Saturday, November 03, 2007

Será arte?









Interessante matéria do jornalista Ivan Cláudio na Isto é desta semana toma como pretexto duas exposições para levantar questões sobre os rumos da arte contemporânea. A instalação Ainda viva, da paulista Laura Vinci, espalha sete mil maçãs sobre uma mesa de mármore branco e o chão de cimento de uma galeria; Quebra-molas, da carioca Débora Bolsoni, reproduz um redutor de velocidade de automóveis feito com uma tonelada de massa de paçoca de amendoim. As duas têm em comum a deliberada efemeridade, o recurso a comestíveis como matéria-prima e o apêlo ao olfato do visitante.

A revista pediu a Ferreira Gullar, poeta e crítico de arte, que comentasse as obras. Aspas:

Essa produção vai morrer aí e nem tem mesmo como sobreviver. Só nesse ponto eu concordo com esses artistas: não vai sobrar nada dessa produção contemporânea.

Trata-se da arte da boa idéia, da caninha 51. Esse tipo de trabalho não tem artesanato, não tem técnica, não tem linguagem. Já se usou de tudo: balde, bacia, ovo frito. É uma falta de imaginação, uma grande bobagem que não me interessa. Prefiro ficar em casa lendo Hamlet.

Uma mancha no chão, uma água escorrendo, tudo isso é expressão, mas não é arte. Se alguém pisa no meu pé e eu grito de dor, isso é uma expressão, mas não arte.


As artistas se justificam falando da transitoriedade das coisas vivas, de tentativas de simbolização etc.

A arte contemporânea é outro tema em que é difícil tornar produtivo qualquer debate, pois sempre se cai num Fla-Flu, isto é, vira uma questão de adesão incondicional de torcedor, mais que de reflexão crítica. Dando nome aos bois, o que temos hoje são, de um lado, críticos, como Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant'Anna, que contestam a legitimidade e o valor de instalações como as de Laura e Débora, e de outro lado artistas que rejeitam em bloco este julgamento como reacionário e conservador.

O problema não é saber quem está com a razão, mas constatar que desse atrito não sai nenhum desdobramento interessante. Por quê? Algumas hipóteses:

- Os artistas são auto-suficientes: ignoram solenemente crítica que os contesta.
- Os críticos perderam a importância que tinham no processo de legitimação da produção artística.
- Hoje, para um artista, importa muito mais se inserir numa rede de relações composta de curadores, marchands e galeristas do que obter reconhecimento crítico.

A noção de valor em artes plásticas é altamente subjetiva. Mas é também condicionada pelo contexto histórico-cultural e pelo modelo de relação entre economia e cultura que estiver prevalecendo. O sucesso de um artista hoje não depende somente, nem mesmo principalmente, do valor intrínseco do que ele produz, dos méritos plásticos ou estéticos de sua obra, mas sobretudo de sua capacidade de inserção num sistema complexo de seleção, que está cada vez mais distante da arte e cada vez mais próximo do mercado, do consumo e da moda - mesmo quando veste o surrado disfarce da transgressão, aliás outra palavra assmilada pelo mercado, pelo consumo e pela moda.

Tendo a simpatizar com as sete mil maçãs de Laura, o quebra-molas de paçoca de Débora me interessa menos. Mas isto é questão de gosto. O que parece preocupante é que esse tipo de produção - desligada da realidade, das questões contemporâneas, de compromissos, da História, do presente, em suma, da vida real - monopolize os espaços da arte hoje. É uma produção cujo principal defeito, para mim, é ser inofensiva. Pode até trazer fama, viagens e dinheiro a quem a faz, mas é disso que se trata?

Gullar, testemunha engajada dos caminhos e dos impasses da arte há mais de 50 anos, é um resistente. Ele se recusa a aceitar as coisas como elas são, faz parte de uma geração em que o debate intelectual vigoroso, mesmo sobre temas abstratos, eram questões de vida ou morte. Duro para ele deve ser observar que as coisas que diz não reverberam, que suas idéias são recebidas com indiferença além do seu círculo de admiradores, em suma, que não mudam nada. Por ironia, é exatamente o que acontece com a arte contemporânea: não reverbera, é recebida com indiferença fora de círculos fechados, não muda nada.

A diferença é que Gullar está insatisfeito com o estado das coisas, já os artistas parecem muito satisfeitos.

1 comment:

Anonymous said...

Meu caro:
Como artista plástico, quero concordar inteiramente com essa piorréia de "obras conceituais", que no fim das contas nada conceituam - bastam a seus "criadores", atendem à mídia - numa relação direta com sua bombasticidade. Fico imaginando o "artista conceitual" a passar horas bolando uma idéia inusitada, algo que choque, que cause impacto. Depois... bem, depois, irá (o "artista") pespegar um significado à sua "obra". Coisa de oportunista, na maioria das vezes. Coisa descolada da realidade. Pseudo-elitismo puro. Um saco! E viva Gullar, com sua coragem. Evoé Sant'Anna por sua posição determinada e lúcida. E, Debora e Laura, fariam melhor se distribuíssem a grana (ou as maçãs/paçocas) pra quem está precisando mais - a multidão de pobres e desassistidos que grassam em nosso pobre país.
Abraços calorosos e parabéns pela beleza de blog.