Tuesday, April 29, 2008
O ranking da Artfacts.Net
Salvo engano, foi nos anos 70 que se tentou pela primeira vez fazer um ranking sistemático do mercado da arte. Pouc depois, por iniciativa individual de um crítico alemão, surgiu o Kunstkompass, até hoje referência na área. Hoje existem vários rankings, disponíveis em sites especializados na Internet. O mais respeitado é o do portal Artprice (www.artprice.com), mas existem outros, razoavelmente confiáveis.
O ranking da Artifacts.Net, por exemplo, é muito interessante. Ele não faz distinção entre artistas modernos e contemporâneos, vivos ou mortos. Segue a lista, sempre reveladora, dos artistas mais valorizados atualmente, elaborada com base não apenas nos resultados em leilões internacionais, mas principalmente num complicado algoritmo que leva em conta uma pontuação baseada em exposições de cada artista:
1. Andy Warhol 1928-1987
2. Pablo Picasso 1881-1973
3. Bruce Nauman 1941-
4. Gerhard Richter 1932-
5. Paul Klee 1879-1940
6. Joseph Beuys 1921-1986
7. Cindy Sherman 1954-
8. Robert Rauschenberg 1925-
9. Henri Matisse 1869-1954
10. Sol LeWitt 1928-2007
Para a lista dos 100 mais (nenhum brasileiro, infelizmente), clique em
http://www.artfacts.net/index.php/pageType/ranking/paragraph/4
Saturday, April 26, 2008
50 anos de 'O Vazio'
Há 50 anos, em abril de 1958, Yves Klein abriu sua exposição Le Vide ("O Vazio"), na Galeria Iris Clert, em Paris. O texto do convite classificava o evento como uma "manifestação de síntese perceptiva", que reafirmava a "busca pictórica de Klein por uma sensação de êxtase imediatamente comunicável". Mais tarde, numa conferência na Sorbonne, Klein explicou o objetivo da exposição: "criar, estabelecer e apresentar ao público um estado pictórico palpável, dentro dos limites de uma galeria. (...) Esse estado pictórico invisível deve estar tão presente e tão dotado de vida autônoma que deveria ser visto, a partir de então, como a mais abrangente definição da pintura: radiação". Conta-se que muitas pessoas chegavam na exposição sem saber do que se tratava - e se surpreendiam com a constatação de que não havia nada para ver: a galeria estava vazia, sem nada exposto, ou melhor: expondo o vazio.
No mesmo espírito, Klein criou "zonas de sensibilidade pictórica imaterial", que eram trocadas por barras de ouro, numa complicada transação incluindo recibos, instruções de uso e uma cerimônia em que as barras eram atiradas nas águas do Sena. Kelin também fez esculturas de fogo e pinturas de vento e chuva (prendendo uma tela em branco no capô de seu carro, durante uma viagem de Paris a Nice), além de projetos urbanísticos de alteração climática, e telas pintadas com pincéis humanos - belas garotas nuas, embebidas em tinta, nas chamadas antropometrias (ver vídeo acima). Mas ele é conhecido sobretudo por seus monocromos, quadros pintados de uma cor só: em 1960, ele patenteou a cor
International Klein Blue, resultado de uma pesquisa com pigmentos e resinas - um azul ultramarino com o qual recobriu telas, esculturas, esponjas e corpos femininos.
Ao articular, nestes e em outros trabalhos, o conceitual com o espacial, o efêmero, o imaterial e o virtual, Yves Klein antecipou diversas questões levantadas pelas vanguardas dos anos 60 e 70. Antecipou também procedimentos de muitos artistas contemporâneos, com seu comportamento excêntrico e seu gosto pelo espetacular. Klein era, contudo, um católico fervoroso, devoto de Santa Rita. E também campeão de judô, assunto sobre o qual escreveu um livro.
Um de seus últimos trabalhos foi a antrometria acima, Suaire de Mondo Cane, feita em seu apartamento/estúdio na Rue Campagne Première, em Paris. Yves Klein se deixou filmar realizando a obra, e o resultado está no filme Mondo Cane (1962), um documentário de Gualtiero Jacopetti. Klain imaginou, equivocadamente, que Jacopetti faria por ele o que Hans Namuth fez por Jackson Pollock, ou Hanri-Georges Clouzot fez por Picasso. Exibido no Festival de Cannes, o filme foi um fracasso. O artista morreu de ataque cardíaco poucas semanas depois da exibição, no auge da fama, em 1962, aos 34 anos.
Friday, April 25, 2008
A morte como arte
Seguem mais informações, , do site da BBC, sobre o caso citado no post abaixo. Na ilustração, o cartaz da exposição atual de George Schneider.
Artista alemão procura doente terminal para morrer em instalação
BBC BRASIL
O artista plástico alemão Gregor Schneider está procurando um paciente terminal para participar de uma instalação na qual o doente morreria na galeria de arte.
Segundo Schneider, o doente passaria suas últimas horas de vida em uma galeria, no centro de uma instalação aberta ao público.
De acordo com ele, todo o processo artístico seria preparado com o consentimento do paciente e de seus familiares, que poderiam determinar como o moribundo seria apresentado.
Ele argumenta que tornar a morte pública pode servir para diminuir o medo das pessoas sobre o momento da morte.
O artista afirma que a instalação apresentaria a morte de uma maneira respeitosa e humana, e com um mínimo de privacidade - o doente ficaria em um espaço fechado com acesso controlado.
"Essa idéia já me persegue há mais de dez anos", disse o artista em uma entrevista à imprensa alemã.
Polêmica
A idéia de Schneider gerou polêmica na Alemanha. Segundo Schneider, ele teria recebido ameaças de morte depois de tornar sua idéia pública.
Políticos de partidos de esquerda e de direita criticaram o projeto dizendo que se trata de um "abuso da liberdade artística".
Silvia Loehrmann, deputada do partido verde no estado da Renânia do Norte-Vestfália, local onde Schneider quer expor sua obra, disse que não pode imaginar que pessoas queiram ver um moribundo "como vêem animais em um zoológico".
Caso consiga realizar a instalação, esta não será a primeira vez que a morte seria tema de uma obra de Gregor Schneider.
