A arte contemporânea inverteu o postulado marxista de que a História acontece primeiro como tragédia, depois como farsa. Pois diversos procedimentos originalmente farsescos, cujo valor estava no seu caráter de provocação, a começar pelo próprio urinol de Marcel Duchamp, foram levados a sério e repetidos como cânone, o que não deixa de ser uma tragédia. Dois exemplos eloqüentes foram os gestos de Piero Manzoni e Yves Klein.
Em 1961, Piero Manzoni apresentou pela primeira vez ao público sua obra Merda d’artista ("Contenuto netto gr.30, conservata al naturale, prodotta ed inscatolata nel maggio 1961"), sua próprias fezes acondicionadas em 90 latas numeradas e vendidas a peso, pelo preço equivalente em ouro. Manzoni estava colocando em questão os limites a que a arte podia chegar, na egotrip conceitual auto-referencial do artista.
No ano seguinte, 1962, Yves Klein foi além, criando (e vendendo) o que ele chamava de "Zonas de sensibilidade pictórica imaterial" - ou, simplesmente, um "Immateriel". Tratava-se da seguinte experiência: Klein trocava um certificado dessas zonas por folhas de outro, e tanto o certificado quanto o ouro eram atirados num rio. O comprador vivia uma experiência singular mas fugidia, que colocava em questão os paéis do colecionador, do artista e, por extensão, do mercado de arte (na foto acima, Klein aparece em plena operação, com o escritor Dino Buzatti).
Por uma triste coincidência, os dois artistas morreram muito jovens, ainda no começo dos anos 60 - Manzoni com 30 anos, Klein com 34. Mas o que eles fizeram deveria cobrir de vergonha uma parte considerável de artistas conceituais e neoconceituais em atividade hoje, que, consciente ou inconscientemente, copiam e repetem propostas que já foram esgotadas quase 50 anos atrás.
No Brasil, isso tem relação direta com a precariedade da formação dos artistas, que com raras exceções se mostram totalmente desinformados em relação à História da Arte, mesmo à história de 20 ou 30 anos atrás. Sobretudo no Rio de Janeiro, muitos estudantes saem das escolas de arte sem sequer ouvir falar de Yves Klein e Piero Manzoni, e mesmo artistas brasileiros que expõem no exterior freqüentemente demonstram uma falta de cultura notável.
A baixa qualidade do ensino deve ter a ver com a falta de recursos. Sempre que escuto falar sobre a situação das escolas de arte, as notícias são desanimadoras. Pará só citar dois exemplos, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage emenda uma crise na outra (e uma diretoria na outra), enquanto a Escola de Belas Artes da UFRJ vive um conflito entre o anacronismo e o vale-tudo. Numa e noutra, o aluno que tiver vocação para a pintura está perdido: ele será condicionado a crer que a pintura morreu, que não existem mais pintores, que o negócio é fazer instalação etc. Tudo muito triste.
Sunday, March 23, 2008
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7 comments:
Não acho que a baixa qualidade do ensino de artes tenha a ver com falta de recursos. De certa maneira. você já antecipa no penúltimo parágrafo o que acho ser o principal motivo, uma certa repulsa do meio (e da sociedade de um modo geral? ) à história e por conseguinte à história da arte (talvez pelo potencial de reflexão crítica?) Não posso falar da EAV e da EBA, mas acho a experiência do IART da UERJ interessante e digno de menção, embora seja suspeito pois sou estudante da instituição.
Pois é, Rick, mas um professor do IART, que deveria se interessar pelo debate, simplesmente pediu para sair da minha lista de mensagens, porque se sentiu ofendido com meus textos. Coisas da vida.
Não deve ser o único, pois mesmo naquela instituição, que pelo menos tentou um curso de Bacharelado em História da Arte, sente-se a repulsa geral do meio e das pessoas pela história. Debate então é quase um palavrão. Não vou citar nomes, pois não cabe, mas há professores alí comprometidos com a reflexão crítica e menos afetados pelo individualismo do meio. Para o professor se sentir ofendido é que ele se acha o legítimo representante de algo que supostamente vc ataca, pode ?
Luciano, o buraco é bem mais embaixo mesmo. O desinteresse das pessoas em saber mais sobre a História de modo geral é sintomática. Quando se particulariza, aí a coisa piora muito. Engraçado, hoje estava falando com um primo sobre livros, conhecimento e a hístória da humanidade. Resumindo, chegamos à conclusão de que tal debate deveria estar inscrito numa História da Eternidade, no sentido de que a busca pelo conhecimento e os meios de acessá-los é um confronto perene e não muitas as pessoas que estão dispostas a confrontar suas crenças num contínuo de tempo maior do que suas existências.
Saudações,
Luciana
Espalhem esses textos entre seus colegas na UERJ, para alimentar o debate e a consciência crítica das pessoas!
Senhor Trigo, a sua lista, por vezes, é muito invasiva. Apesar de gostar de participar, eu nunca solicitei que fosse incluído. De modo que não acho que um professor seja obrigado a receber sua correspondência. Ele tem todo o direito de pedir pra sair da lista - talvez até ele continue lendo as postagens no blog. A, tal professor não sou eu, rerererere.
Sem dúvida, XTO, mas acho que o debate sobre arte no Brasil é tão pobre que todo mundo da área devia se interessar em ler, mesmo discordando.
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