Tuesday, January 22, 2008
O mercado como critério estético
A crise da arte contemporânea reflete a crise da cultura como um todo, que por sua vez é a conseqüência direta da redução de todas as esferas da existência ao seu aspecto econômico. Na iminência de uma crise econômica em escala planetária, essa interdependência se faz notar de forma mais clara, sobretudo numa cultura em processo de privatização acentuada. O dinheiro desaparece, a indústria cultural entra em declínio, as cotações dos artistas mediáticos despencam. Aquelas pessoas que só viam a arte como investimento fogem como gafanhotos, sem o menor remorso. Oscar Wilde dizia que um homem que sabe o preço de tudo mas não sabe o valor de nada é um cínico; hoje a definição se aplicaria a um colecionador de arte.
Se o ciclo econômico de prosperidade dos Estados Unidos estiver mesmo terminando, a situação do sitema internacional da arte rapidamente sentirá seus efeitos: galerias fecharão as portas, e as pessoas darão risadas quando lembrarem a que ponto as cotações das estrelas de hoje.
Isso porque um dos efeitos perversos da redução de tudo à economia é que, aos poucos, entra na consciência das pessoas a idéia de que o que é caro é bom (se não fosse bom, não valeria tanto). Mas como o único lastro, a única fonde de legitimação do valor desses artistas, era o seu êxito (que de conseqüência de qualidades da obra passou a ser causa de um mecanismo de inflação especulativa), a diminuição da procura pelas suas obras leva as pessoas a se perguntarem se, afinal de contas, eles eram mesmo tão bons assim. Num mundo onde o mercado é o juiz supremo, e onde todos os valores são reduzidos a preços, perda de liquidez passa a ser sinônimo de perda de qualidade.
Esse filme já passou, no começo dos anos 90, quando as cotações de artistas contemporâneos caíram 65%, na média, e nem todos se recuperaram. Por exemplo, uma tela do artista Donald Sulton (da série Building Canyon) que valia 180 mil dólares em 1990 chegou a ser vendida por 10 mil dólares... em 2006! Você, leitor, pode comprar gravuras de Sulton por 5 mil dólares, no link www.artnet.com/artist/16275/donald-sultan.html.
Vamos ver quais serão as próximas vítimas, e quanto tempo vai passar antes da próxima bolha especulativa. Mas não é preciso ser um gênio para perceber que existe alguma coisa errada com as cotações de artistas contemporâneos. Por definição, esses artistas ainda não passaram pelo crivo do tempo e da relevância histórica - como todos os artistas modernos já passaram. Outra coisa: o critério da raridade - que influencia, por exemplo, a alta cotação do falecido Basquiat - não se aplica a eles, já que continuarão vivos e produzindo sabe-se lá por quanto tempo (se produzirem demais, o preço cai).
Por isso mesmo, estes artistas poderiam ser um ótimo investimento, ainda que arriscado: quem fizesse as apostas certas hoje, colheria excelentes resultados daqui a vinte anos, talvez. Mas a alucinação especulativa faz com que novos nomes já apareçam no mercado com a cotação nas alturas: uma obra conceitual imaterial pode valer mais que um Picasso. Subordinados ao imperativo de lucros rápidos, os ciclos de tempo se achataram artificialmente, de forma que em três ou quatro anos as obras de artistas como Richard Prince (abaixo, seu quadro Bachelor Nurse), Marlene Dumas, Peter Doig ou o chinês Yang Shaobin subiram 400%, graças à voracidade de uma nova geração de colecionadores ricos e à estratégia das grandes galerias (Gagosian, Anthony d´Offay, Saatchi, Sonnabend, Sperone Westwater etc) e de espertalhões como Charles Saatchi. Não existem referências reais e duradouras para cotações tão altas.
Os últimos anos foram de uma euforia verdeiramente impressionante, com uma escalada de recordes nos leilões, ascensões meteóricas nas cotações etc. Mas até que ponto isso levou a uma real difusão das artes ou à consolidação da importância da arte na vida das pessoas? O que aumentou, seguramente, foi a presença na mídia da arte como espetáculo e entretenimento: as exposições de sucesso são aqueles mega-eventos com patrocínio de grandes bancos ou corporações, que fazem marketing com dinheiro público por meio da renúncia fiscal. Enquanto isso, os museus e outras instituições culturais estão caindo aos pedaços, colocando-se em risco seu patrimônio.