Ele já produziu uma instalação onde uma mulher morta era representada com um boneco e também já encenou sua própria morte, além de ter produzido esculturas relacionadas com o tema.
Artista alemão procura doente terminal para morrer em instalação
BBC BRASIL
O artista plástico alemão Gregor Schneider está procurando um paciente terminal para participar de uma instalação na qual o doente morreria na galeria de arte.
Segundo Schneider, o doente passaria suas últimas horas de vida em uma galeria, no centro de uma instalação aberta ao público.
De acordo com ele, todo o processo artístico seria preparado com o consentimento do paciente e de seus familiares, que poderiam determinar como o moribundo seria apresentado.
Ele argumenta que tornar a morte pública pode servir para diminuir o medo das pessoas sobre o momento da morte.
O artista afirma que a instalação apresentaria a morte de uma maneira respeitosa e humana, e com um mínimo de privacidade - o doente ficaria em um espaço fechado com acesso controlado.
"Essa idéia já me persegue há mais de dez anos", disse o artista em uma entrevista à imprensa alemã.
Polêmica
A idéia de Schneider gerou polêmica na Alemanha. Segundo Schneider, ele teria recebido ameaças de morte depois de tornar sua idéia pública.
Políticos de partidos de esquerda e de direita criticaram o projeto dizendo que se trata de um "abuso da liberdade artística".
Silvia Loehrmann, deputada do partido verde no estado da Renânia do Norte-Vestfália, local onde Schneider quer expor sua obra, disse que não pode imaginar que pessoas queiram ver um moribundo "como vêem animais em um zoológico".
Caso consiga realizar a instalação, esta não será a primeira vez que a morte seria tema de uma obra de Gregor Schneider.
Ele já produziu uma instalação onde uma mulher morta era representada com um boneco e também já encenou sua própria morte, além de ter produzido esculturas relacionadas com o tema.
Pois é
Está na Folha de S.Paulo de hoje:
ARTES: ALEMÃO QUER DOENTE TERMINAL EM INSTALAÇÃO
O artista plástico alemão Gregor Schneider está à procura de um paciente terminal que aceite participar de uma instalação na qual morreria numa galeria de arte. O voluntário ficaria num espaço fechado, com acesso controlado. Schneider afirma que o processo seria feito com consentimento de paciente e família. A proposta do artista, que freqüentemente lida com o tema da morte, tem causado polêmica na imprensa alemã e entre políticos, que criticam o "abuso da liberdade artística".
Se continuarmos nesse ritmo, não demora muito e algum artista amarrará um menor abandonado na galeria, em vez de um cachorro.
Na ilustração, "instalação" de Gregor Schneider no Museu de Arte Contemporânea de Serralves.
Thursday, April 24, 2008
Estranhos embora próximos
A comoção causada pela morte da menina Isabella Nardoni tem explicações que transcendem a barbaridade do assassinato e suas circunstâncias. Crimes igualmente hediondos nem sempre têm a mesma repercussão, na imprensa e na sociedade - o que pode ser atribuído, em parte, ao fato de a vítima ser uma criança, bem como à possibilidade, cada vez mais palpável, de os assassinos serem seu pai e madrasta. Mas isso não explica por que outros crimes abjetos são rapidamente esquecidos – por exemplo, o da adolescente que matou a mãe com 27 facadas em Boa Vista, no dia 7 de abril, para em seguida assistir a um show da banda Calypso, ou outros casos que todos os dias aparecem nos jornais, mas diante dos quais parecemos anestesiados.
O que comove, revolta e mobiliza a sociedade, no caso de Isabella, é a proximidade. O brasileiro médio que acompanha o caso reconhece, em alguma medida, Alexandre e Anna Carolina como seus iguais: quantas pessoas, assistindo ao vídeo em que o casal passeia com os filhos num shopping, horas antes do crime, não se viram naquelas imagens - imagens de uma família normal, de classe média, numa situação cotidiana, numa grande cidade? A mensagem assombrosa que aquelas imagens passam é a de que pessoas comuns, que receberam educação, que têm conforto, que são socialmente integradas podem, de um momento para o outro, se transformar em monstros.
Daí o imperativo de se entender exatamente o que aconteceu, como e por quê; daí a cobrança para que os criminosos não fiquem impunes: pois somente a solução do caso e a punição dos culpados permitirão entender e isolar o componente de agressividade e crueldade potenciais que pessoas aparentemente normais também carregam dentro de si.
O caso Isabella dá medo, porque não se entende, mas também porque está muito próximo de “nós”. Não foi um crime cometido pelos “outros” (como no caso do menino João Hélio), por marginais que não têm nada a perder, mas por gente com quem “nós” poderíamos nos relacionar cotidianamente. Esta proximidade é angustiante, pois sugere que o crime não decorreu de uma situação de exceção, estranha ao nosso mundo, ao contrário: ele se deu numa situação de normalidade, mesmo levando em conta as peculiaridades do caso (já que fazem parte da normalidade aceitável o convívio entre filhos de uniões diferentes, o ciúme e mesmo os desentendimentos de casal).
Num ponto fundamental, porém, uma característica dos criminosos – e neste ponto eles voltam a se distanciar de “nós” para se transformar em “outros” - não deveria ser normal: justamente, a incapacidade de reconhecer na vítima um ser humano igual, com igual e sagrado direito à vida. Mas a psicopatia dos assassinos também sinaliza uma psicopatia social: num ambiente de crescente ambivalência moral, em que as fronteiras entre certo e errado são cada vez mais relativizadas, em que os únicos valores reconhecidos são aqueles associados ao êxito individual, esta atitude de indiferença pelo outro não é tão estranha – ainda que nem sempre resulte em tragédias. Quanto mais frágeis são os valores morais de uma sociedade, menor fica a distância entre um impulso agressivo e um ato criminoso.
Miró segundo João Cabral
O sim contra o sim
(João Cabral de Melo Neto)
Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.
Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda.
Pois que ela não pôde, ele pôs-se
a desenhar com esta
até que, se operando,
no braço direito ele a enxerta.
A esquerda (se não se é canhoto)
é mão sem habilidade;
reaprende a cada linha,
cada instante, a recomeçar-se.
