

Além disso, não custa repetir: o problema maior não é o uso da droga em si, mas a sua articulação, no Rio de Janeiro de hoje (não na Chicago dos anos 20, não na América pré-colombiana, não na Viena do final do século 19), com a economia cruel do narcotráfico, que destrói diariamente vidas de jovens, sobretudo nas comunidades pobres, cria um poder paralelo que manda mais que o Estado e gera violência e dor em escala industrial. Além disso: acaba com a qualidade de vida da cidade e afeta a própria economia: inúmeras empresas deixaram o Ro de Janeiro porque funcionavam em áreas de risco, dominadas pelo tráfico.

Ignorar isso é viver num faz-de-conta. O filme Tropa de Elite foi tão atacado porque traz esta mensagem com todas as letras: o usuário é cúmplice. Não é o culpado, é muitas vezes a vítima. Mas também é cúmplice.

Volto ao tema porque o primeiro comentário sobre o post repete um equívoco que merece uma retificação.

Freud usou cocaína com fins terapêuticos, como parte de suas pesquisas em busca de tratamentos eficazes para os distúrbios nervosos. Ele se interessou pela coca como medicamento, e isso num período anterior ao desenvolvimento da psicanálise, quando usou a si mesmo como cobaia em diversas experiências. Na época da obra fundadora A Interpretação dos sonhos (1899), Freud já reconhecia que a cocaína provocava intoxicação e outros efeitos colaterais graves, abandonando seu uso terapêutico.

Freud não era, portanto, "fascinado" pela droga, e nem mesmo escreveu "um livro" sobre o tema, mas três artigos científicos, em épocas diversas, sobre propriedades psicofarmacológicas da substância. Ele menciona, por exemplo, mudanças de humor e percepção, mas ignora o aspecto da dependência, mais tarde cientificamente comprovado e hoje inquestionável. Os textos foram reunidos muito depois por sua filha Anna Freud, no volume The cocaine papers, mas quem tiver a honestidade intelectual de os ler verificará que não se prestam de forma alguma à apologia da droga.

Diversos motivos podem ter levado Freud a rejeitar a cocaína: a suposta morte de um paciente por overdose; o vício de seu amigo Keller, também médico, que emigrou para os Estados Unidos e foi dignosticado como portador de distúrbios da personalidade causados pela cocaína; a observação de que alguns pacientes entravam em convulsão, tinham severas insônias, perdiam o controle sobre o próprio comportamento. Além disso, Freud descobriu que a cocaína injetada não funcionava como um substituto para a morfina, como analgésico, pois o organismo pedia sempre uma dose maior. Por fim, começou a verificar, embora com as limitações da medicina da épcoa, os danos que a droga causa às funções cerebrais e a outros órgãos (fígado, baço, pâncreas, coração, sistema linfático, sistema digestivo, sem falar na perda da ereção e do descontrole emocional).

O problema é que boa parte dos usuários é incapaz de perceber em si mesmo qualquer desses efeitos colaterais da cocaína, simplesmente porque perde a noção da realidade. Freud, aliás, é uma ótima referênca no debate sobre a droga, porque este envolve um mecanismo de negação inconsciente de verdades cristalinas, por parte de quem a defende e consome.

Sunday, November 25, 2007

Verdades e mentiras sobre a Lei Seca


Partidários da liberação do uso das drogas como solução para o narcotráfico - e para a violência que ele tem gerado no Rio de Janeiro em escala industrial - têm comparado a repressão às drogas com a Lei Seca, decretada em 1919 nos Estados Unidos. O argumento é que a proibição gera o comércio clandestino e o crime, tanto que a revogação da Lei Seca por Roosevelt, em 1933, provocou a diminuição da criminalidade nos Estados Unidos. Será?

