"The economic aspect of conceptual art is perhaps the most interesting. From the moment when ownership of the work did not give its owner the great advantage of control of the work acquired, this art was implicated in turning back on the question of the value of its private appropriation. How can a collector possess an idea?"
Seth Siegelaub, 1973
O paradigma de um mercado de arte com regras feitas para valorizar obras únicas, criadas por artistas independentes, começou a vigorar na Europa no final do século 19. Esse modelo tinha como um de seus fundamentos obras de arte individuais, relativamente fáceis de serem guardadas ou colecionadas.
Ora, com os movimentos de vanguarda que surgiram nas décadas de 60 e 70 do século passado (não é estranho falar do século 20 como século passado?) esse conceito de mercado sofreu traumas profundos. Experiências as mais diversas expandiam o campo da linguagem artística de forma incontrolável: a arte já não cabia nos moldes pre-estabelecidos do Modernismo; a rigor, talvez não coubesse nem mesmo na idéia convencional de "obra", submetida às críticas mais pesadas.
Ao mesmo tempo, denunciava-se o caráter ideológico dos museus e galerias, que num determinado momento pareciam estar com os dias contados. A desmaterialização, a desestetização, o questionamento da própria idéia de autoria e outros processos estavam implícitos em "obras" que eram múltiplas, efêmeras, gigantescas, especificamente situadas, imateriais etc. Levados às últimas conseqüências, esses processos colocariam efetivamente em risco o mercado e as instituições - independentemente da qualidade propriamente artística de suas propostas.
A realidade é uma maçaroca confusa, na qual se entrelaçam sempre múltiplos movimentos. Mas vale a pena tentar destrinchá-los. Existe um debate que se dá em torno da validade das propostas radicais dos anos 60 e 70, entre elas a da fusão entre a arte e a vida, e suas conseqüências para a produção artística posterior. Até onde entendo, é a questão sobre a qual se debruça Ferreira Gullar, por exemplo, quando considera que aquelas propostas conduziram à destruição da própria linguagem artística.
(Parêntesis: concorde-se ou não com Gullar, quem ler sem preconceitos seus livros Etapas da arte contemporânea e Argumentação contra a morte da arte verificará que sua argumentação é sólida, consistente, bem informada. Além disso, Gullar foi protagonista do movimento neoconcreto, decisivo para os desdobramentos posteriores da arte brasileria: considero incompreensível o ódio e o desrespeito com que muitos artistas se referem a ele, mesmo sem terem lido seus textos.)
Mas existe também outro debate, diferente, que diz respeito não propriamente à discussão artística, mas ao desenvolvimento histórico-sociológico-econômico da produção artística recente. É nesse debate que se insere uma questão fundamental, que venho tentando desenvolver aqui: como se explica que a arte radical e contestadora dos anos 60 e 70 tenha resultado na arte integrada, conservadora, domesticada, capitalista no mau sentido, que explodiu dos anos 80 para cá? A resposta a esta pergunta não pode ser dada só do ponto de vista do artista, nem do crítico de arte: ela está relacionada com uma reflexão mais ampla sobre a cultura e a sociedade - como a que fez, por exemplo, o sociólogo Pierre Bourdieu.
Em linhas gerais, eu resumiria a situação assim: das vanguardas e experiências radicais dos anos 60 e 70, o artista contemporãneo só preservou a pose e a atitude, ao mesmo tempo em que deu às mãos a um sistema especulativo e manipulador, no qual a arte é o que menos importa, ou melhor, importa como pretexto para o sistema funcionar.
Há exceções, mas o padrão de sucesso para o artista jovem hoje não é mais realizar uma obra relevante, que combine talento e técnica - até porque lhe ensinam nas escolas que isso não é mais possível, nem mesmo desejável - mas sim ser assimilado por um sistema que lhe proporcione exposição na mídia, viagens a feiras internacionais, em suma, entrar no clube. E quais são os modelos que o sistema oferece? Coelhinhos de alumínio, tubarões em formol, instalações sobre o nada. Antigamente a gente ia nos museus e via estudantes de arte copiando as telas importantes, para aprimorar a mão: hoje os próprios professores dizem que saber pintar é besteira.
Boa parte da arte de sucesso que se produz hoje implica técnicas de produção caras, equipes de assistentes e, naturalmente, financiadores: mal comparando, a arte se aproximou da indústria cinematográfica, em que o poder dos produtores é cada vez maior (não é à toa que o cinema de arte morreu). O artista, ou alguém ligado a ele, precisa convencer um patrocinador a comprar uma "promessa" de obra. O patrocinador, por sua vez, muitas vezes acumula a condição de colecionador, conselheiro de instituição, ou mesmo curador. É toda uma rede de funções com um objetivo comum: mais do que o lucro, a reprodução do sistema, e seria ingênuo acreditar que grandes corporações comprem ou patrocinem obras realmente contestadoras, não assimiláveis e mercantilizáveis.