___
João Cabral de Melo Neto chegou a Barcelona, como diplomata, em 1947 e lá conheceu os pintores e poetas Joan Brossa, Antoni Tàpies, Juan Eduardo Cirlot, Carles Riba etc. Na Espanha, escreveu catálogos para exposições de Tàpies, Ponç e Cuixart assim como um antológico ensaio sobre Joan Miró, com quem manteve uma estreita relação de amizade.
Wednesday, April 23, 2008
Monday, April 21, 2008
Gullar x Habacuc
Antes tarde do que nunca. Na edição de ontem da Folha de S.Paulo, Ferreira Gullar escreveu sobre o artista costa-riquenho Habacuc e sua obra - deixar um cão morrer de fome, numa galeria. Habacuc foi tema de um dos meus primeiros posts sobre arte contemporânea, seis meses atrás. Bom ver Gullar voltar a escrever sobre arte, de qualquer forma. Transcrevo seu artigo abaixo:
FERREIRA GULLAR
O cachorro como obra de arte
--------------------------------------------------------------------------------
A arte de vanguarda, que nasceu contra a institucionalização, é refém da instituição
--------------------------------------------------------------------------------
ANO PASSADO, em 2007, um costarriquenho, que se diz artista e se chama Guillermo Habacuc Vargas, pegou na rua um cão vira-lata, amarrou-o numa corda e o prendeu à parede de uma galeria de arte, onde o animal ficou definhando até morrer de fome. Tratava-se, segundo ele, de uma "instalação perecível", uma obra de vanguarda. Pois bem, para o espanto das pessoas que já se tinham revoltado com a crueldade de Habacuc, a Bienal de Arte Centro-Americana de Honduras acaba de convidá-lo para dela participar com a referida "obra" e concorrer a um dos prêmios do certame.
Será tudo isso verdade ou apenas uma "pegadinha"? Custa crer que o dono de uma galeria de arte permita que um exibicionista pirado amarre ali um pobre cão e o deixe morrer de inanição. Como se deu a coisa? O animal urinava e cagava preso à parede, ganindo desesperado? As pessoas iam assistir a esse espetáculo de sadismo e ninguém se revoltou nem nenhuma sociedade protetora dos animais protestou? A possibilidade de ter o cão morrido sem que ninguém tenha sabido está fora de questão, uma vez que o objetivo desse tipo de "autor" é precisamente chamar a atenção sobre si, já que nenhum outro propósito pode ser considerado. Mais surpresa causa ainda a notícia de que a Bienal de Honduras o tenha convidado a repetir, nela, aquele mesmo espetáculo de crueldade e sadismo.
Não obstante, essa informação está em vários sites, e surgiu até um movimento de protesto -um abaixo-assinado- para impedir que a Bienal mantenha o convite. Se o que Habacuc queria era escandalizar e ganhar notoriedade, conseguiu, ainda que a notoriedade própria aos torturadores e carrascos.
Não obstante, apesar da repercussão que o cerca, esse fato não é tão novo assim. Sem a mesma dose de cocô e urina nem a mesma animalidade, outras "obras" e atitudes ocorridas antes são reveladoras do impasse a que chegaram a arte dita de vanguarda e as instituições que a exibem, particularmente as Bienais. Uns poucos anos atrás, um gaiato enviou para a Bienal de São Paulo, como sua obra, a seguinte proposta: abrir uma segunda porta na exposição por onde as pessoas entrariam sem pagar. Não podia ser aceita, pois implicaria sério prejuízo ao certame, mas também não poderia ser rejeitada, porque, sendo a Bienal "de vanguarda", tal rejeição comprometeria sua imagem.
Em face disso, adotou-se a seguinte solução: improvisar, nos fundos do prédio, uma portinha meio secreta, garantida por um guarda que a manteria aberta por apenas uma hora e só permitiria a entrada de dez visitantes, no máximo. E assim as coisas se acomodaram, salvando-se a audácia do artista e o caráter vanguardista da instituição. Pode ser que me engane, mas a impressão que tenho é de uma luta farsesca entre falsos inimigos que necessitam um do outro para existir: sem o espaço institucional (galeria, museu, Bienal), não existe a vanguarda e, sem a vanguarda, não existem tais instituições. E a gente se pergunta: mas a vanguarda não nasceu contra a arte institucionalizada? Pois é...
Voltemos ao cachorro. O tal Habacuc pegou o cachorro na rua e o levou para a galeria de arte a fim de fazer dele uma "instalação perecível", ou seja, uma obra de arte. Se o tivesse levado para um galpão qualquer e o deixasse lá morrendo de fome, ele não passaria de um pobre vira-lata vítima de um maluco. Mas, como o Habacuc é artista -ou se diz-, levou-o para uma galeria de arte e aí o pobre cão, de cão virou instalação, por obra e graça do espaço em que o puseram para morrer. Esse é um dado que os críticos de arte (também de vanguarda) teimam em ignorar, ou seja, que, nessa concepção estética, é o espaço institucional que faz a obra: por exemplo, um urinol igualzinho ao de Duchamp, se estiver no Pompidou, é arte; se estiver no banheiro de um boteco, é urinol mesmo, pode-se mijar nele à vontade.
É, portanto, diferente da Mona Lisa, que depois de roubada do Louvre, em 1911, e levada para um quarto de hotel na Itália, continuou a obra-prima que sempre foi. É que a chamada arte conceitual dispensa o fazer artístico e afirma que será arte tudo o que se disser que é arte, mas desde que o ponham numa galeria ou numa Bienal.
Ou seja, a essência da arte de vanguarda, que nasceu contra a institucionalização da arte, é contraditoriamente, a instituição; não está nas obras e, sim, no espaço institucionalizado em que ela é posta. Talvez por isso, a próxima Bienal de São Paulo não terá obras de arte: exibirá apenas o espaço institucional vazio, que as dispensa.
