Wednesday, December 19, 2007

Ainda sobre a crise da arte



"Eu vejo um museu de grandes novidades" (Cazuza)

Existe uma crise da arte contemporânea? Sim, e ela está ligada à natureza da relação entre a arte e o mercado hoje, isto é, aos circuitos de produção, distribuição e consumo que fazem girar o sistema internacional da arte. Uma hipótese: não foi por coincidência que a transição da arte moderna para a arte contemporânea se deu após o deslocamento do pólo artístico hegemônico da Europa para os Estados Unidos, a partir do fim da Segunda Guerra. Da mesma forma que interessava à América assumir a liderança política e econômica do Ocidente, também interessava produzir uma arte “autônoma”, isto é, desligada da herança do passado europeu, e isso explicaria em parte a emergência de fenômenos como a action painting, o Minimalismo, a Pop Art e a própria Arte Conceitual, que podiam ser apresentados e consumidos como verdadeiros novos marcos iniciais da arte.

A Arte Conceitual, de vocação metalingüística, acabou se transformando numa vertente dominante (embora, é claro, existam artistas que continuam se dedicando à pintura, à escultura etc, mesmo no Brasil), o que deve ter alguma relação com a consolidação planetária da sociedade de consumo: daí a aproximação, nas décadas de 50 a 70, entre as artes plásticas e produtos industrializados, mas também de formas populares de cultura, como o cinema e as histórias em quadrinhos, ao mesmo tempo em que surgia uma estética publicitária, voltada para as massas de consumidores. Aquele período testemunhou uma efervescência criativa rara e efetivamente plural, da qual não estava ausente a apropriação (para alguns, a corrupção) de práticas e técnicas das primeiras vanguardas - collage, assemblage, incorporação de textos no espaço da pintura etc.

Por volta de 1962, o Expressionimo Abstrato, de difícil assimilação, já estava agonizando (e com ele os preceitos formalistas de críticos como Clement Greenberg), cedendo lugar a movimentos que, num certo sentido, banalizavam a arte mas, ao mesmo tempo, paradoxalmente, iniciavam o processo de seu distanciamento do público. Proliferaram os "ismos", buscaram-se novos suportes, desmaterializou-se e desestetizou-se a arte. Mas o que parecia um saudável processo de eliminação de fronteiras (entre objetos manufaturados e artísticos; entre o artista e o espectador, entre o banal e a obra-prima) acabou se revelando uma armadilha de conseqüências desastrosas.

Com o passar das décadas, a prevalência de uma arte de idéias (não é à toa que a influência de Marcel Duchamp é cada vez mais valorizada) deu margem a um processo de autofagia da arte contemporânea, a uma crescente esterilidade criativa e ao inegável divórcio entre os artistas e o público - e, por extensão, entre os artistas e a sociedade. A arte que se limita a refletir sobre si própria, sem qualquer outra finalidade, produziu um grande vazio, aliás previsto pelo historiador Giulio Carlo Argan - que identificava, já no Modernismo, entre outros problemas graves, o fim da idéia de arte como algo sublime. A idéia de que qualquer objeto, mesmo industrialmente fabricado, sem qualquer técnica artesanal, pode ser entendido como arte, desde que ele se insira no circuito mercadológico, na rede de produção de sinos e mercadorias que domina a arte hoje, confirmou os piores pesadelos de Argan.

Mas o mais grave veio depois: muitas idéias que na origem tinham um espírito de contestação ao mercado foram assimiladas pelo próprio mercado, ao qual se opunham, e transformadas elas próprias em moeda. Esse processo começou já nos anos 50 e 60, quando galeristas como Iris Clert e Leo Castelli entenderam que expor obras invendáveis ou mesmo efêmeras performances de artistas como Yves Klein era uma estratégia inteligente e lucrativa: primeiro lançava-se a griffe, para em seguida vender seus subprodutos a preços astronômicos (mal comparando, é uma estratégia parecida com a do mundo da alta costura). Klein chegou a vender "zonas virtuais de senbilidade pictórica", trocando recibos (que o comprador devia queimar) por barras de ouro, que ele atirava ao Sena - o que mostra que esse artista foi muito mais radical que seus diluidores atuais. Bem depois, dele, aliás, o artista Fred Forest criou o "metro quadrado artístico", isto é, você comprava um metro quadrado de um terreno dito "artístico" e passava a integrar a esfera da arte... [Hoje Forest enveredou pela arte digital, e confesso que achei o site dele interessante, recomendo uma visita: www.fredforest.com]

Esses galeristas foram precursores da lógica das Bienais, que expõem instalações ou sucatas gigantescas, que não estão à venda, para valorizar o nome do artista, de quem mais tarde serão comercializadas outras obras, vendáveis e colecionáveis, numa apologia do consumo. Concilia-se assim a imagem romântica do artista contestador com sua total adesão à lógica do consumo. A obra se tornou uma mercadoria como outra qualquer, sujeita às leis do mercado; já o autor, figura que o processo de despersonalização da arte tendia a esmaecer, continua vaidosamente inflado, cheio de discursos de auto-afirmação narcisista. Ele abandonou o discurso de rejeição ao mercado, ou o adora de forma cínica ou hipócrita. Abandonou também a contestação ao museu como instituição (ao contrário, o que ele mais quer é receber uma encomenda que o legitime e o integre ao circuito internacional) e o projeto de eliminar as fronteiras entre a arte e a vida (já que se encera cada vez mais num clube fechado), ou de contribuir para melhorar a sociedade (projeto que ainda se filia a uma História ultrapassada).

