Wednesday, January 16, 2008

Pós-modernidade e mercado


Existe uma diferença entre cultura popular e cultura de massa. A primeira é um conjunto de saberes, tradições e valores construídos ao longo do tempo. Já a segunda repousa sobre a comercialização sem fronteiras não apenas de produtos materiais, mas de bens simbólicos e valores que alimentam a dinâmica do mercado. Esse processo começou no pós-guerra, com a internacionalização do capital americano.

Gostos, necessidades e até mesmo identidades são fabricados pela cultura de massa, com a cumplicidade da mídia. No limite, todas as relações e atividades humanas são reduzidas às leis do mercado. Os antigos alicerces dos laços sociais se tornam caducos: tudo que não contribua para o livre desenvolvimento da sociedade de consumo é jogado fora. De cidadão, o indivíduo passa a consumidor submisso. Fora do consumo, todas as esferas que ordenavam a vida em sociedade são esvaziadas de sentido: a política, a religião, a família e, naturalmente, a arte.

A cultura de massa não significa apenas inserir a cultura na dinâmica do mercado, isto é, entendê-la como uma atividade econômica como outra qualquer (o que já seria suficientemente problemático). Essa fase já passou. Hoje ela implica uma ruptura radical com a cultura tradicional e todo o seu patrimônio, em troca de compensações simbólicas muito frágeis. Fim da continuidade, fim da História, fim da possibilidade de transformação: pós-modernidade.

Não se pode nem mais dizer que está em curso um projeto imperialista americano. O próprio mercado que virou uma entidade autônoma: à hegemonia neoliberal globalizada corresponde uma hegemonia cultural, que pede uma arte neutra, sem fronteiras, transnacional. Arte como valor de troca. Se antes o elitismo na arte estava ligado ao saber, ao domínio de um código de interpretação, hoje o elitismo é baseado na posição social e na senha da conta bancária. Colecionar arte contemporânea é ser reconhecido como integrante de uma elite, da mesma forma que aparecer numa fotografia na Ilha de Caras.

Pode parecer contraditório associar a arte contemporânea, elitista, à cultura de massa. Mas as novas elites são precisam mais ser cultas, por isso a arte que elas consomem é alienada, sem passado, sem futuro e sem conteúdo. Daí a exaltação do fim da História da Arte e da emergência de um pluralismo inorgânico, baseado na reciclagem permanente e na hibridação de formas do passado. Estabelecem-se assim pontes simbólicas entre uma arte de elite e o consumo de massa. Nesse contexto a própria idéia de ruptura e de novidade perde o sentido. E qualquer tentativa de contestação deste estado de coisas é desqualificada como ideológica e reacionária.

Até o final do Modernismo a criação de uma obra de arte implicava uma prática que envolvia técnica, duração, reflexão sobre fundo e forma, diálogo verdadeiro com as referências históricas. A obra acabada era resultado de tudo isso. O pós-moderno rejeita essa concepção da arte, deslocando o valor estético para o conceito, no sentido publicitário da palavra: a sacada, a boa idéia. É a arte da Caninha 51.

Nesse contexto, já não é mais possível definir e delimitar a arte contemporânea de um ponto de vista crítico (pois a obra, untada do pluralismo pós-moderno, escorrega para fora de qualquer critério de avaliação. O que define e delimita essa arte é o reconhecimento por parte de um certo número de instituições ligadas ao mercado (o que inclui os próprios museus). Ora, se são as instituições e o mercado que determinam o que é arte contemporânea, é evidente que esta arte se tornou institucional. Não se trata, portanto, de condenar os artistas pelo estado da arte, mas questionar a legitimidade e os crítérios dessas instituições e do mercado.

Em outras palavras: se eu amarrar uma tartaruga num aspirador de pó na minha casa, não será arte, mas se um artista apresentar algo idêntico e ele for assimilado pelos museus, é. E não estou sendo irônico: chegamos num momento em que esta é a verdade nua e crua. Ou seja, passamos de uma época em que a arte dependia de um reconhecimento crítico fundamentado para outra, em que ela depende de uma designação e de um reconhecimento do mercado. A arte mergulha numa cerimônia auto-referencial.

