Tuesday, December 04, 2007

Picasso e Duchamp


Freud explica: às vésperas de 2008, continuamos presos a um urinol de 1917, 90 anos atrás. O cachorro, a orelha, a paçoca, as maçãs, são todos filhos bastardos desse urinol - contemporâneo? Sim, mas da Revolução Russa. A União Soviética já acabou faz tempo, mas o urinol continua lá, idolatrado, no altar do niilismo cínico ou desesperado.

Será que nada foi feito de relevante depois de 1917? Por que ninguém fala mais em Picasso e tanta gente ainda se inspira em Duchamp? A resposta é simples: a arte de Picasso exige talento, técnica, reflexão sobre a vida e a História, enquanto Duchamp, por genial que tenha sido em seu momento, traz uma mensagem muito mais fácil de ser assimilada e copiada. A mensagem é: qualquer um pode ser artista. Como no anúncio da Caninha 51, basta uma boa idéia. O talento, a criatividade, o artesanato e o pensamento deixaram de ser relevantes; a própria mão do artista se tornou dispensável. Como é gratificante saber que não é preciso estudo, treino, empenho, paciência, vocação, nada para se tornar artista, além da afirmação de que se é artista e do reconhecimento "do circuito" ou "da galera"!

Ora, a experiência demonstrou que isso é uma porta aberta para o embuste, e os artistas deveriam ser os primeiros a se preocupar com isso. Porque é aí que entram o cachorro que morre de fome amarrado no canto de uma galeria e a orelha implantada no braço do artista. Desculpem, mas a mim essa gente não engana. Já chamei a atenção para o fato de que todo mundo que me criticou evitou dar uma opinião clara sobre essas duas obras. Medo de parecer reacionário? Amadureçam. Como disse um replicante em Blade Runner: deve ser triste viver com medo.

Não estou dizendo que não existem instalações nem obras conceituais artisticamentre relevantes. É claro que existem, e já citei algumas. O que estou dizendo é que nem toda instalação e obra conceitual são relevantes, e que esse dois modelos já estão velhinhos para serem chamados de contemporâneos: se isso provoca tanta indignação, alguma coisa está errada. Porque, no dia em que for proibido questionar ou pensar diferente, a arte terá mesmo chegado ao fim.

A crise da arte contemporânea é um tema em discussão no mundo inteiro, tanto do ponto de vista estético (o suicídio da arte pela opacidade, pela superficialidade e pela repetição teimosa de modelos de 50 anos atrás) quanto do ponto de vista institucional (a crise das bienais e o esgotamento de um modelo mercadológico que roubou a soberania do artista). Todos os anos, saem livros e mais livros discutindo isso, na Europa e nos Estados Unidos. Mas no Brasil propor essa discussão é proibido: quem se aventura a fazê-lo vira "filhote de Ferreira Gullar", a encarnação do demônio para muita gente. Muito difícil.

Ilustrando o post, o abraço do Picasso e o urinol do Duchamp.

7 comments:

Unknown said...

