Saturday, January 05, 2008

Arte, tulipas, corporativismo

No processo de transformação da arte em empresa, princípios e valores se tornam negociáveis. Por exemplo, quando surgiram, as instalações, happenings e performances se proclamavam “especificamente situados”, isto é, só valiam como arte num espaço e num tempo determinados, com a cumplicidade do contexto e da resposta do público – o que era uma forma de contestação à mercantilização e à institucionalização da arte, é claro. Hoje as instalações vão diretamente do estúdio do artista para salas apertadas de museus e galerias, e no caso das performances e outras manifestações por natureza efêmeras, tiragens limitadas de fotografias que as registram se tornam colecionáveis e altamente valorizadas.

É claro que tudo isso faz parte de um processo geral de enquadramento e domesticação da arte promovido pelo “capitalismo mundial integrado”, expressão cunhada profeticamente pelo filósofo francês Félix Guattari três décadas atrás. Não tendo mais para onde crescer geográfica e industrialmente, o capital passa a se expandir através de redes simbólicas, transformando em mercadoria total tudo que vê pela frente – atitudes, diferenças, discursos, sexualidades, informações, bens imateriais, sentimentos, estilos de vida e, naturalmente, a arte, mesmo aquela arte supostamente subversiva e contestadora. Tudo é subordinado a processos especulativos, e a própria vida se transforma num processo incessante de compra e venda. Antes a arte tentava romper com o que estava estabelecido, era uma trincheira contra a normatização geral da cultura; hoje o esforço geral é para que a arte se transforme em mais uma variedade da indústria do entretenimento e do espetáculo: o sucesso é um fenômeno de mídia, e vai-se às galerias e museus como se vai aos shopping centers.


Especulações sempre fizeram parte da História, é claro, mas eram por assim dizer, mecanismos acessórios de uma realidade concreta. Por exemplo, na década de 1630, a Holanda testemunhou uma onda especulativa que hoje parece bizarra: a chamada febre das tulipas. Amsterdam era, na época, uma das cidades mais ricas da Europa, já tinha um Banco Central e um Bolsa de Valores, e alguém percebeu que poderia obter lucros extraordinários com os bulbos da flor, sobretudo em suas variedades mais valiosas, como a Semper Augustus. O negócio se espalhou pelo país, e num determinado momento uma única tulipa valeu o equivalente a 25 toneladas de trigo. Em 1637, um leilão beneficente terminou em tumulto, porque todos queriam garantir seu bulbo, que era revendido na mesma hora com enorme lucro. Mas logo depois a bolha estourou: tulipas começaram a encalhar nos depósitos, e o pânico se instalou no mercado. O que aconteceu foi que o pacto que alimentava a dinâmica especulativa se desfez.

O sistema internacional da arte contemporânea também depende de um pacto: que um volume suficiente de compradores esteja disposto a pagar cifras cada vez mais altas por obras cujo valor é determinado por uma rede de mecanismos de poder e relações abstratas entre artistas, curadores, diretores de instituições, galeristas, marchands. Embora, do ponto de vista econômico, este sistema pareça cada vez mais forte, graças à entrada em cena das grandes corporações (e de uma nova geração de colecionadores focados na arte como empreendimento altamente especulativo e lucrativo), sua estrutura simbólica é frágil como a da febre das tulipas. Porque, com o tempo, quando os mecanismos especulativos começam a se exaurir, os investidores decidem realizar e procurar outras apostas mais atraentes.

Mal comparando, o esporte como negócio, com todas as suas distorções, tem um lastro objetivo, que é o desempenho do atleta, em torno do qual se organiza uma estrutura cada vez mais complexa. Na arte, esse lastro se perdeu, já que todas as convenções e valores objetivos de julgamento foram relativizados: o valor do artista é determinado pela própria rede, que por sua vez depende desse valor: cria-se assim uma dinâmica circular, cada vez mais dissociada da realidade. Teorias diversas sobre o pós-modernismo e o fim da História da Arte emprestam verniz intelectual a esta dinâmica esquizofrênica, é claro. Mas o que importa é a sua eficácia como negócio, no qual os teóricos, os críticos remanescentes e os próprios artistas funcionam, muitas vezes, como inocentes úteis.

Isso tudo ajuda a entender o feroz corporativismo e o instinto de matilha que domina aquela pequena fração da classe artística que conseguiu entrar no sistema, ainda mais num país periférico como o Brasil. Por trás da agressividade com que desqualificam qualquer questionamento descomprometido, por trás da arrogância com que rejeitam o diálogo, por trás do silêncio com que sufocam qualquer voz dissonante, esconde-se o medo de que a fragilidade de sua condição seja exposta. A maioria dos artistas acredita sinceramente no que faz; mas, quando se sentem ameaçados, superam todas as diferenças entre si numa aliança contra o “inimigo”: se antigamente era proibido proibir, hoje é proibido criticar. Por definição, toda crítica é recalcada e reacionária, todo crítico é um vendido.

***

Encontrei há pouco um texto interessante do escritor francês Michel Houellebecq:

“No fundo, eu tinha pouquíssimo apreço pelo mundo da arte contemporânea. A maior parte dos artistas que conhecia se comportava exatamente como empresários: eles vigiavam com atenção os novos espaços e procuravam ocupá-los o mais rapidamente possível. Tal como empresários, saíam por atacado das mesmas escolas, eram fabricados no mesmo molde. (...) Os artistas funcionam muitas vezes como matilhas ou em redes, ao contrário dos empresários, seres solitários, cercados de inimigos – os acionistas prestes a largá-los, os executivos sempre prestes a traí-los. Mas era raro encontrar nas pastas dos artistas com quem eu lidava os rastros de uma verdadeira necessidade interior”.

Pois é.

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