(Parêntesis. Engraçado como as coisas se associam: em 1919 o Presidente dos Estados Unidos era Woodrow Wilson, de quem falei alguns posts abaixo; com a Lei Seca, os republicanos queriam desmoralizar Wilson, democrata em luta aberta contra os cartéis e monopólios, conhecido por sua devoção religiosa protestante. Wilson vetou a lei, mas, depois de uma cruzada da imprensa, seu veto foi derrubado no Congresso.)

Apesar de ter vigorado durante 14 anos, a Lei Seca foi um um desastre. Na fabricação clandestina, sem fiscalização, a qualidade da bebida caiu. Milhares morreram pela ingestão de uísque de má qualidade. E a ilegalidade provocou a proliferação de gângsters e o aumento da corrupção policial. O contrabando era altamente lucrativo, e os policiais corruptos, além de proteger os mafiosos, ainda lhes forneciam armas.

Mas a comparação entre a Lei Seca e a repressão às drogas tem procedência? Não. Por quê?

1) São situações completamente diferentes. A Lei Seca tentou proibir algo que era permitido, enquanto liberar as drogas seria permitir o que era proibido.

2) A criminalidade nos Estados Unidos na década de 30 não diminuiu por causa do fim da Lei Seca, mas por causa do New Deal, a política econômica de Roosevelt que gerou aumento de emprego e renda e melhores serviços sociais. E, após a prisão de Al Capone, em 1932, o crime se organizou, e a violência resultante das brigas de quadrilhas diminuiu.

3) Por piores que sejam os efeitos do álcool, não dá para jogar todas as drogas, lícitas e ilícitas, na mesma vala comum. Existe uma razão para que bebidas alcoólicas sejam permitidas, e drogas como a cocaína, a heroína e o ecstasy não: a dependência. Existem dependentes do álcool, é claro, mas a imensa maioria das pessoas bebe socialmente, e pode muito bem viver sem a bebida. Com as drogas citadas, isso não acontece. Todo mundo que conhece um drogado - e todo mundo conhece - sabe disso.

Qualquer pessoa que tenha olhos para enxergar concorda que o viciado transforma a própria vida num inferno. O indivíduo tem o direito de escolher esse caminho? Não é uma questão de liberdade individual? Em termos. Quem se destrói através das drogas, ou faz do seu consumo o eixo de sua vida, não faz mal apenas a si mesmo - a não ser que não tenha filhos, mulher, pais, irmãos e amigos, isto é, se não fizer parte da sociedade. Mas, se isso fosse possível, as leis não seriam necessárias.

Muita gente identifica a droga com uma atitude contracultural, mas a verdade é que o tráfico sempre foi um negócio altamente capitalista, organizado como uma empresa e estimulado pelo lucro. Mas, como a sua mercadoria se confunde com a autodestruição dos consumidores, seu crescimento é diretamente proporcional à decomposição do tecido social. As camadas mais prejudicadas, como sempre, são as mais baixas e sem perspectiva. Mas gente de todas as classes tem o seu quinhão de sofrimento: o pesadelo de ver um filho virar dependente químico ou traficante é cada vez mais comum nos andares de cima da sociedade.

Na base do fenômeno do narcotráfico estão a explosão do consumo e a popularização da droga, em suma, está a escolha individual de consumir. Mas é mais fácil e conveniente esconder esta responsabilidade atrás de comparações com contextos completamente diferentes, como a América dos anos 20, ou negá-la em função da suposta necessidade imemorial do homem de se drogar.

A serviço da espionagem americana?




A organização Repórteres sem Fronteiras (RSF) criticou Hugo Chávez esta semana, por considerar sua política restritiva às liberdades. A RSF é uma organização não-governamental internacional que defende a liberdade de imprensa no mundo. Integra o Intercâmbio Internacional pela Liberdade de Expressão (IFEX), uma rede mundial de mais de 70 organizações não-governamentais de defesa da liberdade de expressão, que monitora violações à liberdade de imprensa e de expressão, movendo campanhas de defesa de jornalistas, escritores, usuários de Internet e outras vítimas de perseguição pelo exercício do direito à expressão.

