Tuesday, January 01, 2008
Arte, mercado e crítica
Contra a idéia de uma crise, argumenta-se que o mercado internacional de arte está num período de euforia, e é verdade. Cotações não param de subir, empurradas por investidores americanos, é claro, mas também por um novo grupo de milionários de países emergentes, como a China, a Índia e a Rússia - não é á toa que a Christie's abriu recentemente escritórios nesses países. Nos últimos dois anos, obras de Picasso, Gustav Klimt e dos expressionistas abstratos Jackson Pollock e Willem de Kooning foram vendidas por mais de 90 milhões de dólares – o que mostra que, quando se chega nessa escala de valores, a arte moderna continua a ser valorizada, e muito, mesmo que os teóricos da arte contemporânea tenham decretado o fim da pintura e do projeto moderno (independente disso, eu não trocaria uma tela de Chagall por dez obras conceituais, não importa quanto digam que valem).
O mundo dá muitas voltas: o mercado absorve e transforma em mercadorias milionárias as obras que atacaram de forma mais veemente a mercantilização da arte e suas instituições, começando pelo urinol de Duchamp. Antigamente a posse de uma obra de arte dava respeitabilidade ao dinheiro dos muito ricos; hoje é o dinheiro dos muito ricos que dá respeitabilidade à obra de arte. Os valores se inverteram: o dinheiro servia à arte, hoje a arte serve ao dinheiro. Ou melhor, a arte se transformou numa espécie de dinheiro, numa moeda. Apenas a arte que se converte em altas cifras é citada pelos jornais e pelos livros: a crítica se transforma numa racionalização dos resultados dos leilões.
A crise de que falo não é financeira. A escalada de preços é reveladora da saúde do capitalismo, não da arte: o que os dados acima demonstram é que aumentou a compra de arte como investimento. Mas vale lembrar que nos anos 80 houve uma euforia semelhante, provocada por milionários japoneses excêntricos, e muitas obras compradas por fortunas sofreram uma brutal desvalorização poucos anos depois. Nos anos 90 veio a crise, seguida por uma certa desconfiança dos investidores em relação aos artistas jovens. Ou seja, como todos os mercados, o de arte também é sujeito a bolhas especulativas, agravadas pelo fato de que nesse meio os segredos e as mentiras são freqüentes. Em algum momento a demanda cai, como na Bolsa de Valores, e na hora da queda é que se sabe o que realmente vale, e quanto. (O economista John Kenneth Galbraith deu uma definição genial para o estouro de uma bolha econômica: é "uma tragédia em que nada se perde, a não ser dinheiro" - o que se aplica perfeitamente ao mercado da arte, que não tem nenhum impacto sobre o mortal comum).
Aliás, depois dos japoneses, nos anos 80, dos oligarcas russos, nos 90, e dos magnatas de Hong Kong, Cingapura e Dubai, nos últimos anos, os compradores de arte debutantes no mercado são executivos de fundos de investimento, que estudam seus lances tendo em vista exclusivamente o lucro. Quem está dando as cartas hoje são estrelas do mercado financeiro, como Steven Cohen, David Martinez e Ronald Lauder. O fato de um dos maiores colecionadores do mundo ser David Geffen, mega-empresário do show business (aquele que foi casado com Keanu Reeves) deve querer dizer alguma coisa. Geffen vendeu em 2006 um De Kooning e um Pollock por cerca de 130 milhões de dólares cada. E pensar no carnaval que a mídia brasileira fez quando a tela Abaporu, de Tarsila do Amaral, foi vendida por 1,3 milhão de dólares, em 1995; não deve dar para pagar nem o rabo do tubarão do Damien Hirst...
Os movimentos de mercado substituíram os movimentos artísticos. Essa exuberância irracional das cotações tem mais a ver com finanças do que com qualidade artística: o dinheiro dos muito ricos está sobrando e precisa circular para gerar mais dinheiro. Além disso, dinheiro em si só vale pelo valor de troca, isto é, pelo que pode comprar, e não traz status: transformá-lo em arte traz um valor agregado para os novos-ricos da globalização selvagem.
Antes que a arte se entregasse de vez ao mercado, não era apenas a relação entre oferta e demanda que determinava as cotações: o reconhecimento crítico dos artistas também era um fator relevante. Com o ocaso da crítica, esse elemento de mediação passou a ser substituído pela quantificação, altamente manipulável, de cifras e aparições do artista na mídia, em galerias e exposições. Resumindo: se faz sucesso, é bom (seria como se, no mundo dos livros, Paulo Coelho e a autora de O segredo fossem internacionalmente reconhecidos como gênios).
