Friday, November 30, 2007

Museu da transgressão

Tentei mudar de assunto, mas chegou agora um texto do próximo livro do ARS, e como é complementar a algumas idéias já postadas aqui, destaquei os trechos diretamente relacionados à arte.

MUSEU DA TRANSGRESSÃO
Affonso Romano de Sant'Anna

Um dos princípios da arte moderna é a transgressão. Transgredir tornou-se o primeiro e, em alguns casos, o único mandamento da modernidade. No princípio, quando derivava da necessidade de sair do aprisionamento do sistema clássico, a transgressão estética era árdua e sujeita à penalidades.

Mas um dia a transgressão virou norma. Como assinalou o poeta e crítico
Eduardo Sanguinetti, que foi vanguardista do "Grupo 1963", na Itália, esse movimento de transgressão teve dois momentos no século passado: o heróico e o cínico. O primeiro consistiu na luta pelo poder, o segundo na manutenção paradoxal desse poder.

Sim, a transgressão virou norma. Qualquer artista iniciante começa por transgredir. Ainda não sabe as regras, mas já as renega. E cria-se uma situação absurda. Transgredir o quê, se antes dele, no passado recente, só havia transgressores? Transgredir a transgressão? Ora, isto, a rigor, leva a um paradoxo, pois a única maneira de transgredir radicalmente a transgressão é contestar a transgressão, reinstalar uma certa ordem e refazer o sistema.

Mas se alguém contesta a transgressão é logo taxado de conservador, de reacionário e retrógrado . Como sair dessa armadilha da modernidade? Passamos tanto tempo achando que o transgredir nos instalava na modernidade, que receamos repensar a transgressão temendo com isto ser expulsos da modernidade. (...)

Na arte exacerbou-se o princípio da transgressão já exposto no futurismo, dadaismo e outros movimentos. A arte saiu de vez dos museus, espalhou-se em instalações pela natureza. O teatro foi para a rua, para qualquer lugar configurando happenings e performances. Até o lixo virou arte de luxo. Tudo passou a ser música: John Cage enche de espectadores um prédio em Nova York para ouvir um concerto vivo de buzinas e barulhos de carros que passam pela avenida. Disjecta membra: fragmentação, cadáveres expostos, sangue, esperma e fezes viram obra de arte na bienais e galerias, e o cinema se compraz em catástrofes cada vez maiores, como contraparte estética à tragédia cotidiana. No palco expõe-se o corpo nu, e exibem-se cruamente relações eróticas nos meios de comunicação. (...)

No princípio da modernidade os artistas diziam como Mário de Andrade: "Eu insulto o burguês!" . Mas paradoxal e ironicamente os burgueses contornaram, domesticaram e deliciaram-se com os insultos, com as transgressões. Compraram os quadros, foram aos concertos e construiram museus fabulosos para armazenar os impropérios éticos e estéticos.

A transgressão virou peça de museu. A universidade já absorveu, cum laurea, Sade e Masoch, através de Foucault, Barthes e Bataille. Hoje a transgressão está de tal modo catalogada, que pode-se escrever a história da transgressão. E pior: visitar o Museu da Transgressão.

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