FERREIRA GULLAR
O cachorro como obra de arte
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A arte de vanguarda, que nasceu contra a institucionalização, é refém da instituição
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ANO PASSADO, em 2007, um costarriquenho, que se diz artista e se chama Guillermo Habacuc Vargas, pegou na rua um cão vira-lata, amarrou-o numa corda e o prendeu à parede de uma galeria de arte, onde o animal ficou definhando até morrer de fome. Tratava-se, segundo ele, de uma "instalação perecível", uma obra de vanguarda. Pois bem, para o espanto das pessoas que já se tinham revoltado com a crueldade de Habacuc, a Bienal de Arte Centro-Americana de Honduras acaba de convidá-lo para dela participar com a referida "obra" e concorrer a um dos prêmios do certame.
Será tudo isso verdade ou apenas uma "pegadinha"? Custa crer que o dono de uma galeria de arte permita que um exibicionista pirado amarre ali um pobre cão e o deixe morrer de inanição. Como se deu a coisa? O animal urinava e cagava preso à parede, ganindo desesperado? As pessoas iam assistir a esse espetáculo de sadismo e ninguém se revoltou nem nenhuma sociedade protetora dos animais protestou? A possibilidade de ter o cão morrido sem que ninguém tenha sabido está fora de questão, uma vez que o objetivo desse tipo de "autor" é precisamente chamar a atenção sobre si, já que nenhum outro propósito pode ser considerado. Mais surpresa causa ainda a notícia de que a Bienal de Honduras o tenha convidado a repetir, nela, aquele mesmo espetáculo de crueldade e sadismo.
Não obstante, essa informação está em vários sites, e surgiu até um movimento de protesto -um abaixo-assinado- para impedir que a Bienal mantenha o convite. Se o que Habacuc queria era escandalizar e ganhar notoriedade, conseguiu, ainda que a notoriedade própria aos torturadores e carrascos.
Não obstante, apesar da repercussão que o cerca, esse fato não é tão novo assim. Sem a mesma dose de cocô e urina nem a mesma animalidade, outras "obras" e atitudes ocorridas antes são reveladoras do impasse a que chegaram a arte dita de vanguarda e as instituições que a exibem, particularmente as Bienais. Uns poucos anos atrás, um gaiato enviou para a Bienal de São Paulo, como sua obra, a seguinte proposta: abrir uma segunda porta na exposição por onde as pessoas entrariam sem pagar. Não podia ser aceita, pois implicaria sério prejuízo ao certame, mas também não poderia ser rejeitada, porque, sendo a Bienal "de vanguarda", tal rejeição comprometeria sua imagem.
Em face disso, adotou-se a seguinte solução: improvisar, nos fundos do prédio, uma portinha meio secreta, garantida por um guarda que a manteria aberta por apenas uma hora e só permitiria a entrada de dez visitantes, no máximo. E assim as coisas se acomodaram, salvando-se a audácia do artista e o caráter vanguardista da instituição. Pode ser que me engane, mas a impressão que tenho é de uma luta farsesca entre falsos inimigos que necessitam um do outro para existir: sem o espaço institucional (galeria, museu, Bienal), não existe a vanguarda e, sem a vanguarda, não existem tais instituições. E a gente se pergunta: mas a vanguarda não nasceu contra a arte institucionalizada? Pois é...
Voltemos ao cachorro. O tal Habacuc pegou o cachorro na rua e o levou para a galeria de arte a fim de fazer dele uma "instalação perecível", ou seja, uma obra de arte. Se o tivesse levado para um galpão qualquer e o deixasse lá morrendo de fome, ele não passaria de um pobre vira-lata vítima de um maluco. Mas, como o Habacuc é artista -ou se diz-, levou-o para uma galeria de arte e aí o pobre cão, de cão virou instalação, por obra e graça do espaço em que o puseram para morrer. Esse é um dado que os críticos de arte (também de vanguarda) teimam em ignorar, ou seja, que, nessa concepção estética, é o espaço institucional que faz a obra: por exemplo, um urinol igualzinho ao de Duchamp, se estiver no Pompidou, é arte; se estiver no banheiro de um boteco, é urinol mesmo, pode-se mijar nele à vontade.
É, portanto, diferente da Mona Lisa, que depois de roubada do Louvre, em 1911, e levada para um quarto de hotel na Itália, continuou a obra-prima que sempre foi. É que a chamada arte conceitual dispensa o fazer artístico e afirma que será arte tudo o que se disser que é arte, mas desde que o ponham numa galeria ou numa Bienal.
Ou seja, a essência da arte de vanguarda, que nasceu contra a institucionalização da arte, é contraditoriamente, a instituição; não está nas obras e, sim, no espaço institucionalizado em que ela é posta. Talvez por isso, a próxima Bienal de São Paulo não terá obras de arte: exibirá apenas o espaço institucional vazio, que as dispensa.
Sunday, April 20, 2008
O aborto como arte
A artista americana Aliza Shvarts, mestranda em Yale, anunciou para este dia 22 a abertura de uma exposição com a documentação de um processo de nove meses: nesse período, ela realizou várias inseminações artificiais em si mesma, entre o nono e o décimo-quinto dia do ciclo menstrual, com esperma de doadores anônimos testados contra doenças sexualmente transmissíveis, para em seguida interromper as gestações provocadas, usando medicamentos abortivos. A exposição incluirá vídeos dos abortos forçados e amostras de sangue da artista. O objetivo, segundo Aliza, é estimular o debate sobre a relação entre a arte e o corpo humano. Faz parte da obra um cubo pendurado do teto, com monitores que exibem desenhos feitos com sangue dos seus abortos.
Segue o artigo, publicado no jornal Yale Daily News, em que a artista apresenta seu projeto:
For the past year, I performed repeated self-induced miscarriages. I created a group of fabricators from volunteers who submitted to periodic STD screenings and agreed to their complete and permanent anonymity. From the 9th to the 15th day of my menstrual cycle, the fabricators would provide me with sperm samples, which I used to privately self-inseminate. Using a needleless syringe, I would inject the sperm near my cervix within 30 minutes of its collection, so as to insure the possibility of fertilization. On the 28th day of my cycle, I would ingest an abortifacient, after which I would experience cramps and heavy bleeding.
To protect myself and others, only I know the number of fabricators who participated, the frequency and accuracy with which I inseminated and the specific abortifacient I used. Because of these measures of privacy, the piece exists only in its telling. This telling can take textual, visual, spatial, temporal and performative forms — copies of copies of which there is no original.