A RSF é uma organização insuspeita, que denuncia violações à liberdade de imprensa independente da ideologia dos que a praticam. Se é respeitada quando denuncia abusos de ditaduras de direita, também deve ser respeitada ao denunciar abusos de ditaduras de esquerda.

O secretário-geral da RSF, Robert Ménard, denuncia: Chávez "fez calar toda voz crítica ou dissidente, para eliminar progressivamente toda forma de contra-poder" e cita como exemplos o fechamento da rede RCTV e o controle de "sete redes de televisão, 20 de rádio, uma operadora de telefonia e cerca de 60 jornais". Ao buscar um diálogo com o governo venezuelano, foi repelido com o argumento "grotesco e infundado de que a organização trabalha para a espionagem americana e busca organizar um golpe de Estado" no país.

Chávez também foi criticado esta semana num artigo do jornal francês Libération, igualmente insuspeito. O texto é assinado por vários intelectuais, como os escritores Mario Vargas Llosa e Carlos Alberto Montaner e os filósofos Bernard-Henri Lévy e André Glucksmann, entre outros, e ataca o plebiscito para a reforma constitucional, feita "sem respeitar os procedimentos legais" e que favorece "a reeleição do presidente" e "suprime o controle dos poderes do Estado". E ainda: acusa o "desvio antidemocrático de um regime que está a caminho do totalitarismo" e afirma que os venezuelanos enfrentam hoje "o desaparecimento do Estado de Direito e do respeito às liberdades".

Será que a RSF e o Libération aderiram à CIA?

Saturday, November 24, 2007

Do xadrez ao xadrez


A tropa de choque da polícia russa deteve hoje em Moscou manifestantes de oposição, entre eles o ex-campeão mundial de xadrez Garry Kasparov, depois que eles saíram da rota autorizada para um protesto contra o Kremlin. Uma assessora afirmou que Kasparov, que trocou o xadrez pela política, foi jogado no chão e espancado pelos policiais.

Kasparov é um dos principais críticos do presidente Vladimir Putin. Escolhido pelo movimento da oposição “Outra Rússia” como candidato às eleições presidenciais de março de 2008, ele já declarou que o atual governo é "uma combinação mortal de dinheiro, poder, sangue - e impunidade".

De fato os assassinatos políticos, uma instituição no país desde os tempos do czarismo, continuam acontecendo. Depois de sufocados por décadas de comunismo, os russos estão experimentando agora o outro lado da moeda: o capitalismo selvagem e sem freios, com máfia, corrupção, insegurança jurídica, instabilidade política e econômica.

Para se entender a Rússia hoje recomendo a leitura de três livros: Morte de um dissidente, de Alex Goldfarb e Marina Litvinenko, O laboratório dos venenos, de Arkadi Vaksberg, e Um diário russo, de Anna Politkovskaja.
No vídeo abaixo, o próprio Kasparov fala sobre sua candidatura e sobre o possível risco de um atentado.



Por fim, para matar a saudade do Kasparov enxadrista, o segundo vídeo mostra o final de sua última partida, em que ele foi derrotado por Topalov. Reparem nas mudanças de sua expressão fisionômica, beirando o desespero. Apesar de ter encerrado sua carreira com uma derrota, Kasparov ainda era o melhor enxadrista do mundo ao se aposentar.



Tive a sorte de entrevistar Kasparov quando ele veio ao Rio, em 1995: na época saiu uma página inteira na editoria de esportes do Globo, com o título "Eu odeio Karpov e tudo que ele representa" (Karpov era seu arqui-inimigo no xadrez). Se eu achar a entrevista coloco aqui.