Os poucos críticos que restaram servem para referendar esse critério, com a encenação de uma atividade outrora importante. Mas a ausência da crítica séria e qualificada como fiadora e mediadora da arte facilita a valorização de modismos passageiros - tornando o mercado mais volátil e o investimento mais arriscado, é claro. E num eventual cenário de crise, ainda mais num mercado periférico como o brasileiro, mesmo obras artistas com cotação internacional podem perder liquidez em níveis drásticos. E quem investe em arte exige garantias mínimas de retorno, isto é, saber que poderá revender sua aquisição na hora que quiser, com lucro.
Uma leitora brasileira do blog, na Espanha, informa que lá existe uma preocupação grande com o domínio do mercado pelas corporações, que montam coleções fabulosas - Telefónica, Argentaria, Fundación Coca-Cola - mas segundo critérios questionáveis, sobretudo em relação aos novos artistas, enquanto feiras subvencionadas pelo Governo perdem espaço. Os pequenos investidores e colecionadores se assustam com o aumento dos preços e saem do mercado. Não se investe na formação e fidelização de um público de visitantes e pequenos compradores.
Tudo isso vem sendo debatido de forma bastante intensa fora do Brasil, e não entendo por que aqui se reage com hostilidade a esse tipo de discussão. Uma crítica de arte curadora independente na Catalunha, Amanda Cuesta, tem se dedicado a estudar a estrutura econômica e a gestão de recursos no meio artístico. Ela compara o movimento atual à mudança no modelo de organização da arte na época das vanguardas artísticas no começo do século XX. Nas atitudes e nas linguagens, mas também nas estratégias profissionais, os artistas modernos enfrentaram a resistência acadêmica e responderam ativamente aos desafios trazidos pela industrialização à sociedade e à cultura. Mas ela também alerta para o perigo de a arte ficar excessivamente dependente das coleções corporativas ou institucionais.
Outro leitor me envia a lista dos Top 100 da revista ArtPrice, que mede o desempenho dos artistas contemporâneos com base no total de euros obtido com vendas mundiais de suas obras. A lista que chegou se baseia no período de 1 de janeiro a 1 de setembro de 2006; vou tentar descobrir uma versão mais recente, mas esta já é bastante reveladora (entre parêntesis, o ano de nascimento do artista):
1. KOONS Jeff (1955) € 8 862 515
2. HIRST Damien (1965) € 7 704 680
3. PRINCE Richard (1949) € 4 691 872
4. DOIG Peter (1959) € 3 790 779
5. GURSKY Andreas (1955) € 3 610 074
6. BARCELO Miquel (1957) € 2 988 518
7. SUGIMOTO Hiroshi (1948) € 2 754 995
8. DUMAS Marlene (1953) € 2 365 022
9. NARA Yoshitomo (1959) € 2 282 031
10. WOOL Christopher (1955) € 2 148 968
Seguem-se mais 90 artistas, entre os quais se destacam muitos nomes chineses (mais do que americanos!) - mas especula-se que essa febre em torno da arte chinesa foi artifialmente provocada por colecionadores e galeristas. 24 artistas da lista são americanos, 39 são europeusm, os latino-americanos são raros (com destaque para o mexicano Alfredo Ramos Martínez), e só há um brasileiro: Vik Muniz, na posição 56, com € 547.274 Euros (o que não é pouco: na posição 57 aparece Cindy Sherman). Artistas que nunca apareceram na lista entraram direto entre os 20 mais valorizados, como Peter Doig e Albbert Oehlen, o que mostra a volatilidade do mercado. Também chama a atenção a presença de dois fotógrafos entre os cinco primeiros da lista (Prince e Gursky). Em todo caso, os mediáticos Koons e Hirst nos dois primeiros lugares representam a confirmação desoladora de muita coisa que tenho dito aqui.
O crítico Meyewr Schapiro alertou, há mais de 30 anos, para os perigos de se confundir o valor espiritual da arte com seu valor comercial. Mas é isso que está acontecendo, inclusive na cabeça de muitos artistas, deslumbrados com o sucesso e a fama. Todos os aspectos de uma obra de arte - estéticos, emocionais, morais - foram reduzidos a questões de finança e marketing. Em outras palavras, o mundo da arte se tornou um intrumento de afirmação do capitalismo neoliberal, com sua ênfase no dinheiro e no lucro - mesmo que, individualmente, artistas acreditem estar fazendo um trabalho altamente contestador. Os curadores, leiloeiros e galeristas que vão para os antigos países comunistas e o antigo Terceiro Mundo fazer negócios são como os padres que a Igreja enviava à América nas Missões, para catequizar os nativos, ou seja, doutriná-los a adotar os valores convenientes à metrópole.
Na ilustração, Woman III, de William de Kooning, vendido em 2006 por 137,5 milhões de dólares.
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1 comment:
Eba! Também quero vender por 1 milhão! Como eu faço, hein?
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