texto publicado na Revista Número 6 (Centro Universitário Mariantonia/USP), 2005

Stelarc: próteses robóticas e o corpo vazio

No século XX, a reestruturação de paradigmas da ciência, da filosofia e mudanças nas relações políticas e financeiras, ajudaram a construir o pensamento ocidental moderno e redefinir as suas bases sociais, tendo na psicanálise de Freud, na automatização dos serviços, na tecnologização e na explosão dos meios de comunicação de massa, elementos que ajudaram a problematizar, entre muitos outros aspectos, a relação do homem com seu próprio corpo. Hoje, não há tabus para o uso de processos modificadores da corporalidade humana, e recorre-se a cirurgias reparadoras, fármacos, próteses, exames de DNA e photoshops, para que a nossa naturalmente imperfeita fisicalidade não seja empecilho em nossas vidas e relações. O silicone e a tintura de cabelo parecem já fazer parte de nossa Natureza reformada.
As mudanças do mundo e seu reflexo na vida privada balançam também os alicerces da produção cultural, que logicamente sofrerá influência de seu entorno. A problematização do corpo humano na arte do século XX surge, para alguns autores, na pintura cubista "Les Demoiselles D'Avignon" (1907) de Picasso, que pintou moças num desenho fragmentado, a partir de experiências com a própria forma da figura retratada. Após anos de experiências vanguardistas na Europa, e em seguida com a Nova Arte norte-americana (déc.1960), é no início de 1970 que o corpo se torna de fato o objeto, tema e suporte para a construção de uma obra de arte, servindo à experimentação e sugerindo desafios não apenas para o artista, mas também para o público, instituições, teóricos e curadores.
Na década de setenta, alguns artistas imbuídos pelo espírito da Live Art, que se institucionalizou em 1959 com os Happenings de Allan Kaprow , sentiram a necessidade de revitalizar o fazer artístico dentro de um sistema que vinha exigindo um envolvimento mais estreito com o mercado. Assim, surge apoiada em preceitos da Arte Conceitual, a Performance Art, que via no corpo o elemento para a elaboração de uma espécie de obra não-comercializável, constituída de fatores imateriais como tempo, espaço e sensações, o que afetava muito a relação artista-espectador.
As ações que tinham marcadamente o corpo do artista como suporte e objeto foram denominadas Body Art. Alguns artistas criavam situações em tempo real diante de um público que deveria perceber a mensagem, muitas vezes política, de determinada ação, como uma expriência estética. O belo estava contido no conceito da performance e no estranhamento que ela causava. Alguns nomes que se destacaram nesse período foram, entre muitos outros, Joseph Beuys, Chris Burden, Dennis Oppenheim, Marina Abramovich, Ana Mendieta e Stelarc, considerado o expoente máximo do chamado "body-art cibernético".
O australiano Stelios Arcadiou, ou Stelarc, iniciou sua carreira em 1968, quando construiu os primeiros ambientes de imersão virtual da história da arte: uns cubículos chamados "Compartimentos Sensoriais" nos quais o espectador entrava e, usando um capacete com lentes especiais que dividiam o espaço num labirinto de imagens sobrepostas, era atacado por luzes, movimentos e sons. Alguns anos depois, o performer iria celebrizar-se por realizar suspensões com ganchos de ferro, em público e ao ar livre. Sempre testando limites do corpo, numa ação, numa galeria de Tókio em 1979, Stelarc passou três dias imobilizado entre duas grandes tábuas suspensas, com as pálpebras e a boca costurados com linha cirúrgica. Após a experiência, no entanto, confessou que seu maior problema não foi alguma dor, e sim a dificuldade que teve para bocejar, posto que era uma possibilidade antes não considerada.

Sua carreira, contudo, não é notável apenas por ações que podem ser entendidas como escabrosas. Stelarc, hoje Pesquisador Titular da Performance Arts Digital Research Unit da The Nottingham Trent University, em Nottingham, UK, partiu da body art conceitual para o desenvolvimento de sistemas híbridos com instrumentos cirúrgicos, próteses e computadores que exploram interfaces com o corpo. Dentre seus robôs protéticos estão a "Terceira Mão", o "Braço Virtual", o "Corpo Virtual" e a "Escultura Estomacal". Enquanto as primeiras criações são alongamentos mecânicos externos ao corpo, a última consiste numa prótese interna, funcionando como uma endoscopia com luz colorida, com a qual o artista sugere a inserção de um objeto de arte dentro do corpo, tornando este o espaço da arte, ao invés de uma instituição ou um espaço público, e assim discutir a relação de propriedade do objeto artístico e do corpo enquanto compartimento que contém arte.

Sua pesquisa, que explora o interior do corpo humano e o torna público inicia-se em 1970 com o projeto "Amplified Body" (Corpo Amplificado). Primeiro, Stelarc filmou seu esôfago e 2 metros de seus intestinos, numa época em que a tecnologia das microcâmeras era incipiente e restrita à medicina. Em seguida, começa a desenvolver aparatos que captassem e amplificassem sons corporais internos, como o correr de fluídos, o ranger dos ossos e cartilagens, a deglutição e a respiração. Assim, por 24 anos dedicou-se a aprimorar uma espécie de multiprótese/armadura gigante que reage automaticamente à movimentos do performer emitindo, por amplificadores, ruídos estrondosos ou agudos, luzes e batimentos graves, numa espécie de concerto mecânico movido por descargas corpóreas. Para a demonstração, Stelarc surge nu, coberto de ferros e cabos ligados a computadores e eletrotransmissores diversos.

