Friday, December 28, 2007

Arte e neoliberalismo





Comecei a escrever sobre arte contemporânea neste blog, no início de novembro, motivado por intuições de diletante e por curiosidade jornalística. Graças às reações que chegaram e à coincidência de alguns fatores (crise da Bienal de S.Paulo, roubo no Masp, destaque dado pela mídia a obras e artistas excêntricos etc), percebi que esta é uma área praticamente abandonada pelo pensamento no Brasil. Quanto mais leio a respeito, mais verifico que, no nosso país, o terreno para a investigação da arte contemporânea em qualquer de seus aspectos (estético, mercadológico, econômico, simbólico) é fértil e inexplorado.

Mais importante do que especular sobre as razões deste bloqueio da reflexão é trazer temas para o debate, o que venho tentando fazer aqui. O curioso é que muitos artistas que inicialmente reagiram com indignação aos meus textos agora passaram a ignorá-los, o que é revelador: em vez do diálogo ou da contestação racional, tentam fazer de conta que o questionamento não existe. Não tem problema: não é para eles que escrevo, mas para todo mundo que, dentro ou fora do meio, tenha interesse em pensar e discutir livremente sobre arte. E tem bastante gente interessada.

Pois bem, um tema que irrita particularmente algumas pessoas é a articulação evidente da arte contemporânea com o capitalismo neoliberal mais descabelado. É compreensível a irritação: o artista gosta sempre de se colocar à esquerda, e qualquer raciocínio que demonstre que a vertente dominante da arte se vendeu às regras do mercado globalizado é recebida como ofensa pessoal. (aliás isso não acontece só nas artes plásticas: deve ter sido duro para muita gente ver William Burroughs aparecer num anúncio da Nike, alguns anos atrás).

Este é um assunto que, lá fora, vem gerando pesquisas e discussões interessantíssimas. Acabei de ler alguns livros reveladores, sobre os quais vou falar em futuros posts. Um deles, Privatização da cultura, já foi traduzido no Brasil (e solenemente ignorado por todos os jornais e revistas; não estou insinuando uma conspiração, acho que foi incompetência mesmo). Segue a sinopse:

Privatização da cultura - A intervenção corporativa nas artes, de Chin Tao Wu. Boitempo Editorial, 408 páginas, R$56)
O crescente papel das grandes empresas e seus interesses privados no mundo das artes na produção, circulação e nas instituições culturais no mundo, submetendo-a aos seus interesses, sob a ótica do marketing, do investimento em ativos ou da diplomacia de negócios. Este é o delicado e pouco explorado tema deste livro inovador da autora taiwanesa Chin-tao Wu, a partir de sua pesquisa na Universidade de Londres sobre as mudanças ocorridas nos sistemas de apoio às artes nos Estados Unidos e Reino Unidos no final do século XX. A obra analisa os efeitos das políticas para o setor dos governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, que estabeleceram marcos como a redução dos investimentos governamentais diretos e do controle público, e o crescimento dos incentivos fiscais, fundações privadas, do marketing cultural e dos institutos de empresas atuando no setor. A cultura deixa de ser uma área de enriquecimento do espírito, para se tornar mais um setor que tem que "se sustentar", como "negócios privados", mas que seguem, ainda que de forma às vezes dissimulada, subsidiados pelo poder público. A partir desta mudança na postura dos governos e sociedades em relação à influência do mundo dos negócios na arte, Chin-tao explora o peso das empresas e seus dirigentes nos conselhos curadores, inclusive de instituições públicas como a Tate Gallery, e as crescentes coleções privadas, em poder das próprias empresas. Como estas fazem da arte, também, seu negócio financeiro e de imagem. E como os próprios museus se tornam cada dia mais orientados e parecidos com empresas. Como no caso, estudado no livro, das "franquias" do museu Guggenheim, que hoje já possui até uma filial dentro de um cassino em Las Vegas. E quais são os efeitos disso na produção artística. Um debate essencial para a discussão de cultura no Brasil das leis de incentivo que promovem o controle privado com recursos públicos, após a falência da polêmica Brasilconnects, da imensa coleção privada de Edemar Cid Ferreira, e dos projetos imobiliários de um Museu de Artes de São Paulo em crise. O livro traz ainda um texto inédito sobre financiamento público à cultura, escrito por Danilo Santos de Miranda, Diretor do Departamento Regional do SESC no Estado de São Paulo.

A capa mostra Van Gogh segurando um cartão de crédito - imagem retirada de um anúncio do banco holandês ABN-AMRO.

