Tuesday, January 08, 2008

Meu nome não é Johnny


Assisti ontem a Meu nome não é Johnny, de Mauro Lima. São muitas as qualidades do filme: a evocação da infância do protagonista, a caracterização econômica dos personagens, a interpretação de Selton Mello, a opção por uma narrativa direta, sem invencionices formais. Mas, por algum motivo, as duas frases que aparecem no começo e no final - "Baseado em fatos reais" e a declaração da juíza sobre a recuperação do personagem João Guilherme - parecem fora do lugar.

Isso porque as mesmas características que tornam o filme correto como produto e como linguagem (o equilíbrio das referências pop, da trilha sonora, do bom humor palatável à platéia) desumanizam, paradoxalmente, a trajetória sofrida de João. Sua história - exemplar na exposição de diversas questões determinantes dos rumos de sua geração - é enquadrada numa série de clichês, que podem tornar o filme mais fácil (é curioso obervar como em diversos momentos a platéia cai na risada), mas distanciam o espectador de uma experiência potencialmente transformadora. Curiosamente, mesmo as cenas mais fortes, como a morte do pai no andar de cima enquanto João e seus amigos "tecam" numa festinha no andar de baixo da casa, são esvaziadas de qualquer carga dramática.

"Baseado em fatos reais", assim, se reduz ao enredo, à exterioridade dos acontecimentos. Meu nome não é Johnny é, nesse sentido, um filme típico de nossa época, em que se evitam comprometimentos com questões morais. Não existem conflitos interiores, nem escolhas, nem arrependimentos: a vida de Johnny é mostrada como uma sucessão de episódios que se encadeiam de forma algo aleatória, como se as pessoas não tivessem responsabilidade pelo que fazem. Sintomaticamente, um momento revelador do filme é quando João Guilherme, no tribuinal, afirma não saber a diferença entre o que é dentro e fora da lei, porque na sua vida as coisas "foram acontecendo".

Meu nome não é Johnny espelha sem querer essa lógica: sem tomar uma posição clara (diferentemente do tão atacado Tropa de Elite, por exemplo), as coisas simplesmente vão acontecendo. A ambigüidade do filme deixa qualquer um à vontade para sair do cinema e dar um teco (mais uma vez, diferentemente de Tropa de Elite, que constrange o espectador a tomar posição). Mais que isso: em alguns momentos, a narrativa tangencia a mensagem de que a vida seria realmente uma festa que nunca termina, se não fosse a existência de policiais malvados ou corruptos que só existem para estragar a diversão.

Pouca ou nenhuma menção às implicações sociais do tráfico, à sua associação com o sofrimento e a violência, à dependência destruidora e à decomposição psicológica provocadas pela droga. Todo excesso desagradável da vida real, até mesmo dentro da cadeia, é depurado por um tratamento de bom humor, televisivo, "sem moralismos", como convém. Enquanto isso, está nos jornais de hoje que na comunidade Vila Miséria, no Morro da Mangueira, aqui no Rio, dominada pelo tráfico que o consumo social sustenta, policiais encontraram crânios e restos de ossadas humanas ao lado de um "microondas". Mas a juventude retratada no filme não tem nada a ver com isso, é claro.

Em outra frase reveladora, na mesma seqüência, o personagem diz que "não é bandido", como se bandidagem fosse uma essência, e não um comportamento. Sua incompetência como traficante se torna assim um álibi, como se só o criminoso bem-sucedido fosse criminoso ou merecesse punição. E a ausência de culpa é coroada, no final do filme, pela cena em que o guarda do manicômio oferece cocaína a João: é a velha desculpa de diluir a responsabilidade individual na doença geral da sociedade - se até o policial cheira, quem pode condenar João? Certo e errado se confundem, então vamos deixar tudo como está, para ver como é que fica. (Aliás, é sugestivo não aparecer se João aceita ou não a oferta, talvez porque, se ele recusasse, o filme fosse taxado de moralista).

É aqui que a frase final da juíza também parece fora de sintonia com o tom geral do filme (e soa como uma concessão do diretor à parcela "conservadora" do público). Pois em momento algum se sugere uma real superação por parte do personagem. Seu erro teria sido errar na medida, dar mole, não ter limite, se deixar prender. O próprio marketing do filme é ambíguo: "Ele tinha tudo, menos limite". Isso é bom ou ruim numa sociedade que valoriza a intensidade sensorial do presente e relativiza todos os valores? E qual seria exatamente o limite adequado? Cheirar socialmente? Traficar menos?

