Saturday, January 05, 2008

Da contestação moderna à privatização pós-moderna

"A ceramic object that is intended as a subversive comment on the nature of beauty is more likely to fit the definition of contemporary art than one that is simply beautiful"
(Peter Timms)

O projeto moderno tinha como valores centrais a novidade e a originalidade. Clement Greenberg, o principal crítico americano do século passado e guru de mais de uma geração, acreditava que existia uma evolução linear entre os diferentes movimentos que se sucederam a partir das vanguardas européias, evolução que culminava no Expressionismo Abstrato de Jackson Pollock, Willem de Kooning e Mark Rothko. É claro que esse movimento também teve muito a ver com a ascensão dos Estados Unidos como potência econômica e cultural - tanto que o Governo americano investiu institucionalmente no Expressionismo Abstrato, como uma arte de exportação (Quem tiver interesse em se aprofundar no assunto deve ler os livros How New York stole the idea of Modern Art, de Serge Guibault, e How, When, and Why Modern Art Came to New York, de Dezayas, Marius ). Mas isso não muda o fato de que o movimento fez a arte americana saltar da infância para a idade adulta.


Outros teóricos, por sua vez, identificavam o auge desse processo na integração entre a arte e a vida promovida pelos happenings e pela Body Art, nos anos 60. Muitas esquisitices foram cometidas em nome da Body Art (Chris Burden se crucificando no capô de um Fusca, ou pedindo a um amigo para dar um tiro no seu braço), mas era um movimento autêntico, que criticava a instrumentalização do corpo humano pela sociedade de consumo. A própria Arte Conceitual, nos seus primórdios, era ainda moderna, no sentido de contestar convenções e valores culturais e sociais: uma das idéias básicas que ela trouxe foi associar a definição de uma obra de arte com o local de sua instalação, negando-se a sua exposição em locais institucionais – essa idéia do site specific foi totalmente abandonada hoje, quando instalações que sugerem uma relação espacial com grandes espaços se espremem entre as quatro paredes de uma galeria ou sala de museu.

Veio a Pop Art, e com ela a idéia de que a tradição do novo não era mais um valor adequado. Para Theodor Adorno, filósofo da Escola de Frankfurt, a Pop Art representou o conluio final entre a arte e a sociedade de consumo (na verdade era apenas o começo): acabavam os limites entre cultura e mercadoria, com a elevação de imagens sem qualquer interioridade, como as latas de sopa de Andy Warhol ou as histórias em quadrinhos de Roy Lichtenstein, à categoria de objeto artístico.


Ao mesmo tempo, o movimento filosófico pós-estruturalista decretava que a realidade é uma ficção, uma construção discursiva e mediática, e que a própria verdade pode ser "desconstruída". Veio também um período de grande afluência na economia americana, e com ela a percepção de que a arte podia ser um negócio altamente lucrativo. Não por coincidência, a criação potencialmente subversiva foi substituída pela tese, agradável ao mercado, de que a partir dali o que valiam eram as releituras, re-significações, reinterpretações de vocabulários e gramáticas do passado. Restou ao artista uma atitude cínica: o foco saiu do objeto artístico em si para a rede simbólica na qual se insere sua produção.

Não surpreende que, nesse contexto, o artista mais revalorizado tenha sido Marcel Duchamp, que na década de 1910 (¡) antecipou esse fenômeno, com a roda de bicicleta e o famoso urinol (aliás, o urinol original, de 1917, desapareceu logo depois da exposição; os que circulam hoje são de uma tiragem de oito, produzida em 1966). Pouco importa que Duchamp estivesse questionando as instituições artísticas, pouco importa a relação do seu gesto com a rebeldia do artista diante de uma europa dilacerada pela Primeira Guerra. Para os pós-modernos anti-historicistas, só interessa o gesto de designar como arte um objeto qualquer, sem qualquer intervenção da mão do artista. Ao lado de Andy Warhol, Robert Rauschenberg foi o artista mais relevante nesse processo de “reduchampização” da arte, pela apropriação de objetos alheios e imagens prontas em suas obras. Resgatando, com um novo sentido, o gesto de Duchamp, a arte abriu de vez as portas para todo tipo de impostura do artista - e todo tipo de esperteza do mercado.

Dos anos 80 para cá, consolidou-se o processo de assimilação do sistema da arte a uma lógica de mercado neoliberal – não limitada, é claro, ao jogo cego das forças de oferta e demanda, mas à produção incessante de significados, valores, gostos e modismos por redes simbólicas e relacionais, que incluem os marchands, colecionadores, galeristas, diretores de museus e uma versão domesticada de críticos, teóricos e historiadores da arte, também eles submetidos, como os artistas, a pressões do sistema.

Na passagem do moderno ao contemporâneo, as relações entre os diferentes atores do sistema da arte mudaram. No passado os marchands se perguntavam, diante de um artista novo: sua obra tem valor estético? Ela resistirá ao tempo? Traz algo de novo à História da Arte? Hoje o foco passou da obra ao artista: sua atitude se enquadra nas regras do circuito institucional/internacional? Ele terá uma relação adequada com os agentes do sistema? Seu valor comercial dependerá dessas variáveis, e não de fatores convencionais como raridade, originalidade, valor estético ou histórico.

