Tuesday, February 26, 2008

Pluralismo Capitalista


Se me permitem uma generalização, o artista contemporâneo lembra o malandro do samba de Chico Buarque, o "malandro regular, profissional, com aparato de malandro oficial,
com retrato na coluna social, com contrato e capital, que nunca se dá mal". Pois esse artista também trocou a deliberada posição de marginalidade em relação ao poder e ao mercado para se unir a eles e usufruir de suas benesses. É claro que ainda existem malandros e artistas "pra valer", mas estes dificilmente aparecerão nas colunas dos jornais.

(A idéia me ocorreu lendo um artigo no GLOBO sobre a ARCO 2008, que termina exaltando a generosidade do Governo brasileiro - apesar da frustração nas vendas, da má disposição das galerias na feira etc)

A oficialização da arte não se dá mais através da imposição, pelas esferas do poder, de um estilo único, hegemônico, como no Realismo Socialista, mas por meio da assimilação pelo sistema das mais diversas linguagens, numa espécie de "Pluralismo Capitalista". Daí a desconcertante profusão de estilos, formas, práticas e programas, a ausência de limites em relação ao que pode ser considerado material da arte e a negação de qualquer hierarquia de valor associada ao virtuosismo técnico e ao métier do artista como artesão - todas características marcantes do estado da arte hoje, no Brasil e no mundo.

Mas esta pluralidade é ilusória: tudo compartilha de um mesmo "estilo internacional", numa world art sob medida para os interesses do mercado globalizado. Por isso, paradoxalmente, é possível identificar, na diversidade dessa produção, elementos comuns, que dão a todas uma mesma "cara": cara de arte contemporânea. Alguns desses elementos são a secura, a ironia, a negação da idéia da arte como expressiva de algo "emocional".

As sementes desta situação foram lançadas já nos anos 60, mas com um espírito completamente diferente, na época: um espírito de experimentação e reflexão crítica, de busca de novos caminhos que levassem adiante à "tradição do novo" moderna, mesmo quando os artistas se contrapunham à codificação formalista/prescritiva dessa tradição, tal como formulada por Clement Greenberg, Michael Fried e outros teóricos.
Em algum momento esse espírito se perdeu e foi aproriado pelo sistema contra o qual se afirmava. Todas as manifestações que criticavam a arte como mercadoria, ironicamente, foram assimiladas e transformadas elas próprias em novas mercadorias.

"Em arte, nada pode ser entendido sem discutir e, muito menos, sem pensar", escreveu em 1961 o filósofo Theodor Adorno. Nas duas décadas seguintes, esta dimensão intelectual e sociológica da arte prevaleceu sobre sua dimensão pástica, "retiniana". O significado foi deslocado do objeto para o contexto, e o artista passou a depender cada vez mais de um discurso que envelopasse sua obra - ou, no limite, que a substituísse: no sentido estrito, a premissa da arte conceitual era que a obra estava na idéia, e que sua realização era um detalhe às vezes dispensável; no sentido mais amplo, estabeleceu-se uma atmosfera "conceitualista", que se espraiou por todos os domínios da arte - e que até hoje se faz presente, mesmo em obras aparentemente muito diversas.

De qualquer forma, quando se olha retrospectivamente a produção dos anos 60 ou 70, goste-se ou não, é inevitável a sensação de que algo verdadeiramente novo estava acontecendo ali, algo que dizia respeito não apenas à estética, mas à redefinição radical da relação entre a arte e a vida cotidiana, ao exame desafiador dos próprios alicerces da sociedade. Não por acaso, o contexto era o da contracultura, das revoltas edtudantis, do clima de efervescente descontrole do presente e de decomposição das certezas em relação ao futuro. Naquele momento faziam todo sentido os happenings de Allan Krapow e o bode empalhado com um pneu de Robert Rauschenberg (abaixo), dois artistas a quem não se pode negar importância histórica, goste-se ou não de sua sobras.

Com o crescimento meteórico do mercado da arte nos anos 80, coincidente com a guinada à direita na política internacional (Reagan, Thatcher, crise e colapso do comunismo etc), a situação mudou muito. Uma nova ordem passou a imperar também no mundo da arte, submetido a uma implacável dinâmica especulativa. Gestos de rebeldia foram recodificados e transformados em procedimentos de marketing, ao mesmo tempo em que se recuperava o mito do artista como indivíduo iluminado - mas agora como ocupante de um "papel", no sentido teatral do termo, um "inocente útil" para alimentar a dinâmica do mercado.