Friday, November 23, 2007

Terrorismo estético








Dei a entender, dois posts abaixo, que só recebi mensagens malcriadas de artistas, a respeito de meu artigo publicado na Folha. A bem da verdade, os malcriados foram minoria. Além de inúmeros artistas desconhecidos ou iniciantes que se identificaram com minhas idéias, três, já estabelecidos, me enviaram estimulantes comentários. Qualquer discussão sobre arte, no fundo, é potencialmente interminável, e só tem graça entrar nelas se for para dialogar, não para agredir.

Os três artistas foram Adriana Varejão, Julia Cseko e Antonio Veronese. Este último me enviou uma interessante entrevista que ele deu à Radio France em 2002, depois de ter feito críticas às Bienais do Whitney Museum e de São Paulo, e que transcrevo a seguir (na imagem, uma pintura de Veronese):

Você, quando critica as bienais do Whitney, em Nova York, e de São Paulo, não está negando a esses artistas conceituais o direito de expor seus trabalhos? Isso não é antidemocrático?
Eu não nego a ninguém o direito à exibição. Só acho que essas instalações deveriam estar na Disneyworld e não nos museus. São objetos para o divertimento e a interação, da mesma forma que um boliche ou stand de tiro-ao-alvo.

O que gerou a sua reação encolerizada no Whitney?
Não foi uma reação encolerizada. Foi uma reação natural de quem se sentiu ludibriado tendo que pagar para ter acesso a um amontoado de infantilidades. Os "autores" destes farsismos se trancam no banheiro e riem de todos nós. O que fazem é terrorismo estético. Eles sabem que não têm nenhum valor - eles estão conscientes disso!- mas contam com a cumplicidade de curadores e a covardia da crítica.

Você chama a esses artistas de filhos espúrios de Duchamp. Por quê?
A criação artística é produto de duas experiências: uma histórica e outra pessoal.O artista tem que conhecer a Arte que o antecedeu, mas precisa também da segunda experiência, a pessoal, fruto do trabalho contínuo, do lento avançar naquilo em que trabalha. Cezanne, aos 64 anos, já havia parido o modernismo, mas reclamava que ainda não havia conseguido ir até o fim em sua busca. O caminho é longo e exige paciência e dedicação. Esse pessoal das instalações é culto, conhece a História, mas tenta dar uma rasteira na segunda exigência, a da experiência pessoal. Socorre-se para isso de conceitos que serviram em outras situações mas que, no caso deles, não passa de malandragem. O Urinol virado por Duchanp foi uma consequência da sua busca pessoal, num contexto particular e específico. Mas defender que o urinol possa ser manipulado indefinidamente é encenar a nossa própria decadência. Por isso que eu digo que os conceitualistas são filhos espúrios de Duchamp.

Você não está, com essa tese, restringindo a manifestação artística à pintura e à escultura? Que diferença tem essa sua crítica da que sofreram os impressionistas no final do século XIX?
A Arte é da natureza dos homens. Ela não é espontânea na natureza. É produto da interferência do homem, que não pode ser supérflua ou presunçosa. Victor Hugo dizia que a obra de arte é uma variedade do milagre. Para Malraux os artistas não são copistas de Deus, mas seus rivais. A arte contemporânea quer socializar o direito de produzir arte, antes restrito aos artistas. O que produz é facilmente copiável, diferentemente de um retrado de Rembrandt ou de uma mesa com maçãs de Cezanne. Para mim comparar a minha crítica com as que sofreram o impressionismo e o modernismo é uma inocência. Uma vez eu ‘incorporei” minha bota de couro a uma instalação no Whitney do Soho em Nova York. Só fui buscá-la no dia seguinte. E ela estava lá, no mesmo lugar em que a deixei. Ninguém se deu conta de que, por 24 horas, eu havia me tornado co-autor da instalação. Isso seria impossível com uma tela de Bacon ou de Lucien Freud. A crítica foi, durante muitas vezes na História, preconceituosa e totalitarista. Mas questionar meu direito de criticar agora é também uma forma de totalitarismo. Para mim há mais humanidade em uma simples aquarela de Egon Shiele do que em toda a Bienal de São Paulo reunida. A arte precisa do espanto, mas só os pobres de espírito se espantam com o ordinário.

