Sunday, December 23, 2007

Perguntas que não querem calar


Onde está o artista? Onde está a arte? Perguntas básicas como estas são feitas hoje apenas pelos freqüentadores eventuais de exposições de artes plásticas, que têm dificuldade para apreender o que vêem, já que não são mais feitas pelos críticos nem pelos próprios artistas. As exposições viraram fenômenos sociais e econômicos, em que na prática pouco importa o que está sendo exposto: ao artista basta entrar com a assinatura: ele e a obra se tornaram meros pretextos para o funcionamento da rede. O conteúdo (ou a mensagem que circula na rede) é menos importante do que a visibilidade do evento em si. Daí a auto-atribuição crescente, por parte de curadores e outros profissionais da arte, de uma função artística, como se também eles fosem criadores. Daqui a pouco até os patrocinadores vão reivindicar esse papel, já que também participam diretamente da "produção" da arte. E do consumo, já que esta arte, desligada do mundo, se destina à própria rede que a fabrica. Processo de autoconsumo: os profissionais que fazem o sistema girar fabricam os artistas e os vendem não ao público externo, mas a outros profissionais da rede, num mecanismo circular.

O visitante esporádico de uma Bienal, o leigo que freqüenta galerias, tende em muitos casos a questionar a legitimidade do que vê, ou mesmo a se sentir enganado e até ofendido. Este visitante não é um idiota: ele tem esse direito e, de certa forma, está certo - não por se tratarem de obras que exijam um repertório prévio de informações para ser fruída, pois isso sempre fez parte da relação entre obra de arte e público: para se gostar de um quarteto da fase final de Beethoven, por exemplo, é preciso um "ouvido informado"; mas porque estão lhe vendendo como novidade reelaborações estéreis, obtusas, refratárias e opacas de modelos ultrapassados já há 30 ou 40 anos. E isto, vender gato por lebre, é verdadeiramente ofensivo.

Já usei muitas vezes aqui a expressão "fim da arte", mas é importante sublinhar que ela corresponde a um conceito ambíguo e enganoso. Como ferramenta de análise, é um desastre. Para teóricos como Donald Kuspit e Robert Hughes, a arte efetivamente está morrendo de inanição, ou seja, eles empregam a expressão de forma negativa; mas o conservadorismo com que rejeitam em bloco a arte contemporânea se torna um pretexto para rejeitar o que eles têm de relevante a dizer. Já Arthur Danto e Hans Belting, que de certa forma estabeleceram o pano de fundo teórico em que se desenvolve o debate, o "fim da arte" significa a superação da história da arte, isto é, o fato de a arte hoje já não se filiar a qualquer linhagem ou tradição, de se ter tornado saudavelmente plural e heterogêna.

Dos dois lados, a idéia de morte da arte é imobilizadora e conformista, e não é preciso ir muito fundo para perceber que essa tese é prima-irmã da teoria do fim da História, nas ciências sociais: subliminarmente se tenta convencer as pessoas de que já não cabe mais lutar por um mundo e por uma arte melhores, e de que a reelaboração permanente de idéias velhas é o horizonte insuperável da pós-modernidade. Não existe mais nenhum projeto coletivo aglutinante, e a produção artística deve celebrar esse atomismo. Não é à toa que o crítico Frederic Jameson identificou o pós-moderno como a lógica cultural do capitalismo tardio.

No tempo das vanguardas européias, os movimentos eram vibrantes, cada um deles trazendo uma mensagem sócio-política, uma promessa de transformação radical da vida. Hoje prevalecem a apatia e o conformismo, mesmo quando o discurso é de contestação e rebeldia - discurso transformado ele próprio em mercadoria. É claro que isso vem acompanhado por um processo de despolitização da vida, de alienação ou, para usar um jargão marxista fora de moda, de reificação: por meio da associação de valores simbólicos e abstratos a bens materiais (aí incluídos os objetos de arte), incute-se nas pessoas o sentimento de que as relações sociais são imutáveis, uma vez que chegaram à sua forma final.

Ora, muitas tolices foram abrigadas pelos guarda-chuvas dos diversos "ismos" dos anos 60 e 70, quando se chegou ao limite da auto-mutilação do artista (Rudolf Schwarzkogler morreu em 1969 após ter fatiado o próprio pênis num ato performático), mas pelo menos naquela época os artistas se posicionavam criticamente em relação ao mundo em que viviam, sendo que alguns movimentos iam além, combinando explicitamente preocupações estéticas e políticas - casos do grupo CoBrA e, principalmente, da Internacional Situacionista, comandada por Guy Debord (foto), de quem recomendo muitíssimo a leitura de A sociedade do espetáculo, escrito há 40 anos mais cada vez mais atual.