É importante observar que este livro fala principalmente do aspecto privado do problema, isto é da entrada agressiva e estratégica das grandes corporações e outras instituições no circuito internacional da arte. Mas existe outra questão igualmente importante, sobretudo no Brasil, onde interesses públicos e privados muitas vezes se misturam: a participação do Estado no sistema da arte, suas políticas, estratégias e critérios de incentivo e reconhecimento, seus mecanismos de destinação de fundos públicos etc. O fato é que, como em tudo na vida, quem banca controla, seja o dinheiro público ou privado.

A ação e o impacto dessas duas frentes só têm feito crescer nas últimas décadas. Minha hipótese é que isso explica em parte a "domesticação" da produção artística contemporânea, isto é, a prevalência de artistas que produzem uma arte alienada da sociedade, da política e de qualquer questionamento real do sistema em que está inserida (mesmo quando se disfarça de instalações "subversivas"). Daí a força crescente das obras de matriz conceitual, valorizadas pelo sistema (e simbolicamente construídas pela publicidade) justamente por seu conteúdo inofensivo, ou por sua falta de conteúdo. Daí também a clara ambição comercial de artistas que se assumem como celebridades mediáticas e buscam abertamente o enriquecimento, como Takashi Murakami, Donald Judd e o Jeff Koons, que já vendeu uma obra por 5 milhões de dólares.

Não foi à toa que, quando esteve no Brasil em 2004, o artista americano Frank Stella declarou: "Para os artistas que estão começando hoje, é mais importante ter um bom agente do que talento. Aumentou muito o número dos que conseguem um lugar ao sol, mas são pouquíssimos, infelizmente, os que prestam". O que Stella veio fazer aqui? Entregar uma encomenda de 500 mil dólares ao banqueiro paulista Edemar Cid Ferreira, um painel de quase 15 metros de comprimento.

Desde a década de 80 - coincidentemente, ao mesmo tempo em que o neoliberalismo se instalava como ideologia homogênea em nível planetário - as grandes corporações passaram a ter influência ativa no mundo da arte, comprando e encomendando obras cada vez mais caras (um objeto de arte vendido por um preço exorbitante eleva o status do comprador e do artista), patrocinando programas de bolsas, abrindo galerias e espaços de exposição, integrando conselhos de instituições artísticas, etc. Tudo isso faz com que cada centavo aplicado em mecenato tenha um enorme retorno.

É claro que a injeção de capital no mundo da arte tem um lado bom, que é evidente. Seu lado ruim é menos visível: a subordinação da arte aos negócios; dominada pelas corporações, a arte tende a seguir cada vez mais a lógica do marketing, da publicidade, da celebridade, do espetáculo; a experiência estética é reduzida à moda e ao consumo passivo; mega-exposições se sucedem nos grandes museus como os blockbusters no cinema: sem reflexão crítica, sem hierarquia, sem contestação.

Numa sociedade que reduz toda a cultura ao entretenimento, a arte não poderia ficar de fora. Revela-se assim o caráter conservador e reacionário do pós-modernismo: à "tradição do novo" criada pelo Modernismo, ele contrapôs um movimento de dispersão, de reelaboração dócil de elementos do passado. Se as vanguardas modernas se organizavam contra o mercado oficial para assegurar a autonomia do artista, tudo o que o artista contemporâneo quer é ser assimilado pelo mercado.

Quanto aos artistas contemporâneos, são conduzidos pelo sistema a produzir desta ou daquela maneira - e por isso se tornam cada vez mais previsíveis e repetitivos, como ecos de si mesmos, com obras esvaziadas de conteúdo crítico verdadeiro. Se os grandes museus (Guggenheim, Tate) viraram griffes e abriram franquias mundo afora, é claro que têm o direito de selecionar obras coerentes com seus valores (ainda que radicais na aparência), ou de encomendar produções em série, para facilitar a identificação do autor (já que a originalidade, a autenticidade e a unicidade deixaram de ter sentido).

Não existe capitalista bonzinho: as corporações não entraram nesse negócio de maneira desinteressada, mas com objetivos variados - a melhoria da própria imagem, a atração de novos clientes, a associação a uma atividade culturalmente valorizada pela mídia, o contato com um público de elite, a fabricação do gosto; no final das contas, todas essas metas desembocam numa só: aumentar os lucros de forma predatória. Os museus, quase sempre endividados, são pressionados a "se vender melhor" e precisam correr atrás de grandes patrocínios - mas estes só aparecem para projetos glamurosos que chamem a atenção da mídia, não para o funcionamento regular da instituição, que se torna mais uma vítima da especulação cultural.

