Saturday, February 09, 2008

Estado da arte (2): Eternamente passageira, como a moda e a publicidade


A aliança entre a arte e a moda é cada vez mais explícita: artistas assinam peças de griffes famosas, estilistas se tornam grandes colecionadores, mecenas e, por vezes, até temas de exposições - caso da mega-exposição sobre Giorgio Armani no Gugenheim de Nova York. Os ambientes das lojas de roupas sofisticadas se parecem cada vez mais com os das galerias (e vice-versa), e uma série de fotografias de Andreas Gursky retrata, justamente, o interior de lojas Prada. Fotografias que custam centenas de milhares de dólares cada.

Seria difícil negar que estas mesmas fotografias passariam quase despercebidas num catálogo da coleção de outono/inverno da Prada. A implicação direta disso, mais uma vez, é que cada vez mais o objeto de arte depende de uma designação e de uma mise-en-scène, de um dispositivo de relações cuja função é alertar o público desavisado: Atenção! Isto é arte!

O fascínio mais do que sugestivo pela griffe Prada também marca a obra da artista sjuíça Fleury Sylvie, que designou um par de sapatos como obra de arte (Prada Shoes, foto abaixo). Fleury é uma artista tipicamente pós-moderna, em outro post voltarei a falar sobre ela).


Nesse sentido, o título de um livro da crítica francesa Elisabeth Couturier é revelador: Art contemporain, modes d'emploi. Porque um traço da Arte Conceitual - a prevalência da idéia sobre o objeto - se estendeu, de forma distorcida, a toda a produção artística contemporânea: ela precisa de uma validação exterior, com a diferença de que não o índice de validação da obra não é mais um texto explicativo criado pelo artista, mas o próprio ato da validação executado pelo sistema, que prevalece sobre a obra e o artista. Este é o novo "modo de usar" do sistema da arte.

Ao público resta apenas aceitar e consumir passivamente os signos daquilo que lhe é vendido como arte. Não se espera mais dele sequer um olhar concentrado e inquiridor, mas apenas uma percepção difusa do ambiente que o envolve. Não se trata mais de entender a obra, verbo superado, mas de frui-la - da mesma forma, mal comparando, que se frui a música eletrônica numa rave (em oposição à experiência estética implícita que representava ouvir Beethoven, ou mesmo Jimmy Hendrix); a comparação não é de todo ruim, pois o artista, de certa forma, virou um DJ, ao samplear e remixar coisas prontas. E para isso só se requer formação, talento ou aprendizado numa escala minúscula.

Como uma boa peça publicitária, a arte não deve exigir nada da inteligência crítica e concentrada, mas deve, justamente, apagá-la - pois a própria arte depende cada vez mais deste apagamento. Como a moda, ela se tornou essencialmente ritualística, relacional e transacional. Por um lado, eternamente passageira, num processo de reciclagem sem fim de linguagens e temas. Por outro ancorada em relações sociais que seguem a lógica de clubes exclusivos, de iniciados, de happy few: ou você está dentro ou está fora, e só isso importa (não o que você faz, nem o que o grande público pensa do que você faz). Aquele que é reconhecido pelo sistema e porta valor especulativo adquire o dom de tornar qualquer coisa especial, artística, mesmo as experiências mas banais. Esse coeficiente de "artisticidade" não é substancial, não é inerente à obra: é relacional, é atribuído de fora.

Num ambiente de ausência de qualquer reflexão crítica, operam-se deslocamentos sutis. A aliança da arte com a publicidade, por exemplo, é sutil. Não se trata mais, como na época da Pop Art, de uma apropriação irônica, em "segundo grau", da iconografia publicitária e da adoção de recursos como a serialização, mas da diluição da arte como um todo num ambiente publicitário-mediático, isto é, da adesão incondicional a um mundo que é fabricado e constituído (e não mais apenas representado) pela mídia.

Nesse contexto não existe mais qualquer possibilidade de surgirem correntes em torno de uma pesquisa, de uma linha teórica ou de um manifesto: quem contestar o pluralismo, a coexistência pacífica de múltiplas manifestações abençoadas pelo mercado - que potencializa ao máximo todos os nichos, especulando com todos os tipos de minorias - corre o risco de ser expulso do clube. Essa relativização total leva à neutralidade política, e a neutralidade leva à alienação - qual é o conteúdo político do coelho de alumínio de Jeff Koons ou do tubarão cortado ao meio de Damien Hirst? Ou das maçãs espalhadas pela galeria, do quebra-molas de paçoca e do cachorro que morre de fome? Nenhum.

É uma situação radicalmente oposta à do Modernismo, já que pelo menos desde Courbet, nos anos 1850, os artistas refletiam ou anunciavam revoluções de toda ordem. Hoje o mesmo artista que se julga de esquerda alimenta e se beneficia de mecanismos selvagens de especulação capitalista.

No comments: