Saturday, January 12, 2008
O espantalho e o agrotóxico
A metáfora do espantalho e do agrotóxico foi cunhada, salvo engano, pelo poeta Chacal, para explicar a situação do indivíduo diante das diferentes formas de coerção nos anos 70 e hoje em dia. Mas ela se aplica perfeitamente às transformações por que passou a arte contemporânea nas últimas décadas. E certamente ganhará atualidade com os debates sobre os 40 anos de Maio de 68.
Resumindo: no passado, o sistema agia sobre as pessoas de forma repressiva e, portanto, era facilmente identificável e transformado em alvo. Contra ele era possível se entrincheirar, organizar formas de resistência razoavelmente eficazes, ou ao menos tentar viver segundo valores alternativos. O poder era um espantalho, não havia engano. Foi em oposição a ele que se erigiu uma contracultura - que, nas artes visuais, se manifestou na busca por novas linguagens e na rejeição às instituições.
Hoje não existem mais espantalhos: o sistema age como um agrotóxico, de forma invisível, contaminando os indivíduos por dentro. Incorporamos padrões e valores estabelecidos a tal ponto que sequer conseguimos imaginar escolhas diferentes desses modelos. Embora conservando sinais exteriores da rebeldia contracultural, os artistas não contestam mais nada: a própria atitude de contestação se transformou em mercadoria, como na moda.
Conseguiram nos vender a idéia de que a História como possibilidade de transformação acabou, e fora do sistema não há salvação. O sucesso (material e imaterial) é a grande droga, e somos todos um mar de viciados. O bom e o ruim, o certo e o errado, são categorias antiquadas, e na arte é a mesma coisa: os próprios críticos assumem que seu papel não é mais o de juízes, mas o de testemunhas de uma arte que navega sobre uma profusão de referências como um barco à deriva. As "novidades" já nascem como peças de museu, as "rupturas" recebem imediatamente uma cotação de mercado. Escorregadio, o sistema se defende de qualquer crítica pela adesão incondicional dos próprios artistas, com a cabeça cheia de agrotóxico, aos seus códigos e valores.
Enquanto isso os mega-colecionadores e as grandes corporações dão as cartas, manipulando cotações em especulações milionárias, mas nem dá para identificá-los como os novos espantalhos, porque esta não é uma história com vilões: são apenas outra ponta de um mesmo processo autônomo de circulação - de valores simbólicos auto-alimentantes mais que de dinheiro, de dinheiro mais que de obras de arte. Os próprios nomes dos artistas se confundem e seus trabalhos parecem intercambiáveis nos mega-eventos como as Bienais: da produção contemporânea fica apenas uma estranha impressão de arte, que atravessa pavilhões, museus, galerias, salas de leilão, páginas de jornais, contas bancárias.
Em essência, o mercado é um organismo de dinâmica auto-replicante: se um novo artista vende bem, o mercado aposta nele, aumentando ainda mais sua cotação. Ao mesmo tempo, vai fabricando em diferentes cenários (China, Índia, Leste Europeu, América Latina) novos nomes para os pregões de amanhã ou depois. Se a arte sempre se caracterizou por sua autonomia de criação, hoje ela é determinada pelo mercado em todas as suas etapas, da produção ao consumo. Sendo totalmente desregulamentado, no mercado da arte atuam forças como a psicologia, a espetacularizão, a especulação, o status associado a um estilo de vida e de consumo, a sorte, os contatos pessoais, a manipulação e a estupidez pura e simples. É a combinação de todos esseas fatores que faz um quadro do pintor alemão Martin Eder, como esta acima, valer mais de 500 mil dólares - quando, nas galerias de Copacabana, compram-se telas parecidas por menos de 300 reais.
Quando comecei a escrever sobre arte contemporânea neste blog e citei a instalação do cachorro amarrado que morre de fome (nem lembro o nome do artista, graças a Deus), um amigo me criticou por falar obras irrelevantes. Pensei no assunto, mas quanto mais leio mais percebo que a lógica do cachorro - não tão irrelevante assim,, já que despertou atenção no mundo inteiro, e espaço na mídia, como se sabe, é critério de valor - também está presente nos artistas mais valorizados (e portanto mais relevantes, certo?) do mundo. Basta olhar as obras de Jeff Koons e Damien Hirst, vendidas a preços que fazem Renoir parecer um amador.
Agora há pouco li um artigo enorme exaltando a instalação que Richard Prince, outro artista incluído nos Top Ten do mercado, apresentou na Frieze Art Fair, em Londres, em 2007: uma gostosa de mini-saia ao lado de um carro modelo Charger 1969. É íncrível que nessa altura do campeonato ainda se produza esse tipo de instalação, mas ainda mais incrível é que ela seja obra de um dos artistas mais valorizados do mundo. Será que isso não quer dizer nada sobre o estado da arte contemporânea?
(Na ilustração do alto, Hole in Your Fuckin Head, 1992, de Christopher Wool. Esmalte sobre alumínio, 274,3 x 182,9 cm. Vendido em 2007 por 1,7 milhão de dólares)
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