Freud analisa um Presidente




Todo mundo reconhece o sujeito ao alto, espero, mas acho que pouca gente saberá quem aparece na segunda foto. Trata-se de Thomas Woodrow Wilson, presidente dos Estados Unidos entre 1912 e 1921, um período crucial da História contemporânea. Qual a relação dele com o pai da psicanálise? Wilson foi tema de um livro de Freud, um perfil psicológico-biográfico escrito em parceria com o diplomata americano Williiam C. Bullitt. Existe uma edição brasileira, de 1984, mas está esgotada.

Vou desenvolver este post mais tarde. Por ora basta dizer que a conclusão a que se chega lendo essa estranha biografia é que Wilson era um homem profundamente perturbado, e seus conflitos íntimos tiveram influência decisiva sobre a decisão de levar a América à Primeira Guerra. Em 2 de abril de 1917, ele pediu ao Congresso a declaração de guerra contra a Alemanha para tornar o mundo "seguro para a democracia". Foi sob a sua liderança, portanto, que os Estados Unidos começaram a se arvorar em salvadores do mundo, para o bem e para o mal.

Terminada a guerra, Wilson foi à Conferência de Paris, supostamente para tentar construir uma paz duradoura: propôs 14 medidas, com as quais esperava evitar novos conflitos, mediante tratados que não humilhassem os derrotados, nem lhes impussessem penas exageradas. Na prática, nenhum país vencedor quis abrir mão de sua parte no butim, criando-se as condições que levariam à Segunda Guerra, 21 anos depois.

Thursday, November 22, 2007

Monteiro Lobato e eu









Reproduzo a seguir o artigo do jornalista Marcos Augusto Gonçalves, publicado na Folha de S.Paulo de hoje. Não vou me estender aqui sobre os pontos de que discordo, e são vários, mas de uma forma geral é um texto que revela, provavelmente por culpa minha, uma incompreensão profunda do que eu quis dizer no artigo publicado na Ilustrada, segunda-feira passada. O eixo do artigo de Marcos Augusto - a comparação da minha análise de alguns aspectos da arte contenmporânea com a crítica de Monteiro Lobato a Anita Malfatti em 1922 - me parece completamente equivocado. E sobretudo injusto, tanto com Lobato quanto com Malfatti, de quem sequer chegamos perto, respectivamente, eu e os artistas que analisei. De qualquer forma, perto de algumas mensagens que recebi, é um artigo bastante sóbrio e educado, que leva adiante o debate da forma que deve ser. A foto é de Monteiro Lobato na redação da Revista do Brasil, na década de 20:

'Paranóia ou Mistificação?'

Ataques atuais à arte contemporânea lembram a crítica conservadora de Lobato ao modernismo