Integrada a uma dinãmica de show-business, aproximada do universo da moda, a arte passou a movimentar dinheiro de verdade, e coerentemente excluiu qualquer hipótese de descontrole: todos os agentes do sistema contribuem para o seu desempenho lucrativo, do grande colecionador ao crítico cooptado, do curador ao galerista, do artista bem-sucedido ao artista desconhecido que sonha com a fama. Parece não existir mais um "lado de fora", de onde se possa produzir e ao mesmo tempo contestar: o que não for assimilável é esmagado, não pela negação, mas pelo silêncio.

Ao decreto do fim da História correspondeu o decreto do fim da História da Arte. É impressionante como mesmo gente bem informada não percebe que um e outro se baseiam numa idéia extremamente reacionária, a de que "batemos no teto", alcançamos a linha de chegada: fim da hipótese de qualquer utopia transformadora ou verdadeiramente inovadora. Da mesma forma que podemos sonhar, no máximo, com um aprimoramento dos mecanismos do neoliberalismo globalizado hegemônico, na arte os artistas se contentam em olhar para trás, recombinando linguagens e modelos do passado, produzindo uma arte domesticada e inofensiva. Ou, pior ainda, uma arte que exalta abertamente o status quo, os valores impostos pela mídia, o consumo e a mercantilização pré-programada de todas as relações humanas, mesmo quando usa o figurino da rebeldia.

Não dá para ser rebelde sendo maioria, sendo integrado ao sistema e beneficiando-se dele, do seu mercado e de suas instituições. O problema não é apresentar tubarões em formol, corações de alúmínio (obra de Jeff Koons, acima) ou maçãs espalhadas sobre uma mesa: o problema é este tipo de produção se apresentar/ser apresentado como cultura dominante, com as bênçãos dos grandes colecionadores, das corporações e até do Estado.

4 comments:

XTO said...

Então, que venha a arte ideal. Aquela que não precisa de conceito nem de ser material e que quando explicada ou quando houver qualquer tentativa de materializá-la, que ela já não tenha nada a ver com o que ela é de verdade. Ela existe pura e linda no plano das idéias e de lá ninguém arranca e eu nunca vou te mostrar a minha.

Cardo said...

Há dois pontos na matéria jornalistica sobre a feira, que merecem reflexão: ..." A idéia dos curadores escolhidos pelo Ministério da Cultura (MinC) para a seção brasileira,Paulo Sérgio Duarte e Moacir dos Anjos, era dar mais destaque aos artistas do que às galerias, mas o perfil comercial da feira impôs suas regras...." e "....aos poucos ,vai-se tentando desenhar uma política pública para as artes brasileiras. Com o aprendizado desta empreitada,esperam-se novas ações com alguma correção de foco e, acima de tudo,continuidade. "....
Analisando a matéria,parece que as coisas estão acontecendo, sem que entretanto. a gente saiba bem o que..Os curadores queriam alguma coisa,que aparentemente se chocou com o caráter comercial da feira, porém está se desenhando uma política pública...(Qual ? )( aonde está se dando o debate sobre tal política ?) Continuando com o texto, houve uma certa "decepção do ponto de vista comercial", mas foi um " esforço do Poder Público para qualificar a internacionalização do mercado de arte brasileiro" ( É esta a política ?) Em resumo, muitas perguntas, que são respondidas por poucos indivíduos, que assim como nossos bravos curadores ficam refens dos interesses superiores do mercado.

Unknown said...

É incrível como o capitalismo consegue administrar qualquer rastro de rebeldia ou de não-assimilado pra ser funcionalizado. Marcuse dizia que pra ser hippie o cara em primeiro lugar rompia as relações com a família. Mas em 76 bastava entrar num shopping pra sê-lo.

Essa estória de world art me fez lembrar, mutatis mutandis, algo parecido que aconteceu com aquela música autenticamente diferente que vinha dos países de terceiro mundo, com experimentações, que com a Globalização foi rotulada pelo epíteto de world music.

Citando Adorno, lembro aqui uma outra frase dele. “Se, no seio do capitalismo monopolista, se continua a saborear o valor de troca, e já não o valor de uso, então a abstração torna-se para a obra de arte moderna a indeterminação irritante daquilo e para aquilo que ela deve ser, a cifra do que é."

E essa: "A arte nova é tão abstrata como as relações dos homens se tornaram em verdade."

Unknown said...

no plano das ideias.........derruba avião!
veja o vídeo de Trigerinho no you tube - muitas ideias no espaço, os aviões vão cair....
veja lá se não vai matar o pôvo