This piece — in its textual and sculptural forms — is meant to call into question the relationship between form and function as they converge on the body. The artwork exists as the verbal narrative you see above, as an installation that will take place in Green Hall, as a time-based performance, as a independent concept, as a myth and as a public discourse.
It creates an ambiguity that isolates the locus of ontology to an act of readership. An intentional ambiguity pervades both the act and the objects I produced in relation to it. The performance exists only as I chose to represent it. For me, the most poignant aspect of this representation — the part most meaningful in terms of its political agenda (and, incidentally, the aspect that has not been discussed thus far) — is the impossibility of accurately identifying the resulting blood. Because the miscarriages coincide with the expected date of menstruation (the 28th day of my cycle), it remains ambiguous whether the there was ever a fertilized ovum or not. The reality of the pregnancy, both for myself and for the audience, is a matter of reading.
This ambivalence makes obvious how the act of identification or naming — the act of ascribing a word to something physical — is at its heart an ideological act, an act that literally has the power to construct bodies. In a sense, the act of conception occurs when the viewer assigns the term “miscarriage” or “period” to that blood.
In some sense, neither term is exactly accurate or inaccurate; the ambiguity is not merely a matter of context, but is embodied in the physicality of the object. This central ambiguity defies a clear definition of the act. The reality of miscarriage is very much a linguistic and political reality, an act of reading constructed by an act of naming — an authorial act.
It is the intention of this piece to destabilize the locus of that authorial act, and in doing so, reclaim it from the heteronormative structures that seek to naturalize it.
As an intervention into our normative understanding of “the real” and its accompanying politics of convention, this performance piece has numerous conceptual goals. The first is to assert that often, normative understandings of biological function are a mythology imposed on form. It is this mythology that creates the sexist, racist, ableist, nationalist and homophobic perspective, distinguishing what body parts are “meant” to do from their physical capability. The myth that a certain set of functions are “natural” (while all the other potential functions are “unnatural”) undermines that sense of capability, confining lifestyle choices to the bounds of normatively defined narratives.
Just as it is a myth that women are “meant” to be feminine and men masculine, that penises and vaginas are “meant” for penetrative heterosexual sex (or that mouths, anuses, breasts, feet or leather, silicone, vinyl, rubber, or metal implements are not “meant” for sex at all), it is a myth that ovaries and a uterus are “meant” to birth a child.
When considering my own bodily form, I recognize its potential as extending beyond its ability to participate in a normative function. While my organs are capable of engaging with the narrative of reproduction — the time-based linkage of discrete events from conception to birth — the realm of capability extends beyond the bounds of that specific narrative chain. These organs can do other things, can have other purposes, and it is the prerogative of every individual to acknowledge and explore this wide realm of capability.
Segue o artigo, publicado no jornal Yale Daily News, em que a artista apresenta seu projeto:
For the past year, I performed repeated self-induced miscarriages. I created a group of fabricators from volunteers who submitted to periodic STD screenings and agreed to their complete and permanent anonymity. From the 9th to the 15th day of my menstrual cycle, the fabricators would provide me with sperm samples, which I used to privately self-inseminate. Using a needleless syringe, I would inject the sperm near my cervix within 30 minutes of its collection, so as to insure the possibility of fertilization. On the 28th day of my cycle, I would ingest an abortifacient, after which I would experience cramps and heavy bleeding.
To protect myself and others, only I know the number of fabricators who participated, the frequency and accuracy with which I inseminated and the specific abortifacient I used. Because of these measures of privacy, the piece exists only in its telling. This telling can take textual, visual, spatial, temporal and performative forms — copies of copies of which there is no original.
This piece — in its textual and sculptural forms — is meant to call into question the relationship between form and function as they converge on the body. The artwork exists as the verbal narrative you see above, as an installation that will take place in Green Hall, as a time-based performance, as a independent concept, as a myth and as a public discourse.
It creates an ambiguity that isolates the locus of ontology to an act of readership. An intentional ambiguity pervades both the act and the objects I produced in relation to it. The performance exists only as I chose to represent it. For me, the most poignant aspect of this representation — the part most meaningful in terms of its political agenda (and, incidentally, the aspect that has not been discussed thus far) — is the impossibility of accurately identifying the resulting blood. Because the miscarriages coincide with the expected date of menstruation (the 28th day of my cycle), it remains ambiguous whether the there was ever a fertilized ovum or not. The reality of the pregnancy, both for myself and for the audience, is a matter of reading.
This ambivalence makes obvious how the act of identification or naming — the act of ascribing a word to something physical — is at its heart an ideological act, an act that literally has the power to construct bodies. In a sense, the act of conception occurs when the viewer assigns the term “miscarriage” or “period” to that blood.
In some sense, neither term is exactly accurate or inaccurate; the ambiguity is not merely a matter of context, but is embodied in the physicality of the object. This central ambiguity defies a clear definition of the act. The reality of miscarriage is very much a linguistic and political reality, an act of reading constructed by an act of naming — an authorial act.
It is the intention of this piece to destabilize the locus of that authorial act, and in doing so, reclaim it from the heteronormative structures that seek to naturalize it.
As an intervention into our normative understanding of “the real” and its accompanying politics of convention, this performance piece has numerous conceptual goals. The first is to assert that often, normative understandings of biological function are a mythology imposed on form. It is this mythology that creates the sexist, racist, ableist, nationalist and homophobic perspective, distinguishing what body parts are “meant” to do from their physical capability. The myth that a certain set of functions are “natural” (while all the other potential functions are “unnatural”) undermines that sense of capability, confining lifestyle choices to the bounds of normatively defined narratives.
Just as it is a myth that women are “meant” to be feminine and men masculine, that penises and vaginas are “meant” for penetrative heterosexual sex (or that mouths, anuses, breasts, feet or leather, silicone, vinyl, rubber, or metal implements are not “meant” for sex at all), it is a myth that ovaries and a uterus are “meant” to birth a child.
When considering my own bodily form, I recognize its potential as extending beyond its ability to participate in a normative function. While my organs are capable of engaging with the narrative of reproduction — the time-based linkage of discrete events from conception to birth — the realm of capability extends beyond the bounds of that specific narrative chain. These organs can do other things, can have other purposes, and it is the prerogative of every individual to acknowledge and explore this wide realm of capability.