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

É CÉLEBRE o artigo de Monteiro Lobato, com o título ao lado, escrito por ocasião de uma mostra de Anita Malfatti, no qual o pai da adorável Emília demonstra seu horror com a reforma da estética promovida pela arte moderna.
As pinturas de Malfatti são vistas por Lobato como reflexos de uma percepção anormal do mundo -e ele lamenta o fato de a artista ter cedido à influência das "extravagâncias" de Picasso e seus colegas.
Em seu livro "Crítica Cultural: Teoria e Prática", Marcelo Coelho toma o artigo do famoso escritor como aquilo que ele é -um modelo de crítica conservadora. E o disseca, para identificar três traços básicos em seu antimodernismo: 1) o método de julgar uma obra nova a partir de critérios já estabelecidos, anteriores e externos à própria obra; 2) a avaliação de que vivemos num período de declínio, decadência, degeneração, doença cultural; e 3) a postulação de que o crítico de arte seria um representante do "homem comum", enganado pelo artista. O autor observa com argúcia: o crítico "é ao mesmo tempo fiscal, médico e promotor de Justiça".
É impossível não pensar nas reinações conservadoras de Lobato ao ler opiniões como as expressas pelo jornalista Luciano Trigo em artigo publicado pela Ilustrada (19/11). O alvo agora não são mais as distorções formais e cromáticas da arte modernista, já institucionalizada. A doença é a arte contemporânea.
O articulista, na realidade, parte das idéias de nossos dois grandes candidatos ao Troféu Paranóia ou Mistificação do Século 21, a saber, os críticos e poetas Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant'Anna. Ambos têm regularmente atacado as extravagâncias da produção artística atual.
Não raro, como no artigo de Trigo, as opiniões aparecem recheadas de preconceitos e rancores em relação ao mercado de arte, ao suposto "descompromisso" das obras e à inevitável interface midiática da cultura no mundo de hoje.
Não falamos de um reconhecimento crítico do território da arte contemporânea, de uma tentativa legítima de discernir o que seriam bons e maus trabalhos, bons e maus artistas. O que temos é a negação "in totum" da produção de nosso tempo, uma vontade perversa e frustrada de anulá-la, em nome dos "verdadeiros" cânones.
Daí a incrível capacidade de generalização do argumento, que segue a linha "tudo é a mesma coisa": uma arte que não apresenta "nada de novo ou original", é "desligada da realidade" e realizada por gente interessada apenas em "fama, viagens e dinheiro". O que é, na melhor das hipóteses, ignorância.
Não concordo com a opinião de Gullar e Trigo sobre as instalações de Laura Vinci e Débora Bolsoni, mas eles, obviamente, como outros críticos, podem detestá-las. Outra coisa é desqualificá-las e tratá-las como sintomas de uma doença maior que precisa ser erradicada.
Não creio que, no futuro, esses ataques venham a ser lembrados. Se o forem, provavelmente servirão apenas, como o texto de Lobato, para ilustrar o anedotário crítico do século.

Tuesday, November 20, 2007

Ainda sobre o Che

Um vídeo muito bom e provocador, pescado no Youtube:

Desfazendo o mito do Che?



O assunto não é exatamente novo, mas merece um registro. Há poucos meses, a Veja deu uma capa sobre Che Guevara. Embora a reportagem não contivesse nenhuma inverdade, não trazia por outro lado qualquer revelação que justificasse o espaço e sobretudo o título dado a matéria. Naturalmente, esta era escrita em tom de editorial, ou seja, era um texto montado para demonstrar uma tese formulada previamente. O que não é necessariamente ruim. É uma ingenuidade bastante comum pensar que textos jornalísticos devem buscar sempre a imparcialidade (se é que ela existe); ao contrário, grandes matérias de revistas semanais geralmente combinam informação e opinião, e cabe ao leitor examinar criticamente o que lê, e se concorda com o que lê.

Mesmo assim...

Já li um bocado sobre a vida do Che e estive em Cuba três vezes. Hoje sou um cético em relação ao projeto revolucionário pelo qual ele deu a vida - e que custou muitas outras vidas, é verdade. Se o ser humano fosse diferente, talvez desse certo. Não deu. Apetites individuais acabam se sobrepondo ao altruísmo necessário a qualquer utopia de esquerda. Mas minha descrença em relação às revoluções marxistas do século passado, das quais a revolução cubana, pelos detalhes e circunstâncias, foi um exemplo heróico e quase milagroso, não diminuiu meu interesse e admiração pelo Che. Suas falhas têm que ser contextualizadas à luz do que acontecia na América Latina no auge da Guerra Fria, e não pinçadas e examinadas com lente de aumento.

