Sunday, January 06, 2008

Sobre a autonomia da arte contemporânea

"Je serai un 'peintre', on dira de moi: c'est le 'peintre'. Et je me sentirai un peintre, un vrai justement, parce que je ne peindrai pas, ou tou au moins en apparence. Le fait que 'j'existe' comme peintre sera le travail pictural le plus formidable de ce temps".
(Yves Klein)


Os próprios artistas não percebem isso, mas o que a idéia do pluralismo pós-moderno e a tese, intelectualmente intrigante, do fim da História da Arte escondem é um processo de petrificação. No parque de diversões em que a arte está se convertendo, a diversidade só está na superfície: o motor por trás de cada brinquedo é o mesmo, e o ingresso dá direito a todos os brinquedos.

É um parque temático: aqui brinca-se de Neodadaísmo, ali de Surrealismo Pop, acolá de variações tecnológicas da Arte Conceitual. Reduzindo-se todos os movimentos da História da Arte ao seu aspecto puramente formal, eles se transformam num catálogo de linguagens, em produtos expostos numa prateleira de supermercado, que o artista contemporâneo combina e recombina como se estivesse criando grandes novidades, amparado nas correntes do mercado, nas teorias conformistas, enfim, no sistema da arte que o legitima e valoriza. Sistema baseado no casamento, por interesse, entre a arte e o mercado: fazer parte desse sistema não tem mais nada a ver com qualidade, mas com a competência social, com a capacidade de se inserir numa rede específica de relacionamentos.

Sintoma disso são as Bienais, modelo que chega a um aparente esgotamento: em muitos casos, as obras de artistas de diferentes países são intercambiáveis, já que negam qualquer vínculo com contextos regionais e com a História. Uns quinze anos atrás falava-se de World Music, que nada mais era do que a redução de todas as diferenças a um tratamento padronizado, que facilitasse o seu consumo em mercados globalizados. Da mesma forma, e seguindo o mesmo princípio, criou-se uma espécie de "World Art".

Em 1923, Tarsila do Amaral, em Paris, escreveu numa carta: "Sinto-me cada vez mais brasileira: quero ser a pintora da minha terra (...) Não pensem que esta tendência na arte é mal vista aqui. Pelo contrário, o que se quer aqui é que cada um traga a contribuição de seu próprio país. Assim se explica o sucesso dos bailarinos russos, das gravuras japonesas e da música negra. Paris está farta da arte parisiense". No cenário globalizado de hoje, parece que qualquer suspeita de afirmação de uma indentidade nacional diminui a obra, inclusive dentro do nosso próprio país.

A primeira baixa desse processo todo é a autonomia da arte - seja do ponto de vista estético, seja como linguagem, seja em relação às condições de sua produção. Desde o Iluminismo (ou seja, tem tempo à beça), a arte era uma esfera, em alguma medida, autodeterminada e autogovernada, com regras próprias, e sua História se desenvolveu razoavelmente protegida de injunções religiosas, políticas e econômicas.

Em relação a esse tema, dois autores se pronunciaram de forma convincente: o sociólogo Pierre Bourdieu [postei uma entrevista dele em novembro, está nos arquivos do blog] demonstrou como o campo artístico europeu criou barreiras impermeáveis às esferas do poder; por sua vez, o crítico e historiador Giulio Carlo Argan afirmou que o Iluminismo representou a emancipação da arte em relação aos arbítrios da religião e da política; a arte, secularizada, deixava de ser veículo de doutrinações morais e de idéias políticas para criar um espaço próprio. Nesse contexto, Sartre (outro autor tristemente - mas compreensivelmente - esquecido) a arte e a literatura têm a obrigação de rejeitar a ideologia burguesa. Mas hoje a arte voltou a servir a uma religião: a religião do mercado.

Escrevi "em alguma medida", dois parágrafos acima, porque é evidente que que a independência absoluta é impossível, e em qualquer lugar e época existiram pontes entre a arte e o capital, através do mecenato, do mercado etc, sem que o campo artístico perdesse a sua autonomia. Os caminhos da arte eram traçados por questões internas: o valor estético estava na coerência formal da obra ou na capacidade de representação do mundo? Critérios próprios ao meio determinavam a criação artística, a reflexão teórica dos críticos e as escolhas dos curadores, marchands e diretores de museus, relativamente protegidos de pressões econômicas, políticas ou mediáticas. Quando isso não acontecia, isto é, quando se fazia um uso ideológico da arte, os resultados eram desastrosos (uma exceção histórica foi o Construtivismo soviético, um movimento artístico colocado a serviço de um projeto político e, no entanto, genial).


Com a subordinação total à lógica do mercado globalizado e à dinâmica mídia e do espetáculo, isso acabou. Curadores e outros gestores do mundo da arte seguem os ditames da lógica do capital privado, da mídia e, indiretamente, da política cultural do Estado. Desta forma, o processo de institucionalização da arte brasileira nos últimos anos reflete uma rendição incondicional ao neoliberalismo e a negação absoluta da arte como veículo de qualquer projeto democratizador, transformador ou emancipador (muito menos revolucionário). Que não se espere mais da arte revolução semelhante à provocada por Manet e os Impressionistas, que transformou as próprias estruturas mentais da sociedade, sua maneira de enxergar e se relacionar com o mundo.

Hoje a arte está domesticada pelo dinheiro e pelas estratégias de marketing. Como tal, está sujeita aos ciclos de qualquer outro mercado especulativo - mais ainda do que outros mercados, porque nela o consenso é mais frágil. A coqueluche de hoje pode estar esquecida daqui a cinco ou dez anos, sem deixar traços. Paradoxalmente, quando mais incerto e abstrato é o lastro do mercado da arte, a ponto de se designar como arte a não-pintura, a não-escultura ou uma simples idéia, mais alucinado ele se torna: o dinheiro que circula não é imaterial, não é "não-dinheiro". Mas basta a confiança dos investidores diminuir para o castelo vir abaixo.

Quem pode acreditar, de boa-fé, que as criações bizarras de Damien Hirst ou as fotografias de Andreas Gursky realmente valem dezenas de milhões de dólares? Para mim isso é uma ficção: ou alguém está sendo enganado ou é uma deliberada cegueira coletiva, na qual todos fingem para ninguém ficar no prejuízo. De Hirst já falei algumas vezes, mas de seu colega ainda não: Gursky é um fotógrafo que ficou famoso fazendo fotos do interior de lojas da griffe Prada, em tiragens de seis ou oito exemplares, como a que se vê abaixo. Em 2000 cada fotografia dessas já valia 180 mil dólares, e hoje seus trabalhos valem o suficiente para colocá-lo entre os cinco artistas vivos mais valorizados do mundo.


Mas o mercado já dá sinais de esgotamento. Há poucos anos a Christie's de Nova York colocou em leilão a obra Signet 20, de Robert Ryman (basicamente uma série de faixas brancas horizontais, sobre fundo branco, num quadrado com 1,5m de largura), estabelecendo um lance mínimo de 1,5 milhão de dólares. No catálogo do leilão estava escrito: "As telas de Ryman não são quadros, não representam nada, nem mesmo uma abstração, no sentido usual do termo. Elas não são signos nem expressões, elas são experiências"

A tela encalhou. Que "experiência" vale 1,5 milhão de dólares? E por que pagar dinheiro de verdade por uma não-pintura?

3 comments:

XTO said...

Outro dia paguei bem menos que isso numa pintura de azulejo super contemporânea que serviu até mesmo pra enfeitar em cima do armário da sala.

I said...

existem interessantes ensaios sobre a autonomia da arte contemporanea pelo teorico richard shusterman...

Sergio Leo said...

Caro, acho meritório seu combate à mercantilização da arte, e ao poderoso jogo mistificador dos curadores e mecenas, mas temo que essa generalização sobre a arte contemporânea seja interpretada, como já vi em alguns comentários aqui do blogue, como uma condenação ao experimentalismo em arte, uma sanção à visão retrórgada que só vê arte nas obras comprometidas com alguma visão de Belo, ou, pior, com fórmulas figurativas, vinculadas a um modelo estético já reconhecido e massificado. Ainda hoje encontro gente que não entende como se pode gostar de um Picasso, que alguns ainda consideram uma fraude, por falta de cultura visual, de conhecimento histórico, de repertório.
Vai me dizer que Adriana Varejão, casada com um mecenas uma dos únicos brasileiros mais valorizados (seu post mais acima) de 2007, é arte empulhação? Que o Cildo Meireles é uma fraude?