Saturday, April 19, 2008
Tuesday, April 15, 2008
Leon Ferrari etc
O ritmo de postagens diminuiu um pouco porque estou usando minhas horas vagas para dar forma final a um livro sobre arte contemporânea, que ordena e sistematiza muito do que escrevi aqui nos últimos seis meses. O livro se chamará A GRANDE FEIRA - ENSAIO SOBRE A ARTE CONTEMPORÂNEA E SEUS DESVIOS, e espero lançá-lo ainda este ano. Mas continuarei escrevendo aqui - e produzindo material, quem sabe, para um segundo livro.
***
Achei algumas coisas interessantes esses dias. Por exemplo, o site do artista argentino Leon Ferrari, www.leonferrari.com.ar. Ferrari, 87 anos, ganhou o Grande Prêmio da Última Bienal de Veneza, em outubro passado. Ferrari iniciou sua produção em 1954, usando variadas técnicas e suportes: colagem, xerox, arte postal, objetos, em materiais como cerâmica, gesso, madeira, cimento e aço inoxidável. Participou da vanguarda portenha com suas investigações caligráficas (foto). Ele viveu em São Paulo, como exilado político, de 1976 a 1984, voltando a viver em Buenos Aires em 1991.
Ele tem obras polêmicas, anticlericais e de conteúdo fortemente político. A exposição "León Ferrari 1954-2004", no Centro Cultural de Recoleta, em Buenos Aires, foi fechada por pressão de uma organização católica, que considerou blasfemo o trabalho "La civilización occidental cristiana" (1965), que mostra Cristo crucificado num avião de combate" (abaixo). Ferrari participou da última Bienal de S.Paulo, em 2006.
De Ferrari localizei uma citação interessante:
"O mercado é algo esquisito, a mesma obra que não valia nada de repente vale. O que me interessa é que sigo trabalhando e sinto que não me repito. Enquanto tiver essa possibilidade, tudo bem. O problema é quando o artista não sabe mais o que fazer e começa a copiar a si mesmo."
***
Já escrevi algumas vezes sobre a participação brasileira na última ARCO, em Madri, que foi bastante festejada, mas não mereceu qualquer análise séria na imprensa. Tudo o que saiu publicado repetia, basicamente, as mesmas informações, em estilo de press-release. Mas há pouco, navegando pela Internet, me deparei com uma imagem bastante eloqüente: uma fotografia da performance do artista brasileiro Marco Paulo Rolla na ARCO:
Depois de ver essa foto, tenho a convicção de que a arte brasileira foi muito bem representada na Espanha. (ATENÇÃO: EU ESTOU SENDO IRÔNICO!)
***
Achei algumas coisas interessantes esses dias. Por exemplo, o site do artista argentino Leon Ferrari, www.leonferrari.com.ar. Ferrari, 87 anos, ganhou o Grande Prêmio da Última Bienal de Veneza, em outubro passado. Ferrari iniciou sua produção em 1954, usando variadas técnicas e suportes: colagem, xerox, arte postal, objetos, em materiais como cerâmica, gesso, madeira, cimento e aço inoxidável. Participou da vanguarda portenha com suas investigações caligráficas (foto). Ele viveu em São Paulo, como exilado político, de 1976 a 1984, voltando a viver em Buenos Aires em 1991.
Ele tem obras polêmicas, anticlericais e de conteúdo fortemente político. A exposição "León Ferrari 1954-2004", no Centro Cultural de Recoleta, em Buenos Aires, foi fechada por pressão de uma organização católica, que considerou blasfemo o trabalho "La civilización occidental cristiana" (1965), que mostra Cristo crucificado num avião de combate" (abaixo). Ferrari participou da última Bienal de S.Paulo, em 2006.
De Ferrari localizei uma citação interessante:
"O mercado é algo esquisito, a mesma obra que não valia nada de repente vale. O que me interessa é que sigo trabalhando e sinto que não me repito. Enquanto tiver essa possibilidade, tudo bem. O problema é quando o artista não sabe mais o que fazer e começa a copiar a si mesmo."
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Já escrevi algumas vezes sobre a participação brasileira na última ARCO, em Madri, que foi bastante festejada, mas não mereceu qualquer análise séria na imprensa. Tudo o que saiu publicado repetia, basicamente, as mesmas informações, em estilo de press-release. Mas há pouco, navegando pela Internet, me deparei com uma imagem bastante eloqüente: uma fotografia da performance do artista brasileiro Marco Paulo Rolla na ARCO:
Depois de ver essa foto, tenho a convicção de que a arte brasileira foi muito bem representada na Espanha. (ATENÇÃO: EU ESTOU SENDO IRÔNICO!)
Thursday, April 10, 2008
'Camp'
Um conceito a ser recuperado é o de camp, sistematizado por Susan Sontag (foto) no célebre ensaio Notas sobre o Camp, de 1964 (incluído no livro Contra a interpretação). Camp se refere à tática que os intelectuais empregam para consumir cultura de massa sem culpa, isto é, camuflando por meio da crítica o prazer que sentem no consumo de produtos triviais ou vulgares. Pedro Bial levando a sério o Big Brother, por exemplo, é camp. O gosto e a sensibilidade camp geralmente privilegiam o artificial e o exagerado, como, por exemplo, a arte de Jeff Koons. Originalmente, aliás, camp se referia á teatralização hiperbólica do comportamento feminino na cultura gay americana, nos anos 60.
O texto completo do ensaio de Susan Sontag (em inglês) pode ser lido aqui:
http://interglacial.com/~sburke/pub/prose/Susan_Sontag_-_Notes_on_Camp.html
Tuesday, April 08, 2008
Audiência em alta
O blog bateu nesta terça, 8/4, seu recorde de visitantes únicos: 247 pessoas passaram por aqui, em 352 page views. O recorde anterior era de 242 visitantes únicos, no dia 12/3.
Saturday, April 05, 2008
Os moedeiros falsos
"A arte contemporânea é exatamente o que a vida é hoje em dia, assolada por perguntas como 'Fará sucesso?', 'Custará caro?', 'Aparecerá na televisão?'"
