Saturday, November 17, 2007

Duas faces de Pirandello




Há poucos dias achei uma entrevista que fiz com Pierre Bourdieu da qual só me lembrava vagamente. Agora achei um texto meu sobre Pirandello do qual rigorosamente não me lembrava. Foi publicado no extinto Jornal de Resenhas, da Folha de S.Paulo, em 2001:

Aceitação e evasão:
Duas faces de Luigi Pirandello

Um, Nenhum e Cem Mil
Luigi Pirandello
Tradução: Maurício Santana Dias
Apresentação: Alfredo Bosi
Cosac & Naify

O Velho Deus - Novelas Para um Ano
Luigi Pirandello
Tradução: Bruno Berlendis de Carvalho
Berlendis & Vertecchia

LUCIANO TRIGO

"Nós não somos aquilo que pensamos ser, mas apenas aquilo que, a cada vez, nos construímos". "A vida é uma fúnebre farsa, em que nós -mais ou menos inconscientes- representamos os papéis mais diferentes, pobres marionetes nas mãos do destino cego." Essas duas declarações de Luigi Pirandello poderiam servir de epígrafes, respectivamente, ao romance "Um, Nenhum e Cem Mil" e à coletânea de contos e novelas "O Velho Deus", recém-lançados no Brasil.

Romance que, sob a aparência de um divertimento despretensioso, lança questões profundas sobre o conflito entre o complexo conjunto de afetos e aspirações de cada indivíduo e as máscaras sociais que a sociedade o obriga a assumir, "Um, Nenhum..." é marcado por um humor amargo e corrosivo em relação ao mundo dos pequenos-burgueses, das pessoas medíocres e obscuras que se deixam arrastar pela circunstâncias, sem comandarem seu próprio destino -sem, como acentua Alfredo Bosi, "ver-se vivendo", característica que distingue o protagonista-narrador Vitangelo Moscarda.

Moscarda mergulha numa crise existencial quando descobre, pela mulher, que seu nariz pende para a direita. A partir desse episódio banal, ele passa a viver atormentado por dúvidas e desconfianças sobre si mesmo e os que o cercam, angustiado sobretudo pela consciência das máscaras que falsificam permanentemente a identidade de cada indivíduo. Moscarda mergulha numa especulação metafísica sobre o desajuste entre a sua vida interior e a realidade objetiva: qual é a relação entre o seu "eu" e a sua imagem pública?

Outra vida

Solitário, introspectivo e rebelde, Moscarda avança até o limite da loucura em seu questionamento bizarro da realidade. Nesse sentido, é primo-irmão de Mattia Pascal, dividido entre o impulso de viver e a impossibilidade de se libertar dos grilhões sociais, entre a felicidade da recusa e a impossibilidade de evasão. O anti-herói do romance "O Falecido Mattia Pascal" (1904), vale lembrar, aproveita-se da falsa notícia de sua morte para mudar de nome e tentar viver uma outra vida, mais feliz porque livre das convenções sociais.

Mas ele descobre que, sem uma identidade civil, essa segunda chance lhe é negada, pelos motivos mais prosaicos -não pode se casar nem dar queixa de um roubo, por exemplo. Quando decide voltar à sua cidade e esclarecer tudo, é rejeitado pela sociedade, pois a nova máscara de Mattia Pascal é a de um morto. Moral da história: na prática, cada indivíduo é somente o que os outros pensam que ele é, e não o que ele acredita ser, o que significa dizer que todos são coagidos a viver à margem de si mesmos. É contra isso que Moscarda se revolta, causando polvorosa na cidade de Richieri quando rejeita a máscara de banqueiro e usurário -e paga seu preço.

Sem querer estabelecer laços de determinismo entre vida e obra, alguns aspectos biográficos podem lançar luzes sobre o romance. Por exemplo, como a mulher do protagonista de "Um, Nenhum", Maria Antonietta Portullano, com quem Pirandello se casou em 1894, pertencia a uma família próspera. O desequilíbrio de Maria Antonietta, em constante competição doméstica com a filha Lietta -ela suspeitava de uma ligação amorosa entre o marido e a filha-, tornou-se desesperador, resultando em duas tentativas de suicídio e na internação da mulher. Em que medida essa difícil situação familiar não terá inspirado Pirandello a criar Moscarda?

Além de explorar os temas da tensão entre a face particular e a máscara pública e do homem como animal que interpreta um papel, "Um, Nenhum" é um livro escrito em atrito constante com a linguagem, pondo em questão sua natureza e seus limites, trazendo embutida uma discussão teórica valiosa sobre as possibilidades da narrativa e seu entrelaçamento com a reflexão filosófica. Incorpora assim alguns temas de peças como "Cada Um a seu Modo" e "Seis Personagens à Procura de um Autor".

"Um, Nenhum e Cem Mil" foi publicado em capítulos, em 1926, e é o último romance de Pirandello. A edição brasileira traz ainda uma preciosa entrevista concedida pelo autor a Sergio Buarque de Holanda, em 1927.

O diálogo entre a prosa e o teatro também está presente nos textos reunidos em "O Velho Deus", escritos ao longo de quatro décadas. A fidelidade do autor ao gênero -continuou a escrever novelas mesmo quando entrava em crise criativa no teatro- não muda o fato de que muitas desses textos curtos eram uma espécie de exercício de temas e formas que seriam desenvolvidos em suas peças e narrativas mais longas. "O Velho Deus" mostra a face menos experimental e mais humanista do escritor, que afirmou certa vez: "A minha arte ensina cada indivíduo a aceitar o seu fardo com submissão e humildade".

Os protagonistas, aqui, são seres humildes, de vida precária, para quem não se coloca a questão da tirania da máscara que o olhar alheio impõe, já que estão preocupados com problemas mais básicos da existência. Inspirados sem dúvida nos habitantes da aldeia de Chaos, na Sicília, onde Pirandello nasceu em 1867, são textos mais sofridos, áridos, por vezes chocantes, narrados de forma linear, quase sem as machadianas intervenções diretas do narrador presentes no romance. No conto que dá título ao volume, um velho franzino, pressentindo a morte, dedica seu último verão a visitar todas as igrejas de Roma. São situações banais, que registram o cotidiano da gente simples que tem a sabedoria de aceitar a vida.

Pirandello pretendia reunir em suas "Novelle per un Anno" 364 textos em um só volume, um para cada dia do ano. O projeto permaneceu inacabado. Em 1936, quando estava nos estúdios da Cinecittá trabalhando na adaptação de "Mattia Pascal" para o cinema, o escritor pegou uma pneumonia e não se recuperou mais, morrendo em 10 de dezembro.

Embora seja naturalmente lembrado sobretudo por sua importância como dramaturgo, Pirandello foi um precursor da literatura moderna. Entre outras influências, antecipou-se aos existencialistas em sua angústia sobre a natureza da existência, e a Samuel Beckett, na reflexão sobre o isolamento do homem e a desintegração da personalidade.

Luciano Trigo é jornalista e escritor, autor de "O Viajante Imóvel - Machado de Assis e o Rio de Janeiro de seu Tempo" (Record)

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