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Revi ontem no cinema A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo. Foi realizado em 1966, quando os acontecimentos que relata - a luta pela independência argelina - ainda eram recentes. É uma obra-prima - como também é Queimada, com Marlon Brando, do mesmo diretor. O que não muda o fato de que o filme pede, hoje, uma leitura diferente da de 20 ou 30 anos atrás.
Naquela época, não havia dúvidas de quem eram os bandidos e os mocinhos do filme, nem de quais eram as questões em causa. O povo argelino era o herói, o colonizador francês o vilão. É claro que Pontecorvo defendia a causa da libertação argelina, mas seu filme não é tão partidário quanto parecia, quero dizer: era fácil, para o espectador da época, vibrar com os atentados terroristas cometidos pela FLN; para o espectador de hoje, eles parecem tão hediondos quanto a tortura e outros crimes praticados pelos militares franceses.
É justamente por isso que A Batalha de Argel conserva sua força. Pontecorvo mostra os dois lados da horrorosa escalada de violência que tomou conta do país, expõe seus mecanismos sem aprová-los. É, nesse sentido, um filme mais verdadeiro que qualquer documentário sobre o tema (aliás, desconfio cada vez mais da maioria dos documentários). O que importa ao cineasta italiano não é dar razão à insurreição argelina, mas mostrar como ela foi possível, e como ela aconteceu.
Por outro lado, hoje já se sabe que outros fatores, econômicos e políticos, foram decisivos no processo de descolonização, além das insurreições locais: manter colônias nos moldes do século 19 estava se tornando inviável, e a independência de países como a Argélia seria de qualquer forma inevitável - e mesmo desejável.
Mesmo assim, Pontecorvo soube realizar um filme permanente numa época em que a tentação panfletária era fortíssima. O mundo era cenário de batalhas ideológicas sem fim, para o bem e para o mal. A adesão idealista a uma causa era algo rotineiro. O que mudou, se as questões de fundo que geraram aquelas batalhas continuam? A desigualdade, a exploração, a exclusão, o abismo social entre ricos e pobres podem ser até maiores hoje, mas no nosso mundo globalizado parece quimérica a emergência de um "contrapoder" real, seja qual for o poder de que estivermos falando. É como se as coisas tivessem, de fato, chegado a um fim, como se estivéssemos num "pós-escrito" da História. Ou não? E isso é necessariamente ruim, ou bom?
Para quem mora no Rio de Janeiro, outro aspecto que chama a atenção no filme é a geografia de Argel: a "ville europeènne" parece uma Zona Sul, ameaçadoramente cercada pela Casbah, isto é, por uma maioria esmagadora de excluídos que também tem que viver, e a violência é aos poucos incorporada à rotina de todos. Não há invasor a expulsar, nem independência a conquistar, mas ainda assim a cidade mostrada no filme parece estranhamente familiar. Argel é aqui?