Seu interesse por acoplar apetrechos tecnológicos ao corpo e discutir a superação dos limites físicos, vem de sua teoria de que o corpo humano estaria obsoleto. Para salvá-lo da decrepitude, a única saída seria a simbiose humano-máquina:

"O corpo não é nem muito eficiente nem muito durável. A falta de um desenho modular para o corpo e o seu sistema imunológico hiperativo dificultam a reposição de órgãos em mal-funcionamento. (...) Somente quando o corpo atenta para esta sua posição é que ele pode mapear uma estratégia pós-evolutiva. Não é mais uma questão de perpetuar a espécie humana pela reprodução, mas sim de reforçar o intercurso macho-fêmea pela interface humano-máquina. O CORPO É OBSOLETO. Nós estamos no final da filosofia e da fisiologia humana."
O cerne de sua pesquisa, portanto, está além do âmbito estético ou puramente tecnológico, pois é também filosófico e político. Stelarc, como um Dom Quixote científico pós-moderno, enfrenta os limites do corpo e questiona friamente temas complexos e genéricos como a morte, a decomposição orgânica e a extinção da raça humana. Entendendo o cérebro como nossaa parte mais poderosa e sofisticada, defende a mutação física sintética para que possamos nos tornar fisicamente melhores, sem sensacionalismo nem sadomasoquismo para televisão – ao contrário do que uma reflexão rasteira e mais conservadora poderia supor.

Daniela Labra

notas;
DERY, Mark. "Velocidad de Escape". Madrid. Ediciones Siruela, 1998. P. 165
Stelarc em: www.stelarc.va.com.au

Valentina Corrêa Trigo said...

Olha, de verdade, acho tudo isso interessante pra caramba. Reconheço que a reflexão sobre o corpo e o impacto das próteses, das biotecnologias, da realidade virtual etc é filosoficamente séria, levanta questões interessantes e tem atraído a atenção de pensadores de respeito - por exemplo, a Paula Sibilia, a quem já entrevistei. Só que isso já não tem mais nada a ver com arte, na minha opinião. Pode ter interseções com a arte, pode ser até mais importante que a arte, do ponto de vista das possíveis implicações e desdobramentos para a humanidade, mas arte não é. Ou então a gente passa a considerar que tudo é arte, o que é a mesma coisa que dizer que nada é arte. De qualquer forma agradeço à Daniela o envio do texto, que me despertou a curiosidade por outras leituras.

Blogildo said...

O Affonso Romano de Sant'anna levantou essa bandeira também e, pelo visto, ninguém o levou muito à sério.
A tal "arte contemporânea" não me diz absolutamente nada. É como o "ar de Paris" de Duchamp. Outra piada levada a sério!

Unknown said...

Duas coisas eu não entendo nesta sua argumentação: porque o urinol é velho e a pintura de Picasso não? Porque no gesto que apenas um artista poderia ter, o de provocar o ready-made e questionar a importância da produção artesanal na arte, você enxerga a msg de que qualquer um pode ser um artista? Isso viria depois com Beuys e, de qualquer maneira, também não queria dizer isso que você coloca...

Outra coisa, hoje ainda se pinta muito e são amplos e diversos os caminhos da pintura, seja como pintura "mesmo" ou em referências incessantes a ela. Ao contrário do que você coloca, a arte que se produz hoje é de uma diversidade absurda, pois não haveria uma outra maneira de responder à velocidade e amplitude do momento. Então, pintamos, fotografamos, fazemos arte conceitual, relacional, política e tecnológica... E justamente por isso, este cenário exige do artista muita vocação, estudo e perseverança para ser reconhecido pelo circuito (o que parece na sua opinião ser uma facilidade...) Aliás, não é só do artista, não é mesmo? Hoje todo profissional é muito exigido para se estabelecer.

Valentina Corrêa Trigo said...

Vamos lá, Stela, por partes:

- o urinol é velho porque ele foi um gesto de rebeldia em 1917. Hoje ele não choca mais ninguém. Já Picasso (que aliás continuou se renovando continuamente até sua morte, em 1973) produziu obras que continuam a emocionar, a fazer pensar, a impressionar pela técnica e pelo gênio.

- a mensagem de que qualquer um pode ser artista está implícita no urinol: se basta deslocar um objeto comum de seu contexto funcional e colocá-lo numa galeria para transformá-lo em arte, qualquer um pode fazê-lo.

- sobre a pintura, salvo para os já consagrados, virou quase um ato de resistência: é claro que muita gente ainda insiste, mas enfrenta mil barreiras e o olhar superior de um sistema que privilegia as instalações. basta ler os comentários de artistas que tenho recebido e postado neste blog.

Unknown said...

- a produção do late Picasso também era uma ato de rebeldia, que na época era muito mal visto por sinal. Mesmo sendo quem era, Picasso não escapou de ver o seu trabalho erótico sendo percebido como um sinal de esclerose... Pelo menos eles não chegaram a ser queimados como os trabalhos de Degas.

