Saturday, March 29, 2008

A fogueira das vaidades

Já em meados do século passado, críticos como Dwight MacDonald e Clement Greenberg apontavam para a indigência intelectual da cultura de massa e os perigos da subordinar as manifestações culturais à lógica do consumo. No ensaio Masscult and midcult, MacDonald cunhou esses dois termos para descrever e, ao mesmo tempo, criticar o poder crescente da indústria cultural, que investe na produção de uma cultura facilmente digerível por uma sociedade de massa. Por sua vez, Greenberg recorreu à palavra alemã kitsch para tratar desse fenômeno no campo das artes plásticas, isso é, da arte de fácil assimilação, em oposição à arte de vanguarda, verdadeiramente inovadora e radical. Embora ninguém mais fale disso, este debate sobre a diferença entre vanguarda e kitsch é elucidativo em relação à situação da arte contemporânea.

Uma premissa comum a MacDonald e Greenberg é a de que existe uma hierarquia na cultura e na arte (isto é, existem obras-primas e obras de segunda e terceira qualidade), à qual corresponde uma hierarquia do gosto, do sublime ao vulgar. Em frentes diferentes, e por motivos variados (alguns válidos), essa idéia de uma escala de valores foi de tal maneira bombardeada que hoje qualquer defesa da outrora chamada alta cultura é imediatamente entendia como elitista, colonizada, classista, reacionária etc. Está disseminada a tese de que não existem manifestações artísticas superiores e inferiores, apenas "diferentes". Beethoven e Ivete Sangallo se equivalem, cada um na sua.

A produção artística contemporânea se inscreve nesse contexto, afinal de contas inescapável - já que o relativismo nivelador e pluralista é um traço distintivo da nossa época, do novo paradigma em que vivemos. Ironicamente, porém, existe uma esfera na qual a idéia de uma escala de valores continua forte: o mercado de arte contemporânea, que cresceu e se multiplicou segundo o Evangelho do capital globalizado, na mesma medida em que as outras dimensões da arte se esvaziaram e perderam importância.

Sinais dessa redução de todos os valores à escala econômico-especulativa do mercado (não se trata de opiniões, mas de constatações, aliás confirmadas e reconhecidas por gente do próprio sistema da arte):

. a obra de arte se desestetizou e se desvinculou da História
. do artista não se espera mais técnica nem talento;
. do crítico não se espera mais julgamento, apenas testemunho;


A arte se aproximou da lógica da moda, do consumo, do espetáculo, do marketing etc: para uma carreira de êxito hoje, a qualidade da obra é o menos importante. Neste horizonte, os artistas, principalmente aqueles de sucesso, entram como inocentes úteis: quanto menos entenderem o que acontece (aliás, quanto menos entenderem da própria arte), melhor (no caso de artistas de países periféricos como o Brasil, isso pega até bem no exterior: ainda somos, afinal de contas, uma reserva de exotismo primitivo e ignorante, mesmo quando tentamos imitar a arte dos grandes centros, adotando a linguagem internacional da "world art").

No Brasil, isso chega ao caricato: o debate é sempre sobre questões menores, numa fogueira de vaidades em que a lealdade à própria panelinha e o medo de aborrecer os poderosos da vez silencia, de antemão, qualquer tentativa de pensamento crítico ou independente.

Na outra ponta, dos compradores de arte contemporânea também já não se espera que entendam de arte, apenas que comprem. Como eles, em muitos casos, estão interessados em comprar prestígio e distinção social, e não a obra de arte em si, é até bom que nao entendam nada, porque assim dão trabalho a curadores e conselheiros particulares que orientam suas aquisições. Mas como, no Brasil, imperam a troca de favores e lei de se levar vantagem em tudo, não é incomum acontecer o seguinte:

. o conselheiro do colecionador (que pode ser privado, pessoa física, ou representantre de uma pessoa jurídica, como o diretor de marketing de uma grande corporação, ou o dirigente de alguma instituição com poder sobre a política de aquisições) promove aquele(a) artista no qual tem, por vias freqüentemente tortas, algum tipo de interesse (cultural, comercial, social, ou mesmo sexual, drogal etc)
. por sua vez, o colecionador quer pagar pouco e pede descontos altíssimos (quando não pede a obra em doação, já que o prestígio de integrar sua coleção também é uma moeda)
. já que o valor oferecido é baixo, o artista entrega uma obra de segunda ou terceira categoria.

O resultado disso tudo é que se vai formando uma grande coleção de obras menores, e as pessoas que sabem disso fingem que não sabem. Feitas as contas, pouco dinheiro circulou, mas a rede foi posta em atividade, e é isso que importa: amanhã ou depois as pessoas envolvidas indicam umas às outras para a composição de um júri ou comissão, ou quem sabe para uma viagem a uma feira internacional, se possível com apoio do Governo.

Este foi apenas um exemplo genérico e hipotético: qualquer semelhança com pessoas ou situações concretas terá sido mera coincidência. O que importa é sublinhar que, com o tempo, práticas muito parecidas vão se repetindo, as pessoas vão se comprometendo umas com as outras, e, quando a gente se dá conta, o mundo da arte se reduziu a isso: um jogo de lobbies interesses pequenos (mesmo quando os valores são altos), no qual a arte é o que menos importa - e, portanto, qualquer debate relevante sobre arte deve ser evitado.

Neste horizonte, é compreensível a disseminação do pluralismo de mercado, que ignora as diferenças entre a vanguarda e o kitsch: esta é uma distinção que se torna irrelevante, pois o que importa é, exclusivamente, o caráter de mercadoria (mercadoria simbólica, inclusive) da obra (de qualquer obra, mesmo aquelas que dispensam talento, técnica, conhecimento e até a mão do artista). Num mundo onde todas as manifestações artísticas potencialmente se equivalem, a esperança que alimenta o jovem artista é ser assimilado e transformado em produto, aparecer na mídia, viajar e freqüentar o jet-set. Mas o que isso tem a ver com arte?

Muitas pessoas se contentam em fechar os olhos alegando, de forma ingênua ou cínica: "Ora, os artistas do Renascimento também tinham mecenas, os artistas modernos também vendiam suas obras etc". É evidente. Só que a arte tinha seu próprio sistema de valores, autônomo em relação ao capital (sistema que, aliás, servia de lastro para determinar o valor de mercado da obra, quando ela saía da esfera propriamente artística e passava ao circuito econômico e social das galerias, leilões, dos primeiros marchands etc).

Historicamente, dentro do sistema da arte, forças divergentes (artistas, mercado, instituições e seus diversos mediadores) viviam em atrito, e desse atrito nascia a transformação, sucediam-se os movimentos, nasciam novas questões. Enquanto, hoje, vivemos uma situação inédita de conformismo com o "fim da arte" e de harmonia entre propostas excludentes. Nesta situação, a co-existência silenciosa reflete não a realização de uma utopia democrática, mas o triunfo absoluto do capital globalizado, que reduz à arte a algo com o status simbólico da moda ou da indústria do espetáculo - e o artista em personagem exótico, mas no fundo secundário, do sistema.

1 comment:

AfonsoHRAlves said...

Interesso-me muito sobre essas discussões.
aqui em cuiaba tento sempre encontrar pessoas para união em algum projeto artistico.