(Parêntesis 1: o que acontece hoje na América Latina é completamente diferente; quem representa uma ameaça à democracia não são mais ditaduras militares de direita, mas o caudilho-populismo de esquerda que se instalou no poder em alguns países);

(Parêntesis 2: continuo achando interessante a idéia em si de revolução, qualquer revolução; uma revolução é sempre a afirmação da liberdade do ser humano de desafiar a ordem estabelecida, de mudar seu destino, de criar algo diferente, de fazer História)

Das biografias do Che que li, a mais completa, do ponto de vista da apuração e documentação, é certamente a de Jon Lee Anderson (que conheci pessoalmente, em Paraty, dois anos atrás, ocasião em que não perdi a chance de pegar uma dedicatória no meu exemplar de seu livro). A de Jorge Castañeda, Uma vida em vermelho, é mais interessante do ponto de vista da análise, sobretudo do período final da vida do Che, incluindo sua fracassada experiência africana. Mas, jornalisticamente falando, Anderson dá de dez a zero. Existem muitas outras, mais antigas, mas também mais ideologizadas.

Pelo rigor com que Anderson exerce o jornalismo, achei perfeitamente compreensível a sua insatisfação com a matéria publicada em Veja, e que está circulando entre jornalistas brasileiros. Anderson mostra-se revoltado com a reportagem não por cultivar o mito Che, ao contrário: por ter investigado a fundo o homem Che. Por sua coragem e determinação, por sua convicção, ainda que ilusória, de que seria possível construir uma sociedade igualitária (não é: sempre haverá uma elite no comando, conduzindo e manipulando as massas, mesmo que essa elite se diga de esquerda, como acontece no Brasil da bolsa-cabresto), Che Guevara foi um personagem histórico modelar.

Segue uma tradução da carta que Jon Lee Anderson enviou ao jornalista Diogo Shelp, responsável pela matéria:

"Caro Diogo,

Fiquei intrigado quando você não me procurou após eu responder seu email. Aí me passaram sua reportagem em Veja, que foi a mais parcial análise de uma figura política contemporânea que li em muito tempo. Foi justamente este tipo de reportagem hiper editorializada, ou uma hagiografia ou – como é o seu caso – uma demonização, que me fizeram escrever a biografia de Che. Tentei pôr pele e osso na figura super-mitificada de Che para compreender que tipo de pessoa ele foi. O que você escreveu foi um texto opinativo camuflado de jornalismo imparcial, coisa que evidentemente não é. Jornalismo honesto, pelos meus critérios, envolve fontes variadas e perspectivas múltiplas, uma tentativa de compreender a pessoa sobre quem se escreve no contexto em que viveu com o objetivo de educar seus leitores com ao menos um esforço de objetividade. O que você fez com Che é o equivalente a escrever sobre George W. Bush utilizando apenas o que lhe disseram Hugo Chávez e Mahmoud Ahmadinejad para sustentar seu ponto de vista. No fim das contas, estou feliz que você não tenha me entrevistado. Eu teria falado em boa fé imaginando, equivocadamente, que você se tratava de um jornalista sério, um companheiro de profissão honesto. Ao presumir isto, eu estaria errado. Esteja à vontade para publicar esta carta em Veja, se for seu desejo.

Cordialmente,
Jon Lee Anderson."

Monday, November 19, 2007

Artigo na Folha, novas aquisições etc




- Saiu hoje (na verdade ontem, segunda-feira) artigo meu sobre arte contemporânea na Folha de S.Paulo. Sei que lá vem pedrada.

- Acabei de encomendar dois livros na Amazon, duas biografias de dois ídolos sobre os quais não leio nada há algum tempo. O primeiro é Coltrane: The Story of a Sound, de Ben Ratliff, sobre o lendário saxofonista John Coltrane. O segundo é o terceiro volume da monumental biografia de John Richardson sobre Picasso, Life of Picasso Vol.3: The Triumphant Years, 1917-1932. Depois comento.

Nos vídeos abaixo, Coltrane e Picasso em ação.