Antigamente existia uma correspondência aproximada entre a importância da contribuição artística e o valor de mercado – ou, ao menos, se entendia isso como natural. Hoje a avaliação do mercado não tem mais nada a ver com a qualidade da obra, mas com seu potencial comercial no jogo especulativo da arte. Não é à toa que, num determinado momento, obras de arte deixaram de ter preços e passaram a ter “cotações” – termo tomado de empréstimo da Bolsa de Valores (enquanto, sugestivamente, a palavra “vanguarda” teve um significado originalmente militar). O preço disso é que, na arte contemporânea, a passagem do sucesso ao ostracismo pode ser muito rápida.

Entraram em cena as grandes corporações, e mesmo em países do Primeiro Mundo, como a Inglaterra (imaginem no Brasil), interesses públicos e privados se misturaram de forma confusa, com colecionadores particulares influenciando diretamente a seleção dos artistas apoiados por fundos públicos etc. Para se ter uma idéia do poder que um grande colecionador pode ter nos rumos da arte, basta citar o título de um livro lançado em 1999: Young British Artists: The Saatchi Decade - alusão ao publicitário, colecionador, galerista e marchand Charles Saatchi, criador, na prática, do movimento a que pertencem Damien Hirst e outras jovens estrelas.

Saatchi, que participou da campanha que levou Margaret Thatcher ao poder, trocou a publicidade pelo negócio muito mais rentável da arte contemporânea. Com uma estratégia de marketing vencedora, elegeu quatro ou cinco artistas jovens no começo dos anos 90 - Hirst, Rachel Whiteread, Sam Taylor Wood e Chris Ofili - que usa excrementos de elefante como uma das matérias-primas de seus trabalhos (é dele a Virgem Maria abaixo) - e os promoveu maciçamente, para em seguida vender suas obras por preços astronômicos. Nesse período, a missão dos museus se fundiu com a das galerias e até a da mídia: todos trabalham pelo mesmo objetivo, a alta incessante das cotações.


No Brasil, beneficiando-se das leis de incentivo, grandes empresas (incluindo estatais) passaram a formar coleções e a usar a arte como ferramenta de marketing a um custo baixíssimo, já que as despesas são abatidas do imposto, por renúncia fiscal. Em vez de assumir seu papel na produção cultural, o Estado privatizou a arte, deixando que recursos públicos sejam usados segundo critérios decididos por diretores de marketing de bancos e outras instituições privadas. Enquanto isso os museus não têm dinheiro para pagar a conta de luz nem a segurança, são roubados à luz do dia, estão sujeitos a inundações que estragam seus acervos etc. (Desenvolverei este tema em outro post)

Paralelamente, diminuiu a presença da crítica nos jornais e aumentou a produção de textos acadêmicos, o que pode ser interpretado de diversas maneiras; o relevante é que toda a produção escrita sobre arte passou a desempenhar uma função de endosso, como se fossem textos do encarte de um CD – aliás, com muita freqüência, se transcreve literalmente o conteúdo dos releases. Na era do consumo total, o texto crítico ou acadêmico sobre a arte passou a exercer o papel do certificado de garantia dos eletrodomésticos: podem comprar que é bom.

No Brasil todos esses impasses que venho discutindo são vividos de forma peculiar: ao mesmo tempo em que novo nomes são absorvidos festivamente pelo circuito internacional, dentro do país 99% da classe artística vivem no estado de penúria de sempre: carência de espaços, de incentivos, de debates, de mercado. Mesmo artistas consolidados estão a anos-luz das altas cifras citadas periodicamente pelos jornais (cifras muitas vezes duvidosas, aliás); muitos mal ganham o básico para pagar as contas (salvo aqueles que contam com uma boa rede de relacionamentos nos órgãos competentes e nos conselhos de instituições privadas que patrocinam as artes, é claro). E, o que é pior, fora do circuito seu trabalho permanece confidencial, socialmente invisível, como uma subcultura. Como no samba de Elton Madeiros, uns têm tanto, outros têm algum, mas a maioria está sem nenhum. Nesse sentido, a dedicação dessas pessoas à arte é quase heróica.

Ou seja, aparentemente o sucesso de três ou quatro nomes não está provocando reverberações e capilarizações positivas no estado da arte brasileira, ao contrário. Parece cada vez mais acentuada uma segmentação social e cultural da arte, com uma pequena elite operando em micro-esferas de circulação, isoladas da sociedade brasileira e das questões que a afetam. Outro paradoxo: ao circuito internacional interessa o diferencial "brasileiro" da nossa produção artística, mas aqui dentro qualquer laço da arte com a nossa realidade é imediatamente rejeitado como ilustração folclórica de um nacionalismo ultrapassado.
Do lado de fora, a periferia, a quem essa “grande arte” diz cada vez menos respeito, assiste a tudo indiferente.

Muito pouco do que escrevi acima é questão de opinião: são fatos que estão aí para quem quiser enxergar.

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