Debord acreditava, por exemplo, que as rotinas e convenções da vida cotidiana tal como organizada pelo sistema capitalista alienavam e esmagavam o indivíduo. Questionava assim as supostas liberdades do capitalismo, que não seriam mais que projeções "espetaculares" de uma ideologia de controle social. Num determinado momento, quando Debord percebeu que os movimentos artísticos, com motivações cada vez mais comerciais, em vez de darem respostas estéticas aos desafios colocados pela/para a sociedade, tinham se tornado uma ramificação desse espetáculo total, ele dissociou o Situacionismo do debate sobre a arte. Ele percebeu que os mesmos artistas que diziam rejeitar o mercado vendiam suas obras, muitas vezes esdrúxulas, por preços exorbitantes.

Ainda assim, mesmo um artista hoje irrelevante como o francês Daniel Buren, que basicamente pintava listras (foto), protestou em 1968 contra a crescente ocupação/reordenação do espaço público por imagens da publicidade e da cultura de massa, de forma a promover o consumo passivo de bens materiais ou simbólicos por parte da população.

Ironicamente, a mesma indústria cultural seria exaltada em Nova York pela Pop Art, o movimento mais importante daquele período (do ponto de vista sociológico, mais que estético: a partir dele o artista se tornou inevitavelmente um homem de negócios, ou uma peça na engrenagem especulativa do mercado).

Esta foi a grande armadilha do pós-modernismo globalizado, que no fim das contas se revelou extremamente conservador, no mau sentido. Relativizando todas as coisas, ele eliminou toda hierarquia baseada em qualidade, mérito e valor: por exemplo, ao afirmar que não existe uma cultura superior a outra, mas culturas diferentes, e todas ligadas a mercados consumidores potenciais - assim, Beethoven e Ivete Sangallo se equivalem etc. Na arte, não existe obra superior que outra, nem muito menos progresso, ou a possibilidade de criar/fazer arte melhor que a dos predecessores. Existem simplesmente artistas que se articulam com o sistema de produção e consumo e outros que ficam de fora da rede.


Não é à toa que a influência de Marcel Duchamp aumenta com o passar dos anos: com ele a arte deixou de ser uma questão de conteúdos (cores, formas, estilos, habilidades, leituras da realidade) para ser uma questão de atitudes. Por volta dos anos 70, com a passagem do regime moderno ao pós-moderno, ele já tinha substituído Picasso no posto de artista mais importante do século 20 para a prática contemporânea. Os critérios-chave da estética moderna, do novo, da ruptura e da vanguarda, são rejeitados. Não é mais preciso inovar nem ser original: a repetição de formas passadas não é somente tolerada, é estimulada. O artista não cria mais, ele recicla ou simplesmente desloca material pré-existente. [Atenção: Não estou dizendo que todos os artistas fazem isso, é claro; estou descrevendo a grade pós-moderna na qual se encaixa hoje a produção artística, plural na superfície]

Veja-se o caso da artista Sherrie Levine, que simplesmente reproduz com sutis modificações uma pintura de Van Gogh, uma fotografia de Walker Evans ou um ready-made de Duchamp e assina as obras como sendo suas. Sim, leitor(a), o que você está vendo aqui ao lado não é um Van Gogh, é uma Levine e vale uma fortuna. E o pior é que o sistema bate palmas para esse parasitismo, e sempre existe uma maneira de justificar criticamente qualquer coisa: no caso de Levine, fala-se que ela trabalha com módulos de espelhamento e desmultiplicação tomados como unidades de medida da influência de uma obra de arte, num jogo de clonagem e replicação que faz o objeto artístico se desdobrar em reafirmações e releituras de si mesmo. Ora, vamos falar seriamente: se isso não é um embuste, não existem embustes na arte. Dou muito mais valor a um artista popular da Feira de São Cristóvão que às cópias pós-modernas de Bildo e Levine.

(A compulsão de Sherrie Levine para a cópia e a falsificação é tão grande que ela escreveu um texto sobre si mesma plagiando palavra por palavra um trecho do romance Desidéria, de Alberto Moravia. E um de seus trabalhos mais famosos é a série de fotografias que ela fez... de fotografias de Edward Weston. É como fotografar uma foto de Cartier-Bresson e reivindicar a autoria; o que me espanta é que muita gente leve isso a sério).