Acelerou-se, também, a incorporação de artistas da periferia ao grupo especial do sistema da arte, mas é preciso ser muito ingênuo para acreditar que isto foi uma conquista dissociada de interesses comerciais do próprio sistema. Simplemente se compreendeu que esses mercados emergentes podem ser altamente lucrativos, e o número de artistas desses países é proporcional ao seu crescimento econômico: basta olhar a quantidade de artistas chineses na lista dos 500 mais valorizados do mundo em 2007 (uma espécie de índice Dow Jones das artes, no qual só entraram dois brasieiros: conseqüência da timidez do nosso crescimento "sustentável" - agora é que vamos ver se é mesmo sustentável: a evasão de capitais da Bolsa sugere que não). O fato de muitos negócios serem sigilosos, devido à desregulamentação total do mercado, só piora o grau de especulação e volatilidade deste mercado: muitas vezes as decisões são tomadas com base em rumores, num círculo restrito de players.
Aumentaram, por fim, as relações do mundo empresarial e corporativo com os museus e a produção artística, e seria ingênuo acreditar numa "boa cidadania corporativa". Feiras, Bienais e macro-exposições, a criação de prêmios internacionais de arte por griffes glamurosas como Giorgio Armani, Hugo Boss e Louis Vuitton, além da abertura de filiais de de museus como o Whitney e o Guggenheim em diversos países são os canais estratégicos para essa internacionalização do sistema da arte: em troca de uma vaguinha no circuito, o artista do Terceiro Mundo enquadra sua produção em modelos palatáveis, que por sua vez realimentam a aparência de diversidade do todo. Renovam-se assim estéticas pós-neo-coloniais, baseadas não mais na submissão passiva da periferia aos centros do sistema, mas na sua incorporação a de modelos transculturais e transnacionais de difusão.
É importante ressaltar aqui que o artista e a obra não têm mais a menor importância em si: eles valem como portadores de signos e valores que circulam e movimentam o sistema. Não se trata aqui, portanto, de uma reação "conservadora" a este ou aquele artista (embora eu me sinta livre, é claro, para achar uma bobagem bloa parte da produção contemporânea), mas de analisar como o sistema da arte funciona em seu conjunto, apontar sua dinâmica interna, seus laços com o capital mundial integrado etc. Artistas individuais só são citados como ilustrações dessa pesquisa (eu gostando ou não deles).
Não estou falando dos artistas em si, mas da grade simbólica em que a produção artística contemporânea, boa ou rum, se insere. Ou seja, rejeito de imediato qualquer reação raivosa baseada em a) na premissa de que meu objetivo é falar mal de artistas contemporâneas e b) na premissa de que qualquer contestação à produção artística contemporânea é conservadora ou de direita. Quem pensa assim simplesmente não entendeu nada do que escrevi.
O sistema da arte se transformou no ponto de encontro das elites da nova sociedade neoliberal globalizada, e o mercado de arte em seu bezerro de ouro. A arte contemporânea é hoje um componente natural da sociedade burguesa. Não se trata apenas de uma versão atualizada do velho jogo da busca por prestígio associada aos modismos da hora, movida pelo narcisismo do consumidor em busca de distinção social. Mudou algo muito mais profundo, e isto vem sendo tema de acalorados debates na França há mais de dez anos, envolvendo críticos, artista e filósofos.
(Curiosamente, apesar de ser o terceiro maior mercado de arte do mundo, a França não tem nenhum artista entre os mais vendidos; o melhorzinho é Christian Boltanski. As razões que explicam a baixa cotação dos franceses são: fraca visibilidade; obras teóricas demais, difíceis de vender, como as do movimento Support/Surface; falta de espírito internacional; falta de fluência dos artistas em inglês; pouco espírito de marketing; excessiva e desorganizada ajuda do Estado. Ou seja: razões de mercado, nenhuma de ordem propriamente estética. Observe-se especialmente a questã da ajuda estatal: a arte frncesa, altamente subvencionada, teria perdido sua "ambição"...)
Um sintoma de uma mudança de paradigma é a regressão - em comparação com o projeto moderno - da atitude em relação aos museus e instituições. De Marcel Duchamp aos movimentos dos anos 60 e 70, assistiu-se ao desmoronamento simbólico dos templos da arte, num movimento que parecia conduzir ao óbito os museus e a própria concepção de autoria individual.
Hoje o sistema voltou a sacralizar o museu e o artista - não mais como criador, mas como estrela, como alguém eleito por sua adequação ao sistema e seu talento mediático.
Antes existiam a arte e seus valores, em torno do quais se articulavam jogos de mercado, mídia e poder. Agora são os jogos de mercado, mídia e poder que engendram, fabricam e articulam a arte. O imperioso é "vender" produtos simbolicamente constituídos pela publicidade a um mercado de massa, e nesse processo se misturam negócios privados e supostos interesses públicos, por meio de políticas culturais baseadas na renúncia fiscal, que envolvem relações perigosas entre administradores, curadores, fiscais tributários, profissionais de museus e funcionários públicos. Não é à toa que, cada vez mais, a competência esperada dos diretores de museus consiste na busca de captação e na gestão burocrática do que no seu conhecimento real sobre o patrimônio artístico.