Na prática, isso tem levado à esterilidade criativa, ao vazio e à monotonia. É claro que coisas boa continuam sendo feitas, mas não são elas que prevalecem, porque o modelo dominante despreza o verdadeiro gesto criativo, pois ser criativo hoje implicaria uma real emancipação do atual sistema da arte.

Não se está pregando aqui uma abolição utópica do mercado, mas o questionamento de sua dinâmica em relação à arte contemporânea. O mercado sempre existiu e sempre existirá, mas nunca antes na História deste planeta a criação artística se subordinou a ele tão abertamente. Ao contrário, no passado se considerava que a compra e venda de obras de arte não afetava o que a arte tinha de essencial, sua autonomia, que a preservava da mercantilização. Hoje não há criação que não seja determinada pelo circuito institucional-mercadológico de consumo, numa redução total a arte à condição de mercadoria.

Antes, também, imaginava-se que o preço de uma obra de arte tinha alguma relação com sua qualidade estética e seus valores intrínsecos. Isso também acabou. O julgamento baseado na comparação dos méritos respectivos de diferentes obras se tornou obsoleto, acabou qualquer hierarquia que não seja a do preço.

Por fim, antes o processo de reconhecimento e legitimação da arte era complexo, pois exigia experiuência, conhecimento e sensibilidade - coisas que o dinheiro não compra. Hoje é mais simples, pois esse processo não tem mais a ver com o avaliação de um conteúdo da obra, mas sim com a decisão de enquadrá-la no sistema. O pensamento único do mercado substituiu o jogo de opiniões e julgamentos que determinava o seu valor. Por isso a arte e o artista se tornaram meros pretextos, quase supérfluos, para que o sistema continue funcionando. A suprema ironia é que ainda usam o antigo e nobre ideal da arte irredutível à apropriação mercantil, ou seja, seu valor simbólico e espiritual, como escudo e justificativa para a especulação mais selvagem e inescrupulosa.

O sistema da arte se baseia portanto na manipulação de um paradoxo fundamental: ele se apropria da idéia de que a arte pode valer muito por ser irredutível, justamente, à mercantilização para elevar os preços da obra de arte às alturas, mas ao mesmo tempo desqualifica todos os valores que eram associados à essa irredutibilidade, como a unicidade, a autenticidade, o gesto criador. Em outras palavras, ela ua o mito da autonomia da arte em relação à cultura de massa e à insdústria cultural como justificativa para levar sua comercialização a extremos nunca vistos.

O que me leva a perceber outro paradoxo. O paradoxo da experiência estética: ontem à noite, voltando para casa pela orla, fiquei admirado com o efeito provocado pelos guarda-sóis fechados, nas mesinhas dos quiosques, cada um com uma lâmpada acesa no alto coberta pelo tecido: sob a chuva, o conjunto era superior a muitas instalações que se vêem por aí. Nas entrelinhas, a arte contemporânea quer ter o monopólio da experiência estética e, ao mesmo tempo, expandir seus limites, como arte, para múltiplos territórios. Mas é possível ter uma experiência estética fora do circuito da arte: olhando uma configuração inusitada de guarda-sóis numa noite chuvosa, por exemplo. Por um lado, a arte procura se confundir com a vida, a ponto de ser difícil diferenciar o que é arteístico do que é cotidiano, o que pde ser muito bom; mas isso não é compatível com a persistência e a radicalização do objeto de arte como objeto de consumo de elite e de especulações milionárias.

Como a arte não tem preço, ela custa cada vez mais caro, seu único teto é a disposição dos especuladores sempre em busca de novidades - incluindo capitais internacionais de origem indeterminada em busca de novos terrenos especulativos, que aliá estão jogando para escanteio o colecionador tradicional, que baseava suas aquisições no gosto e numa noção antiquada de valor. Sob o argumento de que a arte não precisa prestar contas a ninguém, o sistema se torna imune a qualquer crítica e continua a prosperar. Ao público, ao jornalista, ao que resta da crítica resta apenas a aprovação embevecida e a admiração incondicional.

(na ilustração, obra de Jeff Koons)

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