(Parêntesis: Processo similar afeta os museus, que de alvo preferencial de artistas que contestavam a instituição, passaram a ser o destino de desejo de todos os artistas, mesmo os de aparência mais radical. Os museus, como a assinatura dos artistas escolhidos, se tornaram em instâncias de legitimação de uma produção que, sem elas, passaria desapercebida. São os museus, salões, galerias que conferem ao objeto o status de arte, não qualquer valor intrínseco da obra. A vocação cultural dessas instituições está sendo substituída pela lógica do mercado-espetáculo. O Guggenheim se vangloria de integrar o "negócio do entretenimento", até mesmo o Louvre e o Hermitage anunciaram a abertira de filiais "caça-níqueis", respectivamente nos Emirados Árabes e em Las Vegas. Além disso, o Louvre tem "alugado" obras-primas de seu acervo a museus americanos: pinturas de Poussin e Rafael foram para Atlanta, onde ficarão por um período de seis meses a um ano, mediante um pagamento milhões de dólares. É claro que a motivação prioncipal é o business, a busca de recursos financeiros; o papel educativo e cultural fica em segundo plano. É o patrimônio artístico virando moeda e bem de consumo: a arte passou a ser entendida sobretudo como um negócio rentável).

A globalização neoliberal da arte produz ilusões. Em sua compulsão expansionista, o sistema precisa de novos mercados, novos produtos, novos nomes. China, Brasil, países do Leste Europeu, da África e do chamado Terceiro Mundo (uma categoria da qual passamos a nos envergonhar, já que perdeu seu conteúdo político) se tornam novas colônias fornecedoras de matéria-prima. Em sua peregrinação incessante pelo mundo à cata de novidades, curadores de grandes exposições internacionais criaram novas escalas, entre elas o Brasil. Recentemente, um emissário de Kassel de passagem por aqui declarou que não sabia mais o que era a arte, e que selecionava as obras pelos nomes dos artistas. Que outro critério poderia adotar, se a invenção, a técnica e a preocupação estética ficaram em segundo plano? Os artistas, por sua vez, ansiosos para entrar no circuito, acham que é isso mesmo. O mundo gira e a Lusitana roda.

Mas a produção do artista depende cada vez mais do sistema para ter visibilidade, ou melhor, existência social: fora dele, sua fragilidade se tornaria evidente. O sistema referenda os artistas que ele próprio lança: as garantias de seu valor são sua própria presença no circuito, o fato de estarem expostas e as cotações que o mercado estabelece. O público não precisa entender nem achar bom, basta que ele identifique a obra como arte contemporãnea. Ora, se o acaso e a escolha, subordinada a imperativos comerciais, substuíram o criar e o fazer, continuará o artista sendo verdadeiramente um autor? O triunfo da vertente conceitual da arte significou o triunfo da idéia de que cabe ao artista designar o que é arte, e não mais criá-la. Numa primeira etapa, o local da exposição é que diferenciava o objeto artístico do objeto comum, mas depois até mesmo isso deixou de ser necessário. O que importa é que a produção artística se articule com o mundo dos negócios, e a assinatura do artista tem uma função equivalente à assinatura de um cheque: é a garantia que dá valor e legitimidade ao objeto. De crítico e antena da sociedade, o artista passou a homem de negócios plenamente integrado, num business-artist, para usar a expressão assumida por Andy Warhol (coerentemente, ele perseguiu a celebridade a vida inteira com obstinação: a celebridade é outro signo de sucesso). Que resposta estética ao mundo é possível esperar do artista, nesse contexto?

A mensagem (política, cultural, social) das primeiras vanguardas era claramente crítica à sociedade mercantilista, denunciando e rejeitando os valores do capital. Hoje o domínio da arte deixou de ser o do conflito e do questionamento da sociedade e do mercantilismo: até a rebeldia se profissionalizou. Na era do mercado total, nada se perde: o sistema da arte se tornou “auto-alimentante”, produzindo continuamente valores e nomes que serão consumidos por ele próprio, num jogo que interessa a todos os seus participantes – do artista ao comprador, passando por galeristas, marchands, curadores... e o que restou dos críticos, naturalmente cooptados. São esses profissionais da arte que induzem as cotações de determiando artista para cima ou para baixo, especulando como numa bolsa de valores. Fim da contestação e das mensagens socio-políticas, triunfo do critério capitalista de competição e desempenho.

No caso dos artistas, a grande divisão hoje é entre os que conseguem ou não se integrar ao sistema: todo o resto é irrelevante. Não é à toa que, uma vez integrados, eles passem a se repetir indefinidamente, em obras tautológicas, cuja função é reafirmar a própria identidade com a imagem que o projetou. É por isso que se produzem cada vez mais obras que não têm vínculo nenhum com a sociedade - além, é claro, do vínculo econômico. Quem é que pode se rconhecer, ou reconhecer algo relevante, em 300 quilos de maçãs ou tomates espalhados numa galeria? Ou no cachorro morto conservado em formol, de Damien Hirst, que ilustra este post?

Como na época das primeiras vanguardas, com a crise da pintura de inspiração mimética, e como nas décadas de 50 e 60, com a crise do Modernismo, acredito que estamos novamente diante da necessidade de uma revisão cultural e de uma análise da produção artística contemporânea que retome seriamente questões cruciais - qual o estatuto do artista? qual o papel da arte? É preciso redefinir tudo isso, porque estamos vivendo outra crise: a crise da mesmice e da esterilidade criativa, provocada pela asimilação total da arte a um sistema de mercado e consumo totais, no qual não existem brechas; ou você está dentro ou está fora.

PS: A segunda imagem do post também é de Damien Hirst: Lullaby Spring, arrematada este ano num leilão em Londres por 14 milhões de euros (cerca de R$ 36 milhões), o preço mais caro já pago por uma obra de artista vivo. Trata-se de um armário de aço inoxidável e cristal, com 6.136 pílulas coloridas. Quanto você pagaria?

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