- Esta idéia de que "qualquer um pode fazer arte" começou com a abstração, lembra? Naquela época se dizia que qualquer criança podia fazer aquilo... Ou seja, prima-irmã desta sua frase. Mas insisto que o urinol quer dizer exatamente o contrário: apenas um artista pode alçar uma coisa ou um gesto (abstrato) a categoria de arte.

- sobre a pintura, basta uma navegada rápida nas principais galerias de arte contemporânea para descobrir que a pintura ainda dá as cartas neste mercado. Encontramos artistas de todas as idades pintando... Logo, as barreiras encontradas pelos artistas que te escrevem se relacionam mais a dificuldade de se colocar no mercado, que é realmente muito difícil (muitos artistasXpoucas galerias), do que a falta de aceitação da pintura...

Unknown said...

Luciano,

Fazendo uma pesquisa sobre Duchamp (na verdade só queria comprar um certo livro da Taschen sobre o trabalho dele) fui cair no seu blog (mas eu já conhecia).
Bom, sobre essa pendega formalista, tudo ao meu ver é uma questão de deslocamento (aliás, uma das matrizes do pensamento de Duchamp: o deslocamento de sentido e de valor das coisas da arte). Posso pegar seu parecer e refletí-lo no mesmo espelho que você está usando? Ótimo. Não creio que vá se surpreender se eu afirmar que sua crítica também está caduca - data de antes de Picasso. Quando Courbet resolveu trazer a vida cotidiana como tema para suas pinturas aquilo causou um baita incômodo - pois até então a aura artística não permitia esse tipo de "promiscuidade" com a vida. Ou seja, se o lance no xadrez de Duchamp provoca tantas e árduas discussões sobre a validade da arte e da crítica de arte até hoje é porque a piada foi séria (as boas piadas são as célebres).

Talvez o mundo contemporâneo nem seja tão contemporâneo quanto se prega. A Fonte, é um dos trabalhos de Duchamp mas não é o único. E rola um baita desconhecimento sobre quem foi esse artista que causa tanto desconforto quanto admiração. QUando você (ou outros de crítica mais na linha dos greenbergs - nao sei se está escrito certo)fala da artesania como fator para se eleger uma obra de arte como Arte, você está tocando só na periferia. Existe artesania na elocubração de conceitos, posturas e ações mesmo na mais imaterial das obras.

Na minha opinião, tem faltado maior conhecimento da própria história da arte e da humanidade em críticas como essa. Ou, pior, talvez até se tenha o conhecimento, mas a lupa do bom-gosto maniqueísta acaba falando mais alto. Aliás, a Imprensa "especializada" tem feito um papel ímpar na desinformação pública. Um exemplo disso está no Afamado Caso do Cachorrinho Agonizante. Ninguém na Imprensa (e estou falando a nivel mundial) conjecturou as fontes (todas virtuais - spams do próprio autor?). Habacuc, o autor, no melhor estilo duchampiano, é o primeiro a revelar a fragilidade do sistema de informação mundial. Falo isso por eu mesmo ter saído da desaprovação e repúdio total ao trabalho do cachorro a uma profunda admiração pela ousadia, inteligência e sutileza dos autores de "Eres Lo Que Les".
O "neoformalismo gulllartiano" me parece um grito desesperado dos que se sentem perdidos face a uma arte que é antes de tudo um espelho. E espelhos muits vezes nos mostram a face horrenda de nós mesmos. Se esse espelho fosse uma pintura ele seria "amenizado" pela técnica, pelo artifício mas não essa tal arte contemporânea. Ela é bem sacana pois se metamorfoseia de mídia, de notícia, de cotidiano, de tecnologia, de mercado, de consumo... Enfim dessa complexa zona de guerra que é o mundo de hoje. O que também não é idéia nova. Consulte Courbet.
Conselho aos aspirantes a neoformalistas: se querem elaborar uma boa crítica, inspirada e de qualidade quebrem suas barreiras internar calcadas no senso comum. Traduzindo, classsificar arte nos seguintes termos: "ah, isto é arte pq deu trabalho. ah isto eh arte pq consigo ver o talento de fulaninho".
Duchamp foi um brilhante desenhista e pintor que escolheu por filosofia e visionarismo o mais difícil: o pensamento.
Não era e nunca foi contra o que chamava de arte retiniana (impressionistas, cubistas etc). Tendo sido ele mesmo um grande incentivador dos artistas destes movimentos (até porque muitos eram amigos dele). Queria apenas abrir espaço para outra coisa além da arte artesanal.

Por fim - que eu ainda tenho que aproveitar meu domingo, em vez de ficar aqui nerdeando (rsrsrs)- o problema talvez não esteja na opacidade da arte mas na superficialidade do mundo.