(Matthew Collings, crítico inglês)
A arte contemporânea cultiva uma imagem pluralista e eclética, mas por mais diversificada que se apresente, a sua produção tem uma essência comum, que se manifesta de diversas maneiras:
1) no discurso do "povo da arte", que a tudo abriga: as falas dos curadores, críticos e professores que participam de debates, mesas-redondas, seminários etc, sempre vagas e pouco conclusivas, têm a função de, justamente, dar chancela teórica às manifestações artísticas mais disparatadas, inconsistentes ou triviais: a própria inconsistência, aliás, é interpretada como sinal de estéticas da fragmentação ou da precariedade, ou coisa parecida. Quando se espreme esse discurso, não sobra quase nada relevante ou original; sua importância é ritual e simbólica, ao reforçar posições e relações de poder.
2) na institucionalização generalizada: o artista contemporâneo se julga muito contestador e radical, mas não tem o menor pudor em viajar à Europa à custa do Governo, por exemplo, como um artista oficial.
3) na aversão ao novo: com raras exceções, as manifestações artísticas contemporâneas são recombinações pós-modernas de linguagens e questões exauridas há mais ou menos 30 anos. Quem compara de boa fé um livro dos anos 60 ou 70 sobre a produção da época - por exemplo, Total Art, de Adrian Henri, ou Art without Boundaries, de Gerald Wood, - com livros sobre a produção dos anos 80 para cá - por exemplo, Modern Contemporary, de Kirk Varnedoe - tem dificuldade em apontar as diferenças entre as propostas artísticas (salvo quando há o recurso a novas tecnologias que não estavam à disposição 30 anos atrás, mas aplicadas a propostas igualmente velhas). Mas grave ainda: a produção dos anos 80 e 90 parece mais datada e esquecida (e politicamente correta) que a dos anos 60 e 70.
E não é difícil entender por quê. Os gestos e movimentos daquelas décadas, que corresponderam às últimas vanguardas modernas, eram efetivamente novos, inaugurais, experimentais: expandiam o campo artístico, estabeleciam novos diálogos com o mundo, com o indivíduo, com a política etc. O que aconteceu desde então foi a diluição ad infinitum dessas propostas, domesticadas pelo mercado e pelas instituições, como já expus à exaustão. Dominada pos falsos moedeiros, a arte perdeu a ambição, contentando-se em ser reduzida a uma esfera da cultura semelhante à da moda ou a do show business: pode movimentar grandes fortunas, mas é em geral vazia, mistificadora e autocomplacente.
Em outras palavras, essas manifestações constituem hoje o status quo da arte, da mesma forma que a produção acad~emica representava o status quo antes do Impressionismo. Aceitar isso deve ser doloroso para muita gente, mas as instalações, video-artes, performances e, de uma forma geral, os múltiplos desdobramentos da arte conceitual, que continuam sendo vendidos como grandes novidades, representam hoje uma arte conservadora, velha, que ignora a passagem do tempo e se submete docilmente às determinações do mercado e dos mandarins do sistema da arte que, aboletados em posições estratégicas, decidem caprichosamente, ou por critérios tortos, quem pode e quem não pode participar da panela.
Chego assim ao quarto ponto, o mais relevante:
4) a arte contemporânea é unificada, sobretudo, pelo triunfo do conceitualismo, que se manifesta na adoção generalizada e difusa de diversas técnicas e estratégias associadas à arte conceitual histórica. Isso acontece de forma explícita em artistas que usam a linguagem verbal em seus trabalhos (como Jenny Holzer - da ilustração acima, e seus imitadores), ou que brincam de criticar a idéia de originalidade manipulando imagens alheias (aqui a matriz é Sherry Levine), ou que colocam em questão ("colocar em questão" alguma coisa é um excelente pretexto para rigorosamente tudo, na arte; difícil é apresentar respostas convincentes) noções de identidade, gênero, papéis sociais etc.
Assim, por exemplo, o artista inglês Damien Hirst não é exatamente um artista conceitual, segundo crtérios rígidos, mas seguramente ele opera nesse horizonte conceitualista quando afirma, como fez em 2000, respondendo a um crítico que não alcançara a profundidade de sua obra: "Não creio que a mão do artista seja importante, em qualquer nível, porque se está apenas tentando comunicar uma idéia". Ou seja, um horizonte no qual a "idéia" é o fundamental, prevalecendo sobre a execução, a técnica e o artesanato, que podem ser entregues a terceiros - neste aspecto a arte se aproxima da esfera da publicidade, na qual o que conta é a "sacada".
Além disso, vale lembrar que Hirst representa o máximo da integração ao sistema, cada obra sua valendo vários milhões de dólares e sendo exposta nas principais coleções contemporâneas do mundo, enquanto a arte conceitual, enquanto movimento histórico, se opunha radicalmente aos poderes estabelecidos, á mercantilização da arte e até mesmo ao modo como a arte era estudada nas universidades americanas. Ou seja, era um movimento autêntico, que usava entre outros recursos o ceticismo e a ironia. Disso só se preservou hoje a pose de ceticismo e ironia, sem lastro em qualquer contestação real ao poder estabelecido ou ao sistema da arte, como na´frase de Matthew Collings que serve de epígrafe a este texto. Por tudo isso, outro crítico inglês, Paul Wood, está coberto de razão quabndo escreve: "Se o conceitualismo tornou-se de fato o status quo do inflacionado mundo da arte contemporânea, então é certo concluir que ele tem menos em comum com o espírito da arte conceitual histórica do que com a academia moderna, da qual aqueles artistas haviam tomado distãncia". Touché.
Tuesday, April 01, 2008
Artistas imaginários
Em 1998, o escritor inglês William Boyd lançou o livro Nat Tate: An American Artist – 1928-1960, a biografia de um pintor americano, da segunda geração de expressionistas abstratos. Três meses e muitas reportagens depois do lançamento, descobriu-se que Tate jamais existira. Forjando uma biografia, com análises críticas, fotografias (incluindo a do quadro acima, pintado pelo próprio Boyd), documentos e demais elementos associados ao percurso de seu personagem, Boyd colocava os leitores na delicada alternativa de reconhecerem a sua ignorância, se questionassem a obra, ou de fingirem conhecer o artista - o que diversos críticos e jornalistas especializados fizeram, caindo no ridículo tecendo considerações sobre a obra de Tate e elogiando Boyd por ter resgatado um artista precocemente desaparecido e injustamente desprezado.