A recuperação do protagonista, nesse sentido, se limita à circunstância exterior de interromper o envolvimento com o tráfico, em função meramente de um castigo, talvez injusto, aplicado por uma sociedade incapaz de compreender sua rebeldia. Castigo só atenuado, aliás, pelo laudo que o define como "parcialmente incapaz" de tomar decisões, laudo que o filme, talvez involuntariamente, endossa. O sonho do usuário social deve ser esse: ser declarado parcialmente incapaz para se isentar de qualquer responsabilidade com as pessoas à sua volta.

Perdeu-se, portanto a chance de um filme histórico, cuja verdade não se limitasse à reconstituição exterior, bastante suavizada, de uma história trágica, mas também estivesse no aprofundamento de temas que são apenas arranhados. Meu nome não é Johnny é leve demais para a gravidade da experiência que procura contar.

6 comments:

Noga Sklar said...

Luciano, não vi o filme, mas vi a entrevista do João e do Selton na Marilia Gabriela. Resta observar se o filme não é, na verdade, fiel ao personagem que representa. Essa leveza, ou melhor, superficialidade, ou melhor ainda, falta de uma consciência dramática, do drama que atravessou, parece descreve-lo bem.

tagg said...

Acho que não gosto de você (ia dizer que 'te odeio pra sempre', mas depois achei pesado para uma primeira msg). O que vc diz me incomoda. Nada de novo o que vc diz, nada que eu não soubesse, mas dizer é algo, né? Dizer de novo. E o que vc disse é um tanto o que eu quis dizer após ver o filme... Não quis, não pude.

milabart said...

Oi, Luciano,

Leio sempre seu blog, gosto das questões que você traz aqui.
Vi "Meu nome não é Johnny" e vi também a entrevista do João e do Selton na Marília Gabriela (que, aliás, na minha opinião, não soube aproveitar muito bem os seus entrevistados).

Concordo com o comentário da Noga. Parece que foi mais ou menos da forma representada no filme que o João viveu tudo aquilo. Sem maiores reflexões ou culpas.

Não acho que o filme perca por não trazer à tona questões mais sérias e profundas, se a intenção era apenas contar a história do João.

Lu De Marco said...

Olá Luciano, discordo com sua crítica sobre o filme...sobre a primeira frase: baseado em fatos reais, ela realmente faz sentido,pois foi uma história inspirada (baseada) na realidade vivida por João Estrella. E inclusive o próprio em várias entrevistas disse que tanto o filme quanto o livro não fugiu mto a realidade. Sobre o comportamento do João ele foi um jovem inconsequente e q não teve limites impostos por seus pais, mas ele não matava, não roubava, e sim envolveu - se com o tráfico para sustentar seu próprio vício, então realmente ele não era um bandido e sim um viciado, e como td pessoa doente, viciada merece a chance de recuperação creio q a decisão da juíza foi a mais acertada, tanto é q a prova disso é hoje o João ter se livrado das drogas, ser um grande musico e se tornar a Estrella de um filme. E se ele tivesse sido condenado a anos de prisão? Quem seria o João hoje? Talvez seria um desses viciado q não tiveram a msm chance q ele, vivem em cadeias superlotadas e entraram pra bandidagem por falta de opção. Quem nunca errou q atire a primeira pedra. Pois com crtz alguma vez vc já errou (ou vai errar) q qdo isso aconteceu vc deve ter tido o arrependimento e o desejo do perdão, o direito de uma chance.

Unknown said...

Não tem o que pôr nem o que tirar do seu comentário...
acabei de assistir o filme e voltei pra net ansioso para ver as opiniões dos jornalistas, e fiquei espantado como aparentemente ninguém "percebeu" o desserviço que este filme pode trazer à sociedade (não como "biografia inofensiva", e sim como filme de massa formador de opinião), desfazendo todo o "progresso" conseguido pelo Tropa de Elite ao plantar na cabeça dos brasileiros a semente da possibilidade de considerar um traficante de drogas como criminoso afinal, oras bolas!
E agora, como sempre, paciência, o bandido é o herói. Mais uma inversão de valores para a nossa coleção cinematográfica.

Aщa said...

Acabo de ir al cine a ver Meu nome não é Johnny.

Es un poco como si sus hechos no tuvieran consequencias mayores, en Bicho de Sete Cabeças el joven no hace nada malo pero termina pagando con todo lo que tiene.

Aquí la vida de un narcotraficante se convierte en un acto de lujo, un par de años de manicomio como lo muestran en esta pelicula, no parece ser la gran cosa después de una vida así.

Además, tener a un actor simpatico nunca sirve para "educar"..

Saludos.