(Parêntesis: por que o Masp não tinha dinheiro para pagar a conta de luz e a segurança, mas era capaz de fazer grandes exposições? Boa parte da produção contemporânea brasileira está hoje sob a guarda de instituições financeiras privadas, como o Itaú Cultural. Os espaços culturais privados se multiplicam, enquanto os museus públicos passam por crises terríveis. Em março de 2006, o MASP já contabilizava uma dívida de R$ 4.000.000,00 com o INSS. Os acervos públicos são roubados ou literalmente apodrecem por falta de condições mínimas de conservação, enquanto as instituições financeiras privadas e as coleções particulares absorvem as mais importantes obras brasileiras do passado e do presente. Quem impede essas empresas de, amanhã ou depois, transformar esse patrimônio cultural em mercadoria, cobrando ingressos para a população ver algo que deveria ser de livre acesso?)

Seguindo essa lógica, o Guggenheim de Nova York não teve nenhuma vergonha de abrigar, em 2000, uma exposição sobre Giorgio Armani(abaixo), que coincidentemente tinha doado 15 milhões de dólares ao museu. Peças que estavam á venda nas lojas do estilista foram expostas! Na prática, Armani contratou o Gug como agência de publicidade. O mesmo museu abrigou mais tarde a exposição A Arte da Motocicleta, motivada por patrocínios, mais que pelo valor cultural do empreendimento. Outras griffes, como Balenciaga, Cartier, Hermès, YSL, Louis Vuitton e Hugo Boss também fizeram parcerias milionárias com museus. Hugo Boss cvriou um prêmio que já teve Tunga no júri, aliás. O artista Murakami, por sua vez, assinou malas para a Louis Vuitton.


O Guggenheim de Bilbao (acima), arquitetonicamente deslumbrante, merece um post à parte, mas foi um negócio da China para o museu e um desastre para os cofres públicos (como seria sua filial carioca, felizmente abortada a tempo), além de ter gerado muitas críticas locais por conta da seleção do acervo.

Só mais dois exemplos, tabagísticos, da delicadeza dessa relação: uma edição recente da Documenta de Kassel foi patrocinada por uma companhia alemã de cigarros, a Reemstma, que anunciava seus profutos no catálogo do evento; nos Estados Unidos, a gigante Philip Morris, uma das maiores patrocinadoras das artes no país, ameaçou fechar a torneira caso fossem aprovadas novas leis anti-fumo. No Brasil teria conseguido: bastaria comprar os Deputados no balcão de negócios chamado Brasília.

Nos Estados Unidos, onde os fundos públicos para a arte são cada vez menores (é claro, sobretudo depois de Reagan), na Inglaterra (desde a Era Thatcher) e na Alemanha pós-unificação, esse processo crescente de promiscuidade entre arte e capital tem sido alvo de ataques vigorosos por parte de alguns críticos, pela aliança de interesses entre parceiros incompatíveis. Isso envolve manipulação de cotações e práticas que em outros mercados seriam ilegais: por exemplo, grandes colecionadores americanos, de posse da informação de que um artista europeu será exposto numa galeria importante, correm para adquirir suas obras no país de origem, antes do efeito da exposição sobre os preços. Antes mesmo de chegar materialmente à América, a obra já estará circulando na rede especulativa imaterialmente, como signo.

Mas o mais grave não é isso: é o casamento da arte com sua inimiga histórica, a cultura do consumo; como dote, os artistas entregam sua autonomia. Como no Brasil, com exceções cada vez mais raras, os críticos abandonaram seu papel de mediadores e se limitam a copiar releases ou escrever prefácios de catálogos, é claro que esse debate sobre o uso corporativo ou estatal da arte ainda não aconteceu aqui. Ou, quando acontece, é rapidamente abafado.

