Monday, January 14, 2008
A arte globalizada
Nos últimos 20 anos, se multiplicaram tendências que enfatizam aspectos conceituais, contextuais e imateriais da arte, a ponto de hoje elas constituírem a mainstream da produção artística. Práticas pluralistas (obras que enfatizam a relação com o público, artistas que se apropriam de códigos não-artísticos, arte digital ou virtual etc) têm em comum a submissão à dinâmica do mercado globalizado. Até mesmo a culinária está sendo incorporada à esfera da arte: a última Documenta de Kassel incluiu em sua programação uma criação artística do chef espanhol Ferrán Adriá.
Com a moda, a arte contemporânea compartilha alguns aspectos bem conhecidos: a busca periódica por “novidades” que leva à uniformidade; a abolição do senso crítico e do medo do ridículo (ridículo e reacionário é quem contesta, claro); a reciclagem de vocabulários do passado, em freqüentes revivals (o retorno do Pop, do happening, dos nos 70, até mesmo o retorno da píntura!). Mas, se na moda se reconhece que existem as fashion victims, na arte sequer isso: livre do crivo da crítica, o artista de hoje nunca se equivoca, nunca erra o alvo. Outra diferença: na moda o êxito depende da aceitação do público; na arte, nem isso, já que as propostas são feitas e aceitas pelos mesmos agentes do sistema, e a opinião do público é indiferente. Tanto iso é verdade que ninguém questiona a existência de um hiato cada vez maior entre a produção artística e o gosto das pessoas.
Mas, da mesma forma que seria absurdo acusar os estilistas das grandes griffes ou as top-models de participarem de uma conspiração diabólica, não faria sentido atribuir qualquer má intenção aos artistas, individualmente. Se um sujeito coloca cascas de ovo numa mesa de pingue-pongue e o mercado absorve (ver post abaixo), por que ele estaria errado? O artista acredita sinceramente no que faz, ora. Mas, quando o sistema da arte se apropria de sua boa-fé para alimentar a própria dinâmica, não se pode falar de inocência.
Nesse sentido, mesmo que existam artistas autênticos (eu mesmo conheço alguns), o fato é que, no que diz respeito ao mercado, à espetacularização e à especulação alucinada, a arte contemporânea é hoje uma mentira na qual todos fingem acreditar – e com a qual mesmo aqueles que a contestam são obrigados a conviver, já que ela ocupa os espaços materiais e simbólicos, públicos e privados, impressos e virtuais do que se entende por arte.
O chamado pluralismo e a fragmentação de tendências dificultam, curiosamente, qualquer renovação profunda da linguagem artística, já que não existe mais uma narrativa (como no caso do Modernismo) que amarre os (e dê coerência aos) diferentes projetos em curso. O fato é que todas essas práticas, geralmente vendidas como grandes novidades, repetem idéias e conceitos que circulam no meio artístico desde a década de 60, mas descontextualizando-os segundo a lógica do pós-modernismo, isto é, reduzindo-os a um repertório de linguagens à disposição do artista para recombinações irônicas. Por exemplo, quando surgiu a arte "especificamente situada" (site-specific) rejeitava a mercantilização e a institucionalização da arte. Hoje, na prática, os herdeiros dessa vertente se adequaram não apenas ao mercado como também à estrutura burocrática e controlada dos museus, instituições e galerias, que isolam a arte do mundo real.
(Não surpreende, portanto, que esta semana um muro em Londres pintado por Banksy tenha sido comprado esta semana por 420 mil dólares. O comprador terá que arcar com os custos de remoção da obra e com a reforma do muro. O que deveria ser uma estupidez, já que os trabalhos de Banksy são indissociáveis do lugar onde são feitos; mas provavelmente terá sido feito um bom negócio).
Mas não é só isso. Os discursos da arte contemporânea se afinam cada vez mais com o discurso das grandes corporações globalizadas, que promovem a mobilidade, a interconectividade, a ausência de fronteiras e a produção imaterial como os valores que definem a noss época. Os artistas reproduzem e reforçam assim o espírito da globalização neoliberal, cujos principais efeitos têm sido a mercantilização das relações humanas, a ausência de alternativas políticas e a desvalorização do trabalho. Conformados com a impossibilidade pós-moderna de qualquer projeto transformador (como foi o Modernismo), os artistas aliementam a alienação do público e se tornam eles próprios sujeitos alienados, incapazes de refletir criticamente sobre o sistema em que estão inseridos. O mercado reduz a obra de arte e o artista a valores de troca.
Por outro lado, o curador não apenas substituiu o crítico na função de avalista intelectual da arte, como também saiu dos bastidores para ocupar uma posição quase autoral, competindo com os artistas em "projetos" (que, por sua vez, ocupam o lugar das "obras"). Aproximando-se da moda e do espetáculo, a arte contemporânea abre mão do sentido de permanência para valorizar o volátil, o descartável e o ilusório, mesmo quando passa mensagens de cunho social ou político. O diferente é normatizado e enquadrado num sistema de valores familiares e palatáveis ao mercado, numa espécie de world art (no sentido da world music).
Ao mesmo tempo, o sistema da arte promove cada vez mais emtre os artistas bem-sucedidos aquilo que o crítico francês Nicholas Bourriaud chama de estética relacional, isto é, a adoção de práticas, estratégias e métodos característicos da indústria de serviços. Marketing, assessoria de imprensa, todo um lado social prevalece sobre a produção artística em si: não é à toa que artistas e curadores passam cada vez mais tempo viajando. As obras e os projetos são desenvolvidos nas horas vagas dessa agenda lotada. Não existe mais espaço para a reclusão.
Nada disso tem relevância, é claro, diante da alta estratosféria das cotações. Alguns números reveladores: em 1980 o maior valor pago em leilão por um artista vivo foi 198 mil dólares; em 1989, foi 20,7 milhões de dólares (alta de 10.444% em nove anos). Veio a recessão, e até 1995 vendia-se muioto pouco. Em 1996, com o reaquecimento do mercado, o valor máximo alcançado por uma obra de Mark Rothko era 3,6 milhões de dólares; hoje está em 17,4 milhões. O recorde de Andy Warhol em leilões era 3,7 milhões de dólares; hoje é 15,1 milhões. Em 1995 uma obra de Francis Bacon (Portrait of George Dyer Staring into a Mirror) foi vendida por 1,43 milhão de dólares; em 2007, valeu 8,97 milhões. A obra de Maurizio Cattelan The Pope Struck by a Meteorite (imagem acima) foi vendia por 880 mil dólares em 2001; dois anos depois, foi revendida por 3 milhões. Marlene Dumas, promovida pelo colecionador Charles Saatchi, saltou 4,3 mil dólares em 1996 para 1,9 mlhões, em 2007. Em dez anos, John Currin passou de 14,3 mil dólares para 847 mil. E pensar que Van Gogh morreu na pobreza...
Vale a pena repetir: essas cifras dizem mais sobre a saúde (que agora começa a dar sinais de fraqueza) do capitalismo do que com o valor intrínseco da arte. Dinheiro novo demais alimenta a especulação: um executivo americano que tinha 1 milhão para gastar em arte contemporânea dez anos atrás hoje tem 10 milhões. O mundo gira e a Lusitana roda.
(Na imagem ao alto, um visitante ouve a explicação em áudio de um quadro de Barnett Newman)
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