Tuesday, April 01, 2008

Artistas imaginários


Em 1998, o escritor inglês William Boyd lançou o livro Nat Tate: An American Artist – 1928-1960, a biografia de um pintor americano, da segunda geração de expressionistas abstratos. Três meses e muitas reportagens depois do lançamento, descobriu-se que Tate jamais existira. Forjando uma biografia, com análises críticas, fotografias (incluindo a do quadro acima, pintado pelo próprio Boyd), documentos e demais elementos associados ao percurso de seu personagem, Boyd colocava os leitores na delicada alternativa de reconhecerem a sua ignorância, se questionassem a obra, ou de fingirem conhecer o artista - o que diversos críticos e jornalistas especializados fizeram, caindo no ridículo tecendo considerações sobre a obra de Tate e elogiando Boyd por ter resgatado um artista precocemente desaparecido e injustamente desprezado.

O escritor chegou a declarar aos jornalistas: "Tate was one of those rare artists who did not need, and did not seek, the transformation of his painting into a valuable commodity to be bought and sold on the whim of a market and its marketeers." David Bowie participou do trote, comparecendo à cerimônia de lançamento do livro, realizada, vejam só, no estúdio do artista Jeff Koons. Bowie leu um trecho do livro, justamente a passagem onde o biografado se suicida por afogamento, aos 31 anos - após visitar Georges Bracque e se sentir humilhado diante da revelação da verdadeira arte. Seu corpo nunca foi encontrado, Bowie lembrou, e poucas de suas obras foram preservadas. Um dos repórteres humildemente perguntou aos críticos de arte ali presentes se já haviam ouvido falar em Tate. Todos confirmaram.

Outro caso interessante, e ainda mais intrigante apesar de mais antigo, é o de Hank Herron, pintor exaltado no ensaio "Fake as More", da crítica Cheryl Bernstein, no livro Art Idea (1973) - na realidade Carol Duncan, historiadora de arte que resolveu pregar uma peça em seus colegas. Herron pintava quadros idênticos aos de Frank Stella, mas como obras novas, não como falsificações ou cópias. Obras aliás superiores às originais, devido à riqueza conceitual derivada do fato de serem reproduções. "A obra do sr. Herron, que criou cópias exatas de pinturas de Frank Stella, introduz, não obstante, um novo conteúdo e um novo contexto", escreveu Duncan, "que não estão presentes na obra de Stella, isto é, a negação da originalidade."

O que era sátira transformou-se, na década seguinte, em realidade pós-moderna, com as fotografias que Sherrie Levine tirou das fotografias de Walker Evans e Edward Weston. Só mesmo uma mudança de paradigma explica que algo apresentado em 1973 como uma piada fosse vendido em 1981 como arte. Pessoalmente, confesso que vejo a obra de Levine como uma piada. Como artista, ela tem a mesma consistência e é tão imaginária quanto Nat Tate e Han Herron. Abaixo uma fotografia de Walker Evans, e outra de Sherrie Levine, "After Walker Evans"

Revelando o terreno movediço que sustenta a arte contemporânea, o inverso também acontece: não somente artistas imaginários são dados como reais; artistas reais também são suspeitos de não existir. Foi o caso de Harold Shapinsky, um expressionista abstrato real que caiu no ostracismo e, quando foi redescoberto nos anos 80, galeristas americanos afirmaram se tratar de uma fraude. O que me leva a crer que o edo de pagar mico - seja revelando ignorância, seja revelando ingenuidade - é um componente psicológico importante no comportamento dos agentes do sistema da arte. Talvez um efeito colateral do complexo de culpa, por parte da crítica especializada, em relação a julgamentos equivocados do passado, como a condenação do Impressionismo por críticos franceses, ou a condenação do Modernismo brasileiro por Monteiro Lobato. Para não parecer reacionário, algumas pessoas abrirammão do discernimento e passaram a engolir qualquer coisa que apareça pela frente.

Voltando ao caso Nat Tate. Quando foram desmascarados, o escritor William Boyd e sua editora se defenderam da seguinte maneira: o objetivo de Boyd não era revelar a superficialidade do mundo da arte novaiorquino; o livro era, ele próprio, uma obra conceitual, que força os leitores a refletir sobre o que confere estatuto de realidade a um artista ou uma obra. De fato, como obra conceitual, o livro Nat Tate: An American Artist é muito mais interessante do que muitas obras designadas como geniais pelo sistema da arte contemporânea.