O escritor chegou a declarar aos jornalistas: "Tate was one of those rare artists who did not need, and did not seek, the transformation of his painting into a valuable commodity to be bought and sold on the whim of a market and its marketeers." David Bowie participou do trote, comparecendo à cerimônia de lançamento do livro, realizada, vejam só, no estúdio do artista Jeff Koons. Bowie leu um trecho do livro, justamente a passagem onde o biografado se suicida por afogamento, aos 31 anos - após visitar Georges Bracque e se sentir humilhado diante da revelação da verdadeira arte. Seu corpo nunca foi encontrado, Bowie lembrou, e poucas de suas obras foram preservadas. Um dos repórteres humildemente perguntou aos críticos de arte ali presentes se já haviam ouvido falar em Tate. Todos confirmaram.
Outro caso interessante, e ainda mais intrigante apesar de mais antigo, é o de Hank Herron, pintor exaltado no ensaio "Fake as More", da crítica Cheryl Bernstein, no livro Art Idea (1973) - na realidade Carol Duncan, historiadora de arte que resolveu pregar uma peça em seus colegas. Herron pintava quadros idênticos aos de Frank Stella, mas como obras novas, não como falsificações ou cópias. Obras aliás superiores às originais, devido à riqueza conceitual derivada do fato de serem reproduções. "A obra do sr. Herron, que criou cópias exatas de pinturas de Frank Stella, introduz, não obstante, um novo conteúdo e um novo contexto", escreveu Duncan, "que não estão presentes na obra de Stella, isto é, a negação da originalidade."
O que era sátira transformou-se, na década seguinte, em realidade pós-moderna, com as fotografias que Sherrie Levine tirou das fotografias de Walker Evans e Edward Weston. Só mesmo uma mudança de paradigma explica que algo apresentado em 1973 como uma piada fosse vendido em 1981 como arte. Pessoalmente, confesso que vejo a obra de Levine como uma piada. Como artista, ela tem a mesma consistência e é tão imaginária quanto Nat Tate e Han Herron. Abaixo uma fotografia de Walker Evans, e outra de Sherrie Levine, "After Walker Evans"
Revelando o terreno movediço que sustenta a arte contemporânea, o inverso também acontece: não somente artistas imaginários são dados como reais; artistas reais também são suspeitos de não existir. Foi o caso de Harold Shapinsky, um expressionista abstrato real que caiu no ostracismo e, quando foi redescoberto nos anos 80, galeristas americanos afirmaram se tratar de uma fraude. O que me leva a crer que o edo de pagar mico - seja revelando ignorância, seja revelando ingenuidade - é um componente psicológico importante no comportamento dos agentes do sistema da arte. Talvez um efeito colateral do complexo de culpa, por parte da crítica especializada, em relação a julgamentos equivocados do passado, como a condenação do Impressionismo por críticos franceses, ou a condenação do Modernismo brasileiro por Monteiro Lobato. Para não parecer reacionário, algumas pessoas abrirammão do discernimento e passaram a engolir qualquer coisa que apareça pela frente.
Voltando ao caso Nat Tate. Quando foram desmascarados, o escritor William Boyd e sua editora se defenderam da seguinte maneira: o objetivo de Boyd não era revelar a superficialidade do mundo da arte novaiorquino; o livro era, ele próprio, uma obra conceitual, que força os leitores a refletir sobre o que confere estatuto de realidade a um artista ou uma obra. De fato, como obra conceitual, o livro Nat Tate: An American Artist é muito mais interessante do que muitas obras designadas como geniais pelo sistema da arte contemporânea.
Por fim, para dar uma cor local ao tema: em 2006, o artista japonês Souzousareta Geijutsuka foi convidado a expor no MACCE (Museu de Arte Contemporânea do Ceará), em Fortaleza. Como costuma acontecer no Brasil, ele foi anunciado pela imprensa cearense como um dos principais nomes da arte contemporânea universal. O artista ocuparia uma sala inteira do museu com flores e vegetais carbonizados, representando o "equilíbrio entre a vida e a morte", a "harmonia entre a natureza que nasce e morre", um "convite a reflexões sensoriais sobre a fragilidade da vida". As expressões entre aspas foram tiradas de matérias nos jornais do Ceará. Um jornalista chegou a escrever: "O artista conquistou fama mundo afora, exatamente por elencar assuntos tão distintos, como: arte, ciência e tecnologia em suas exposições"; "Entre outras cidades já expôs em Tóquio, Nova York, Berlim e São Paulo". Coroando o episódio, o jornal Diário do Nordeste publicou uma longa entrevista com o artista, feita por e-mail.
No dia da abertura da exposição, surpresa: não havia nada exposto, simplesmente porque Geijutsuka não existia: era uma invenção do artista Yuri Firmeza. Na sala prevista para a montagem, uma placa dizia: "Exposição em desmontagem". Numa parede, um texto assinado pelo diretor do MACCE, Ricardo Resende, falava de um projeto artístico conceitual "que foge do puramente contemplativo e exige do público a reflexão sobre o que se vê ou o quê não se vê", e sugeria que a exposição era sobre "a 'ficção' de se fazer arte na atualidade".
Firmeza, por sua vez, se justificou com muita propriedade: "Bastaria fazer uma rápida pesquisa no Google para que os jornalistas descobrissem que não havia, na Internet, nenhuma menção ao tal Geijutsuka, apresentado como um artista famoso, com exposições consagradoras em Tóquio, Nova York, São Paulo e Berlim. Mas eu não quis provocar apenas a imprensa, isso seria reduzir o alcance da denúncia; a provocação foi extensiva a todo o circuito das artes em geral". Pelo visto, o circuito das artes em geral não se constrangeu: na arte ninguém se constrange com mais nada.
Abaixo, cena de uma vídeo-arte do artista japonês Souzousareta Geijutsuka - que, aliás, significa "Artista Inventado". em japonês.
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