Levine e Mike Bildo (que reproduz uma tela de Andy Warhol e intitula a obra No-Warhol) são exemplos que podem ser vistos como caricatos, mas que no fundo levam às últimas conseqüências um dos princípios do pós-modernismo: a substituição das técnicas de produção modernas pelas técnicas de reprodução pós-modernas. O artista troca a criação por uma atitude aberta de citação, e confisco, comprometendo os valores de autenticidade e originalidade. Artista-chave desse processo é o americano Robert Rauschenberg, com suas pinturas em silkscreen do começo dos anos 60, que reproduziam imagens de livros e revistas, fotografias, telas clássicas etc.


Se um dos efeitos da globalização é a homogeneização das relações de produção e dos hábitos de consumo, na produção artística ela se manifesta pela abolição (ou pela mistura) de todos os estilos históricos, em produtos sem estilo definido. A arte deixou de ser algo indissociável de seu momento histórico específico. No novo regime da arte, se esses produtos valem alguma coisa ou não, é o mercado que vai decidir (não apenas o mercado no sentido de oferta e procura empurrando os preços para cima ou para baixo, mas o mercado simbólico das redes, onde os laços de relacionamento são muito mais decisivos para o êxito que o conteúdo das obras). É a entropia, que leva á crise ética e estética da arte.

Como chegamos a esse ponto? Tudo começou quando o sistema da arte deu uma volta nos artistas modernos que contestavam o mercado como motor da existência. Suas experimentações foram esvaziadas de conteúdo social e político e inspiraram outras, puramente formalistas, realizadas por artistas loucos pela fama. Quando o primeiro prato vazio foi colado numa tela e exposto numa galeria, e o sistema legitimou a inteligência espantosa do artista que criou uma metáfora da fome (e instigou no espectador uma "fome de arte"), abriu-se a porteira.

A partir daí, o jovem artista não precisa sequer ser capaz de desenhar uma bicicleta, muito menos ter qualquer conhecimento rudimentar de perspectiva: basta colocar uma tartaruga do lado de um aspirador de pó e de um rolo de papel higiênico, e está criada uma instalação. O artista se intitula contemporâneo e olha com desdém quem faz pintura, mesmo não-figurativa, endeusa Marcel Duchamp e fala com ironia complacente de Pablo Picasso. Suas instalações são efêmeras, têm "especificidade de lugar", mas o que ele mais quer é vendê-las ou vê-las acolhidas num museu, lo que às vezes acontece. De agora em diante, tudo que ele fizer será arte, desde que ele assim o afirme.

(Estou exagerando, é claro: o outro lado da moeda é que, sendo um sistema fechado, a arte limita o acesso ao reconhecimento público. Não se exigem mais conhecimentos técnicos nem requisitos formais, mas isso deixa o aspirante sujeito ao arbítrio e às preferências subjetivas das autoridades institucionais. Como não existem mais critérios objetivos de avaliação os diretores de museu, curadores e donos de galeria usam e abusam de seu poder legitimador - poder que é diretamente proporcional ao prestígio das suas instituições. Por tudo isso, o processo de reconhecimento artístico se tornou ainda mas hierarquizado, concêntrico e metropolitano do que era quando existiam "barreiras de entrada" mais claras e objetivas.)

Quando escrevo que hoje qualquer coisa pode ser designada como arte, não estou sendo irônico: este é um princípio assumido por diversos teóricos da arte contemporânea, mesmo quando querem exaltá-la. Tudo isso facilitou, naturalmente, a predominância das instalações e das obras de matriz conceitual, que não estão ligadas ao valor estético, mas são auto-referentes: seu diálogo não é com o público nem com a sociedade, mas com o próprio vocabulário artístico; são obras que evitam o contato direto com o espectador, se escondendo atrás da necessidade de uma elaboração discursiva intermediária, da qual se servem para aparentar profundidade quando na verdade são frívolas e rasas. Espalham-se maçãs numa galeria, e se alguém contesta é porque não entendeu: vem uma resposta-explicação da obra que ocupa páginas inteiras. Ora, por que não escrever logo um livro? Como ações no mercado financeiro, obras assim dependem da crença, involuntária ou planejada, de que valem alguma coisa; e como produtores e consumidores integram a mesma rede circular, todos se interessam em alimentar essa crença.