Reconheço que hoje é difícil produzir uma obra assim. O sistema deu um jeito de se apropriar de todas as manifestações artísticas que supostamente não caberiam numa coleção - "coleção" é outro conceito fundamental para o mercado. Os múltiplos, as performances, as instalações, as obras efêmeras ou industrialmente reproduzíveis, as obras ambientais ou especificamente situadas: para tudo se encontra uma maneira de enquadrar, expor, valorizar e vender, mesmo para aquelas propostas que colocavam em causa a própria possibilidade da coleção. As instalações e pergformances, por exemplo, de propostas anti-sistema, passaram a ser ferramentas de marketing para a promoção do artista num mercado globalizado, onde o primeiro deafio é chamar a atenção.
A fotografia foi duplamente útil: primeiro, como "traço" de obras conceituais ou da Land Art, com sinal ou registro de que a obra existiu; segundo, assumindo ela própria o status de obra de arte. Hoje fotos de Andreas Gursky ou Cindy Sherman podem valer quase um milhão de dólares. A foto do cowboy abaixo, de Richard Prince, foi vendida na Christie's em novembro de 2005 por... 1,1 milhão de dólares.
Como se vê, o problema da reprodutibilidade da fotografia foi rapidamente resolvido pelo mercado: tiragens limitadas, numeradas e assinadas "fabricam", por assim dizer, uma aura de autenticidade que justifica as cotações milionárias. Em alguns casos, para se garantir a raridade da obra, os negativos são destruídos. Evidentemente, isso já é uma forma da manipulação do valor, pois milhares de fotografias idênticas reproduzidas do mesmo negativo não teriam valor algum, e não haveria original, nem obra. (É claro, por outro lado, que as falsificações de fotografias são muito mais fáceis que as de pinturas: Man Ray foi vítima de várias falsificações, por exemplo.)
O importante é notar que as estratégias de difusão prevalecem cada vez mais sobre a discussão da obra em si. O artista cada vez mais se assemelha a oturas categorias profissionais cujo êxito depende sobretudo do marketing. Para um artista de instalações, que dificilmente venderá sua obra a colecionadores individuais, ser adotado pelo sistema é uma questão de vida ou morte; mas, uma vez instalado numa instituição importante, poderá entrar num circuito de exposições e de mídia que aumentará o valor outras obras suas, mais vendáveis.
Em suma, é uma teia de canais comunicantes, de portas que se abrem e se fecham, de redes de relacionamento, de fluxos de informação e circulação de valores nos quais as qualidades intrínsecas da obra importam pouco. Ilude-se o artista jovem que acreditar que a qualidade de sua obra produzirá o ingresso nesse sistema; ao contrário: será sua capacidade em estabelecer os laços com as pessoas certas do sistema que fará sua obra existir - como produto.
Isso não é simples, claro. Nessa rede imaterial de relacionamentos, tudo é passível de se transformar em moeda de troca. Propostas indecentes são aceitas com entusiasmo e gratidão, porque não há alternativa. Desta forma, um marchand pode pedir ao artista obras "em doação", sem desembolsar um centavo, em troca da promessa de abrir determinados canais; um colecionador pode pedir desconto de 90% numa obra, já que o simples fato de figurar em sua coleção será bom para o artista. Isso sem falar nos freqüentes "beiços", golpes, rasteiras e traições tão freqüentes no cotidiano real do mundo da arte no Brasil, que fariam a delícia de um Truman Capote tupiniquim.
Sexo e drogas também podem ser moeda, da artista bonitinha disposta a tudo ao artista fornecedor de aditivos nasais, ou vice-versa. Mas isso não acontece só na arte, é claro.
As galerias são um capítulo à parte. O que tenho ouvido de histórias escabrosas de bastidores já daria um livro, mas mesmo o que acontece abertamente já é impressionante. O que me parece certo é que o artista está sempre no lado mais fraco da corda e, por isso, se submete às piores práticas. Há pouco tempo um artista viu numa revista a foto de uma estrela televisiva com um quadro seu pendurado na parede da sala de casa: como ele não sabia que o quadro tinha sido vendido, entrou em contato com a galerista (geralmente são mulheres). O quadro tinha sido "alugado" para a matéria, sem que ele fosse avisado.
Uma historinha boba, mas representativa de como as coisas funcionam: é um mundo cheio de segredos e mentiras, na qual fica até difícil avaliar quem está se dando bem. Assim, se sai no jornal a informação de que determinada obra foi vendida por 100 mil reais, ela pode ter sido vendida na verdade por 10 mil, ou por 200 mil, e o artista ter recebido a décima parte do valor. Ou nem ter sido vendida. A atitude que prevalece é a de mistério: "Preferimos não divulgar os valores", declarou uma galerista sobre as obras que vendeu na ARCO. Se num evento patrocinado por dinheiro público prevalece o sigilo, imaginem nas negociações privadas, num mercado desregulado (mas cujos agentes teriam, de qualquer forma, obrigações com a Receita).
Saturday, March 15, 2008
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1 comment:
é ruim hein, que receita? de bolo? estou sem o circunflexo
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