Friday, March 07, 2008

Alguns fatores que levaram a arte ao estado a que chegou, e não a outros estados a que poderia ter chegado


Submetendo-se à lógica da massificação cultural, a arte vira uma encenação: continuam existindo obras, é claro, mas sua finalidade não é mais artística, e sim mercadológica-mediática; seu motor é a dinâmica consumista do mercado, não apenas o mercado das negociações materiais e financeiras, mas também e sobretudo a economia das trocas simbólicas que constituem, para usar uma expressão superada, a superestrutura ideológica na qual a arte hoje opera. É claro que existem coisas interessantes sendo feitas, mas sempre nesse horizonte.

Nesse processo, o lucro e a fama não são os fatores mais relevantes, ou melhor: são relevantes para a cooptação dos agentes individuais do sistema, do artista deslumbrado com a própria exposição na mídia ao curador que debocha da pintura, do crítico que abre mão de julgar ao colecionador que começa a ser aceito no circuito social de festas e badalações.

Por tudo isso, é natural que sistema da arte negue o pensamento: do público e da crítica, ele só espera uma atitude de passividade resignada, para que o modelo se reproduza indefinidamente - isto sim é importante. E a beleza do modelo está na inconsciência com que todos os agentes participam dele, mesmo aqueles agentes que só ficam com as migalhas, mas rechaçam raivosamente, como cães de guarda, qualquer tentativa de reflexão crítica que ponha em questão os valores vigentes.

Não chega a surpreender, portanto, que qualquer voz dissonante seja recebida com desdém. Mas do que qualquer outra esfera da cultura, as artes plásticas se converteram num clube social, no qual, "no fundo no fundo", não importa o que você faz, mas a rede de relações das quais você participa - e aí entram desde laços familiares (parentes "bem situados" etc) até relações de classe e de tribo (incluindo preferências sexuais, o tipo de drogas que se consome etc).

Paradoxalmente, essas redes se articulam em torno da arte, mas a obra de arte em si importa cada vez menos, na medida em que se converte em mero pretexto para o funcionamento dessas redes. Nesse sentido, quanto mais inofensiva e domesticada for a produção artística, maiores as suas chances de êxito. Mas tem um detalhe: hoje não existe nada mais inofensivo e domesticado que a ousadia de butique, como demonstra a assimilação de artistas "ousados" pelo mercado especulativo. Ousadia hoje é insistir numa arte que exija talento e técnica, que exija a mão do artista, que exija reflexão sobre o papel da arte e sua relação com as instituições.

Não é isso o que se vê, mesmo naqueles lugares que por definição deveriam estimular o pensamento crítico, como as escolas de arte. Outro dia alguém comentou que tem gente querendo me matar (figura de linguagem, espero!) na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, mas sei que lá também há muitos professores e alunos que acham pertinente o que escrevo (sem necessariamente concordar comigo). Idem em relação à Escola de Belas Artes da UFRJ - uma aluna de lá, aliás, me escreveu chamando a atenção para a página de abertura do site da EBA (www.eba.ufrj.br) exibir não uma pintura ou uma escultura, mas uma... casca de ovo quebrada, o que é no mínimo sugestivo.

Sugestivo de quê? Do predomínio de uma já surrada visão conceitualista da arte. O ataque de Marcel Duchamp às categorias estéticas tradicionais, realizado há mais de 90 anos, continua a ser recuperado como grande novidade - ignorando-se, ou fingindo-se ignorar, que já não existem mais categorias tradicionais a atacar, e que portanto insistir em emular Duchamp é um gesto não apenas inofensivo, mas vazio de sentido.

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