Por fim, para dar uma cor local ao tema: em 2006, o artista japonês Souzousareta Geijutsuka foi convidado a expor no MACCE (Museu de Arte Contemporânea do Ceará), em Fortaleza. Como costuma acontecer no Brasil, ele foi anunciado pela imprensa cearense como um dos principais nomes da arte contemporânea universal. O artista ocuparia uma sala inteira do museu com flores e vegetais carbonizados, representando o "equilíbrio entre a vida e a morte", a "harmonia entre a natureza que nasce e morre", um "convite a reflexões sensoriais sobre a fragilidade da vida". As expressões entre aspas foram tiradas de matérias nos jornais do Ceará. Um jornalista chegou a escrever: "O artista conquistou fama mundo afora, exatamente por elencar assuntos tão distintos, como: arte, ciência e tecnologia em suas exposições"; "Entre outras cidades já expôs em Tóquio, Nova York, Berlim e São Paulo". Coroando o episódio, o jornal Diário do Nordeste publicou uma longa entrevista com o artista, feita por e-mail.

No dia da abertura da exposição, surpresa: não havia nada exposto, simplesmente porque Geijutsuka não existia: era uma invenção do artista Yuri Firmeza. Na sala prevista para a montagem, uma placa dizia: "Exposição em desmontagem". Numa parede, um texto assinado pelo diretor do MACCE, Ricardo Resende, falava de um projeto artístico conceitual "que foge do puramente contemplativo e exige do público a reflexão sobre o que se vê ou o quê não se vê", e sugeria que a exposição era sobre "a 'ficção' de se fazer arte na atualidade".

Firmeza, por sua vez, se justificou com muita propriedade: "Bastaria fazer uma rápida pesquisa no Google para que os jornalistas descobrissem que não havia, na Internet, nenhuma menção ao tal Geijutsuka, apresentado como um artista famoso, com exposições consagradoras em Tóquio, Nova York, São Paulo e Berlim. Mas eu não quis provocar apenas a imprensa, isso seria reduzir o alcance da denúncia; a provocação foi extensiva a todo o circuito das artes em geral". Pelo visto, o circuito das artes em geral não se constrangeu: na arte ninguém se constrange com mais nada.

Abaixo, cena de uma vídeo-arte do artista japonês Souzousareta Geijutsuka - que, aliás, significa "Artista Inventado". em japonês.

7 comments:

Emerson Morais said...

depois desse artigo, cessam meus comentários diante da estúpida tentativa dos "intelectuais" que diariamente tentam nos convencer da utilidade da arte contemporânea que é produzida e existe hoje nos museus e círculos fechados (as famosas panelinhas).
vi uma reportagem na tv espanhola sobre a Arco, na qual os repórteres fizeram a seguinte experiência: foram à uma escola de ensino fundamental (onde estudam crianças de 6 a 8 anos de idade) e esticaram uma tela de aproximadamente 1,80 m X 1,50 m, deram tintas às mesmas e a seguinte instrução: que elas pintassem aleatoreamente, jogando livremente as cores sobre a tela, pisando, lambrecando, enfim, que elas fizessem as maiores doideiras possíveis... depois pegaram a tela (e como a imprensa tem livre acesso a esse tipo de evento) colocaram-na em uma parede estratégica, de modo que não fossem facilmente detectados pela segurança do museu, e a deixaram lá.
pessoa após pessoa passava, olhava, o repórter vinha e entrevistava... pouquíssimas pessoas foram verdadeiras o suficiente pra dizer que o trabalho era um lixo. outros, que se achavam intelectuais (talvez por medo ou por pura ignorância e comodismo) teciam os mais extensos e ridículos comentários sobre o "trabalho". um deles me marcou:
"há uma incrivel profundidade e carga de sentimentos reprimidos aqui, por conta da forma como "o" artista distribuiu pinceladas "nervosas", ficando clara a intenção de perturbar o espectador..."
diante dessa situação, acredito que só um novo grupo de artistas e apaixonados pela verdadeira arte, pode talvez transformar a triste realidade que é aceita e imposta pela grande mídia e/ou mercado de arte, marchands, críticos, etc.
abraços, emerson morais.

Unknown said...

qualquer coisa vale, a arte virou entretenimento...

XTO said...

Teve o caso do quadro pintado pelo burro enquanto balançava o rabo molhado de tinta e era alimentado com torrões de açúcar. Que bonitinho!! Ainda que naquela época, com a expressão abstrata começando a ser considerada arte e já bem criticada, era mais fácil cair nessas armadilhas.

Ana Carolina Fernandes Gonçalves said...

são as estranhas criaturas da razão...

Ana Carolina Fernandes Gonçalves said...

são as estranhas criaturas da razão...

Ana Carolina Fernandes Gonçalves said...

são as estranhas criaturas da razão..

Ana Carolina Fernandes Gonçalves said...

são as estranhas criaturas da razão...