Monday, November 26, 2007

Freud e a cocaína





O ponto principal do post Verdades e mentiras sobre a Lei Seca é que não se pode nivelar os efeitos de todas as drogas, lícitas e ilícitas, como argumento para a descriminalização. Não existe uso social do crack e da heroína, por exemplo: em duas doses o usuário cria uma dependência química e psicológica sem volta. Por isso há quem diga que o crack foi criado para dizimar os negros pobres nos Estados Unidos.

Além disso, não custa repetir: o problema maior não é o uso da droga em si, mas a sua articulação, no Rio de Janeiro de hoje (não na Chicago dos anos 20, não na América pré-colombiana, não na Viena do final do século 19), com a economia cruel do narcotráfico, que destrói diariamente vidas de jovens, sobretudo nas comunidades pobres, cria um poder paralelo que manda mais que o Estado e gera violência e dor em escala industrial. Além disso: acaba com a qualidade de vida da cidade e afeta a própria economia: inúmeras empresas deixaram o Ro de Janeiro porque funcionavam em áreas de risco, dominadas pelo tráfico.

Ignorar isso é viver num faz-de-conta. O filme Tropa de Elite foi tão atacado porque traz esta mensagem com todas as letras: o usuário é cúmplice. Não é o culpado, é muitas vezes a vítima. Mas também é cúmplice.

Volto ao tema porque o primeiro comentário sobre o post repete um equívoco que merece uma retificação.

Freud usou cocaína com fins terapêuticos, como parte de suas pesquisas em busca de tratamentos eficazes para os distúrbios nervosos. Ele se interessou pela coca como medicamento, e isso num período anterior ao desenvolvimento da psicanálise, quando usou a si mesmo como cobaia em diversas experiências. Na época da obra fundadora A Interpretação dos sonhos (1899), Freud já reconhecia que a cocaína provocava intoxicação e outros efeitos colaterais graves, abandonando seu uso terapêutico.

Freud não era, portanto, "fascinado" pela droga, e nem mesmo escreveu "um livro" sobre o tema, mas três artigos científicos, em épocas diversas, sobre propriedades psicofarmacológicas da substância. Ele menciona, por exemplo, mudanças de humor e percepção, mas ignora o aspecto da dependência, mais tarde cientificamente comprovado e hoje inquestionável. Os textos foram reunidos muito depois por sua filha Anna Freud, no volume The cocaine papers, mas quem tiver a honestidade intelectual de os ler verificará que não se prestam de forma alguma à apologia da droga.

Diversos motivos podem ter levado Freud a rejeitar a cocaína: a suposta morte de um paciente por overdose; o vício de seu amigo Keller, também médico, que emigrou para os Estados Unidos e foi dignosticado como portador de distúrbios da personalidade causados pela cocaína; a observação de que alguns pacientes entravam em convulsão, tinham severas insônias, perdiam o controle sobre o próprio comportamento. Além disso, Freud descobriu que a cocaína injetada não funcionava como um substituto para a morfina, como analgésico, pois o organismo pedia sempre uma dose maior. Por fim, começou a verificar, embora com as limitações da medicina da épcoa, os danos que a droga causa às funções cerebrais e a outros órgãos (fígado, baço, pâncreas, coração, sistema linfático, sistema digestivo, sem falar na perda da ereção e do descontrole emocional).

O problema é que boa parte dos usuários é incapaz de perceber em si mesmo qualquer desses efeitos colaterais da cocaína, simplesmente porque perde a noção da realidade. Freud, aliás, é uma ótima referênca no debate sobre a droga, porque este envolve um mecanismo de negação inconsciente de verdades cristalinas, por parte de quem a defende e consome.

1 comment:

Fabiano said...

Fico feliz de ser o primeiro a comentar no seu post, sua informação é de valia e com certo embasamento, coisa rara na midia tradicional. No entanto, a informação que "duas doses são suficientes para dano irreversivel" nao procede. Eu mesmo, ( e outros em minha companhia) fizemos uso de crack desde sua chegada em nossa regiao, 1998, esporadicamente até 2003, onde fiz uso diario por 3 meses seguidos. O fundo do vicio de qualquer droga é a automutilação. Esta é um apelo para que os outros o vejam, uma carencia afetiva, por assim dizer. Aqueles que usarem a droga fora deste quadro poderão, mais tarde, parar de usar e viver a vida normalmente. Claro que não podemos desconsiderar o fator genético apontado recentemente pelos cientistas. Neste caso, conheço um grupo de 4 pessoas (5 comigo) que possuem de fato este gene recessivo. Hoje eles sao medicos, publicitarios, e um deles até um ator de TV de um canal de grande audiencia.
Obrigado pelo espaço
abs
Fabiano Dias