Quando poderosos grupos financeiros se unem a mega-colecionadores,com o apoio de museus, grandes galerias e do próprio Estado, eles não entram no jogo para perder: juntos eles determinam as cotações dos artistas, os estilos em alta, em suma, os movimentos do mercado, independentemente de quaisquer considerações de ordem estética, já que estas não são quantificáveis. O mundo empresarial investe em patrocínios e em coleções corporativas que conferem legitimidade a uma determinada produção artística, fabricando crenças coletivas em relação a essa produção. Nesse espetáculo, é necessária uma renovação veloz do elenco: freqüentemente um artista apontado como gênio na primavera já está obsoleto no outono.
Daí a multiplicação das feiras e bienais, que constituem o chamado mercado primário da arte - teoricamente o lugar onde os novos talentos têm a chance de aparecer. Os eleitos passam à esfera dos leilões públicos (o mercado secundário), onde os mais bem-sucedidos se estabelecem e passam a figurar em listas de cotações internacionais. Uma boa referência sobre o mercado é o site da Artprice (www.artprice.com), sobretudo para artistas nascidos após 1945.
A afirmação de um suposto pluralismo não é mais que a capitalização máxima de todos os nichos de mercado: há propostas para todos os gostos, todas as classes, todas as etnias, faixas etárias e orientações sexuais. Foi-se o tempo das disputas entre diferentes correntes estéticas em torno torno de pesquisas, manifestos ou linhas teóricas; hoje, o relativismo pós-moderno assegura a todas as manifestações o seu direito à existência e à convivência pacífica (e, naturalmente, à comercialização), nivelando tudo por baixo. Em comum, só a subserviência ao mercado, a alienação e a escassez de ideias genuínas num mar de repetições e imposturas.
Vivemos a era da reiteração. Mecanismos vorazes de repetição do mesmo, reiterado em versões cada vez mais caras, esmagam o impuso da criação, ou ao menos limitam drasticamente, sobr a aparência da diversidade, o campo da inovação artística. Hoje ele é dominado pelas variações lúdicas sobre propostas do passado, se possível com um efeito desconcertante ou irônico como o de uma gracinha: transgressões controladas, apropriações de apropriações, citações irônicas e provocações tediosas constituem hoje o vocabulário de boa parte da arte contemporânea de sucesso, isto é, da arte reconhecida pelo mercado e pelas instituições, isto é, da arte oficial.
Esse relativismo estético absoluto engendra no meio artístico uma situação inimaginável em outros setores da indústria cultural, por mais mercantilizados que sejam: a obra por designação. Em nenhuma outra atividade se chegou a esse extremo de achatamento de critérios: não basta eu querer ser cantor, ou ator, ou escritor, para ser aceito como tal; um mínimo de vocação, de técnica, de aprendizado são exigidos (ainda). Nas artes plásticas não. Como rigorosamente tudo pode ser designado como obra, qualquer um pode se afirmar artista, desde que caia nas graças do sistema por meio de uma rede de relacionamentos e uma estratégia de marketing adequadas. Neste contexto, não interessa a ninguém interrogar o sentido das obras, analisar os procedimentos de sua criação ou expor seus emcanismos de validação.
Não é por acaso que, cada vez mais, se difunde uma sensação de tédio diante de obras toscas e sem conteúdo, mas com pretensões pseudo-intelectuais; diante da mistura aleatória e arbitrária de linguagens sem qualquer coerência interna; diante de instalações falsamente provocativas ou contestadoras, rapidamente assimiladas pelas instituições; diante de projetos que misturam a alta tecnologia com a superficialidade do reality show. É como se bastasse fazer algo com ironia para lhe atribuir valor: aproximou-se o estético do estéril. Essa atitude leva a uma situação de indigência, à banalização e à trivialização da arte.
Na ilustração ao alto, Damien Hirst e uma de suas obras, um crânio cravejado de diamantes.
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
3 comments:
perfeito! fico muito feliz em saber que meu pensamento não é solitário.
Olá, Bom texto, parece-me bastante clara a ilusão que foi criada na cabeça doa artistas contemporâneos, especialmente aqueles que não atingiram a mídia ou uma galeria. Esta é a busca dos novos artistas não? entrar no mercado...
Atenção na ortografia...
Ate
essa caveirinha é legal
não gosto quando êle tortura animais
Post a Comment