Thursday, April 24, 2008

Estranhos embora próximos


A comoção causada pela morte da menina Isabella Nardoni tem explicações que transcendem a barbaridade do assassinato e suas circunstâncias. Crimes igualmente hediondos nem sempre têm a mesma repercussão, na imprensa e na sociedade - o que pode ser atribuído, em parte, ao fato de a vítima ser uma criança, bem como à possibilidade, cada vez mais palpável, de os assassinos serem seu pai e madrasta. Mas isso não explica por que outros crimes abjetos são rapidamente esquecidos – por exemplo, o da adolescente que matou a mãe com 27 facadas em Boa Vista, no dia 7 de abril, para em seguida assistir a um show da banda Calypso, ou outros casos que todos os dias aparecem nos jornais, mas diante dos quais parecemos anestesiados.

O que comove, revolta e mobiliza a sociedade, no caso de Isabella, é a proximidade. O brasileiro médio que acompanha o caso reconhece, em alguma medida, Alexandre e Anna Carolina como seus iguais: quantas pessoas, assistindo ao vídeo em que o casal passeia com os filhos num shopping, horas antes do crime, não se viram naquelas imagens - imagens de uma família normal, de classe média, numa situação cotidiana, numa grande cidade? A mensagem assombrosa que aquelas imagens passam é a de que pessoas comuns, que receberam educação, que têm conforto, que são socialmente integradas podem, de um momento para o outro, se transformar em monstros.

Daí o imperativo de se entender exatamente o que aconteceu, como e por quê; daí a cobrança para que os criminosos não fiquem impunes: pois somente a solução do caso e a punição dos culpados permitirão entender e isolar o componente de agressividade e crueldade potenciais que pessoas aparentemente normais também carregam dentro de si.

O caso Isabella dá medo, porque não se entende, mas também porque está muito próximo de “nós”. Não foi um crime cometido pelos “outros” (como no caso do menino João Hélio), por marginais que não têm nada a perder, mas por gente com quem “nós” poderíamos nos relacionar cotidianamente. Esta proximidade é angustiante, pois sugere que o crime não decorreu de uma situação de exceção, estranha ao nosso mundo, ao contrário: ele se deu numa situação de normalidade, mesmo levando em conta as peculiaridades do caso (já que fazem parte da normalidade aceitável o convívio entre filhos de uniões diferentes, o ciúme e mesmo os desentendimentos de casal).

Num ponto fundamental, porém, uma característica dos criminosos – e neste ponto eles voltam a se distanciar de “nós” para se transformar em “outros” - não deveria ser normal: justamente, a incapacidade de reconhecer na vítima um ser humano igual, com igual e sagrado direito à vida. Mas a psicopatia dos assassinos também sinaliza uma psicopatia social: num ambiente de crescente ambivalência moral, em que as fronteiras entre certo e errado são cada vez mais relativizadas, em que os únicos valores reconhecidos são aqueles associados ao êxito individual, esta atitude de indiferença pelo outro não é tão estranha – ainda que nem sempre resulte em tragédias. Quanto mais frágeis são os valores morais de uma sociedade, menor fica a distância entre um impulso agressivo e um ato criminoso.

3 comments:

T said...

“O que comove, revolta e mobiliza a sociedade, no caso de Isabella, é a” mídia. A mídia que outra vez satura, repete e faz a notícia virar novela, jogando mais um 'reality show' na mesa de quem já não tem estômago, mas engole, respira, vive e sonha ‘o caso Isabella Nardoni’. Anestesiado a ponto de acreditar-se desvendando o mistério capítulo a capítulo, como Sherlock Holmes, “o brasileiro médio que acompanha o caso” tem assunto para o dia e para a noite.
Enquanto isso, assuntos urgentes aguardam a atenção na pauta da ordem social e política. E “o componente de agressividade e crueldade potenciais que pessoas ... normais carregam dentro de si” é alimentado por fantasias e delírios, pela satisfação de ver de perto a desgraça, a morte narrada passo a passo a cada hora do dia, o sofrimento alheio. E de sofrer junto, mas nem tanto, porque essa necessidade “de se entender exatamente o que aconteceu, como e por quê” parece mais um desejo incontido de ver a ‘malhação do judas’ do que a busca de uma verdade, de justiça e da paz interior. Pois, os olhos atentos às imagens no aguardo das ‘boas novas’ legitimam mais uma vez os meios de comunicação como a voz unânime da razão, e assim se incrimina e sentencia a partir de boatos e suposições tão suspeitos quanto os indiciados, perseguidos e torturados de véspera.

Esse assunto (a manipulação da emoção pela mídia) certamente poderia abrir aqui um debate longo e muito interessante.

Tatiana

Unknown said...

pelo visto o tema não mudou - arte contemporânea
capatalismo selvagem - se pagarem sites de arte para colocar fatos como esses como performances, não tenha dúvidas que colocarão, sem questionar
Ro, bjs

@priscilavelho said...

Adorei o texto, expressa bem o sentimento!