Na última Bienal de São Paulo (talvez tenha sido mesmo a última), um grupo coletivo dinamarquês, Superflex, teve uma obra censurada. Guaraná Power, que críticava o monopólio do mercado e seu impacto nas comunidades amazônicas, já tinha sido exposta na Bienal de Veneza de 2003 (foto abaixo), mas foi vetada na última hora e acusada de "mau gosto" pela diretoria da Fundação Bienal. O Superflex usa a arte para discutir políticamente temas como liberdade de expressão, cidadania, sistema de patentes, marcas, direitos de propriedade. O grupo fabrica produtos que podem ser comprados em lojas na Europa, ao lado de seus similares comerciais. O Guaraná Power é uma bebida fabricada em parceria com uma cooperativa de trabalhadores rurais amazonenses, que recebe parte dos lucros obtidos com a venda. Nem é necessário dizer que uma empresa de refrigerantes fez pressão para que a Bienal vetasse a obra. Quem tiver interesse em saber mais visite os sites www.superflex.dk e www.guaranapower.org


É curioso observar como a nova ordem internacional gera algumas contradições: compreensivelmente, Chin Tao Wu, autora de Privatização da cultura, é uma teórica de esquerda, colaboradora da New Left Review. A Boitempo, que lançou o livro no Brasil, também é uma editora de esquerda. Nessa hora, os artistas deveriam achar a esquerda reacionária e ultrapassada, não? Mas algum artista contemporâneo se assumiria como sendo de direita, neoliberal, pró-"mão invisível do mercado" etc? Duvido muito. Como é comum no Brasil, quer-se o melhor de dois mundos: a atitude de esquerda e a prática de direita, e os benefícios de ambas. Para o sistema, o que importa é que as torneiras continuem abertas.

4 comments:

Noga Sklar said...

Luciano, eu tentei comentar, mas acabei em post: http://www.noga.blog.br/2007/12/segredo-ou-sagrado.htm
Concluíndo: o culpado de tudo é o próprio artista, que se curva ao mercado porque quer. Ou precisa: não vê outra saída.

smartartphone said...

Alguém já condenou Leonardo da Vinci e Michelangelo porque foram "adotados" pela nobreza da época que pagava muito bem por suas obras? Artista deve mirar sim, acima de tudo, a sua valorização, porque, lá na velhice, nenhum crítico "de esquerda" levará um mísero prato de comida no asilo dos velhinhos artistas esquecidos. Devemos criticar também os funcionários públicos inúteis que recebem altos salários - muitos de "esquerda" - e de onde vem o dinheiro para eles? Boa parte são dos impostos que as "impiedosas" grandes corporações pagam ao governo.

Fernando Watanabe said...

O comentário de Winck é cínico e propaga o egoísmo travestido de "ceticismo" ou "realismo".

O artista verdadeiro, mesmo sem consciência, visa fazer sua obra primeiramente a fim de enriquecer o mundo com sua arte antes de trabalhar para seu próprio conforto e consumo (mas sem excluir esse aspecto). Ninguém está falando que para ser artista genuíno tem que morrer de fome, não é isso. O texto critica o fato do livre capitalismo estar deturpando a prioridade de certos artistas que, talentosos ou não, acabam tendo dinheiro e fama como guias maiores de suas metas em detrimento da expressao estética sincera. O texto critica prioridades, hierarquias e influências múltiplas atuais.

A meu ver, o texto não condena o "fazer arte por dinheiro" de maneira generalista, pois antes de tudo, é feito um recorte temporal (anos 80 em diante/neoliberalismo). Portanto, Leonardo da Vinci ou Michelangelo estão em outro contexto que não o deste texto, e para trazê-los para a discussão teríamos que fazer paralelos históricos muito mais consistentes do que simplesmente dizer cinicamente: "olha, eles trabalhavam por muito dinheiro".

Fernando Watanabe said...

O artista verdadeiro, mesmo sem consciência, visa fazer sua obra primeiramente a fim de enriquecer o mundo com sua arte antes de trabalhar para seu próprio conforto e consumo (mas sem excluir esse aspecto). Ninguém está falando que para ser artista genuíno tem que morrer de fome, não é isso. O texto critica o fato do livre capitalismo estar deturpando a prioridade de certos artistas que, talentosos ou não, acabam tendo dinheiro e fama como guias maiores de suas metas em detrimento da expressao estética sincera. Além de indivíduos, fala-se de sistemas e instituições, o que fatalmente coloca o indivíduo como produto (mas não só isso) do contexto. O texto critica prioridades, hierarquias e influências múltiplas atuais.
Não condena o "fazer arte por dinheiro" de maneira generalista, pois antes de tudo, é feito um recorte temporal (anos 80 em diante/neoliberalismo). Portanto, Leonardo da Vinci ou Michelangelo estão em outro contexto que não o deste texto, e para trazê-los para a discussão teríamos que fazer paralelos históricos muito mais consistentes do que simplesmente dizer cinicamente: "olha, eles trabalhavam por muito dinheiro".