Tudo isso é conseqüência do assassinato da arte como um objeto tangível e contemplável, dotado de determinadas especificidades e qualidades sensíveis. Em seu lugar entrou a arte como produto de um discurso autorizado que a afirme, isto é, o discurso do sistema - os grandes marchands, museus, curadores, colecionadores, que tomam suas decisões independentemente da própria realidade do objeto. Idéias pobres e soluções rudimentares são vendidas ao público como rigor conceitual e economia de linguagem. Sem reflexão formal sobre o mundo, sem provocar o pensamento, sem questionar nada, a arte caminha para ser mais uma variedade da indústria do entretenimento. É por isso que as novas gerações, que crescem acreditando que chutar uma bola numa grade de ferro é arte, tendem a desprezar e mesmo a odiar qualquer arte séria.

O crítico tem pouco a fazer nesse contexto, e por isso mesmo foi sutilmente expelido dos jornais e revistas; os que resistem foram cooptados, evitando qualquer julgamento que não seja elogioso, ou viraram escrevedores de prefácios de catálogos. O público, num sentido amplo, também está sendo pouco a pouco dispensado do jogo, já que quem importa mesmo são os players que movimentam a máquina, isto é, os colecionadores, compradores regulares, galeristas, marchands. Quem quiser um entretenimento espiritualmente elevado que procure uma igreja ou vá ler Hamlet, como o Ferreira Gullar; quando vai a galerias e museus, o leigo interessado em arte sente falta de bulas ou manuais de instruções.

Isso funciona e se reproduz numa atmosfera geral de crise institucional (museus e escolas de arte endividados, Bienal vazia, Masp assaltado são apenas os sintomas mais evidentes). Mas duvido que exista consenso, entre os próprios artistas que se sentem ofendidos quando são questionados, sobre pergunts básicas como as propostas acima. E outras, como: A arte deve estar sujeita ao julgamento intelectual? E ao julgamento moral? A arte deve ter regras ou o artista é um grande demiurgo, que tem o poder de tornar qualquer coisa arte pela mera afirmação de que é arte? A arte tem o dever de se comunicar universalmente ou é mesmo coisa para iniciados? A arte ainda tem alguma coisa a ver com o belo, o gosto, o único, a autonomia? Ou sua realidade se constitui fora dos limites da obra? A arte deve se assumir como uma mercadoria como outra qualquer ou deve ser de alguma forma protegida do capitalismo selvagem?

Provavelmente cada artista vai responder de uma forma diferente, mas se engana quem pensa que isso é bom: é preciso haver um consenso mínimo sobre a natureza e a função da arte, do que ela é ou deve ser. Em outras palavras, é preciso haver formas e moldes narrativos que organizem a produção artística e estabeleçam sua mediação com o público. Se não, o mundo da arte entra num vale-tudo suicida, como está acontecendo hoje: o sistema não reconhece nenhuma narrativa ordenadora, apenas o mercado e suas redes. Ora, da mesma forma que no passado as narrativas da arte mimética e da arte modernista se esgotaram, a não-narrativa da arte contemporânea já se esgotou. É preciso dar um salto para a frente, assumir novos desafios e compromissos, porque a alternativa é a morte.

De quem depende esse salto? Dos artistas, é claro, mas também de gente que queira pensar e se manifestar de forma independente sobre a arte. O sistema, para funcionar, depende de um pacto que se vem mantendo por inércia, pela fragilidade dos críticos, pela indiferença de um público cada vez mais distanciado, pela arrogância de muitos curadores e marchands. Mas a incompetência dos gestores desse sistema, cada vez mais evidente, pode servir de pretexto para uma mudança, para uma revisão dos papéis, dos códigos, das relações de poder, dos mecanismos de produção e circulação.

Na ilustração do alto, Mona Simpson, de Bansky, artista valorizadíssimo no mercado internacional. Entenderam? é uma mistura de Mona Lisa com a Sra. Simpson. Dããããã...

3 comments:

Kako said...

Magnífico!

Alarcão said...

Concordo com quase tudo, logicamente.
Agora, colocar Rauschenberg e Banksy no caldeirão de frivolidades da arte contemporânea é um equívoco.
Faça uma visita ao site do Banksy para descobrir nele um dos melhores artistas da atualidade. Ele é tudo o que você aponta de positivo na arte: contestador, questionador, e criador de uma arte que instiga e se comunica.

Henrique said...

Na minha opinião, arte é discurso e, portanto, pressupõe receptores ou públicos-alvo. A partir daí, definir a linguagem da obra vai depender de pra quem o artista quer falar. Cordel, naif e grafite são arte assim como parangolés e penetráveis; apenas se dirigem a públicos diferentes.

A arte "highbrow", "de vanguarda", aquela das obras masturbatórias feitas para "fruição mercadológica", só mantém este status porque é a arte feita pela elite para a elite. O discurso dominante é sempre aquele de quem está por cima...

Desculpe o jargão... Mal de "comunicólogo"