Monday, December 31, 2007

Vodka e arte


Em fevereiro de 2006, a conceituada revista americana ARTnews trouxe como matéria de capa o "Top Ten" das tendências que estavam ditando a produção artística contemporânea, entre elas a espiritualidade, o mockumentary (ou documentário fake), o maneirismo pós-moderno e o neo-psicodélico. Passados quase dois anos, a lista já deve estar bem diferente: por definição, listas de Top Ten precisam mudar, para fazer sentido. Como dizia um personagem do romance O Leopardo, de Tomasi di Lampedusa: "Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude".

É esta a essência da arte contemporânea reduzida à lógica do mercado e da mídia: aparentar mudar, para que o sistema continue girando, mas no fundo sem mudar nada, já que a História da Arte acabou e só nos resta a manipulação cínica de linguagens do passado, sem qualquer conteúdo crítico, sem qualquer projeto transformador ou emancipatório.

A aliança do sistema da arte com as grandes corporações é um casamento por interesse, é claro, sem amor verdadeiro. Tanto é assim que os artistas, que gostam de atitudes rebeldes, o escamoteiam, ou o justificam com certo constrangimento: ora, Michelangelo e Leonardo Da Vinci também precisavam de mecenas. O próprio museu foi criado para que o grande público aceitasse a arte promovida pelo mecenato privado. São argumentos simplórios, é claro, mas servem para confortar os menos exigentes. Eu, particularmente, ainda me sinto incomodado quando vejo a assinatura Picasso num carro (cujo design, aliás, nada tem a ver com Picasso).

Fico mais incomodado ainda quando leio que a Absolut Vodka - que teve no mercado brasileiro a maior taxa de crescimento em termos mundiais (mais de 100% este ano) - encomendou a diversos artistas, começando por Nelson Leirner e Daniel Senise, garrafas da bebida em tiragens limitada (48 mil de cada artista, rapidamente esgotadas. Leio no site da Absolut que a garrafa de Leirner usa "uma linguagem onírica", imagens de singelas borboletas combinadas a uma profusão de cores, usando a técnica de stickers que o artista vem abraçando nos seus trabalhos mais recentes. Já a de Senise é inspirada pelas rochas de Copacabana, e tem "um tom mais irreverente e provocativo, com a imagem de um macaco no meio de estilhaços de madeira".


Segundo o site, "a parceria entre ABSOLUT, Nelson Leirner e Daniel Senise enfatiza a devoção mútua pela criatividade, elegância e arrojo. (...) Além de abraçar o conceito arte, o projecto traz também uma outra grande característica da marca, o collectible, o objecto do desejo colecionável pela legião de fãs de Absolut". A campanha da Absolut continuará com "novíssimos nomes da arte contemporânea brasileira, como "Nando Costa, Adhemas, Abiuro, Glauco Diogenes, Gui Borchert, Marconi, Nitrocorpz, Colletivo, Rubens Lp e mooz".


A estratégia de comunicação da Absolut começou em 1985, com o projeto Absolut Warhol (naturalmente: Andy Warhol foi o profeta da arte como business); no ano seguinte foi a vez de Keith Haring, e hoje já são mais de 400 os artistas(mas também designers, estilistas como Versace e Gaultier etc: para o mercado, é tudo a mesma coisa) que alugaram seus nomes para campanhas da empresa - incluindo, é claro, o rebelde Damien Hirst. Coroando a iniciativa, em 2003 a Absolut se tornou a primeira marca a ser convidada como expositora oficial da Bienal de Veneza. Dois anos antes, o Guggenheim de Nova York tinha aberigado uma mega-exposição sobre... Giorgio Armani, que coincidentemente doara 15 milhões de dólares ao museu.

Pode-se fazer de conta que no Renascimento ou no projeto moderno também era assim, é claro. O tempo vai dizer o que restará dessa produção artística que se rendeu ao canto da sereia do capital. A boa arte, como a boa vodka, a gente conhece no dia seguinte.

Sunday, December 30, 2007

Lucio Fontana, Concetto Spaziale


O período que vai de Manet e do começo do Impressionismo até meados dos anos 60, quando acontece a passagem da arte moderna para a arte contemporânea, pode ser entendido como o da explicitação crescente dos processos, convenções e limitações da atividade artística pelo próprio artista: a superfície da tela, a moldura, a parede onde o quadro é pendurado, tudo aquilo que antes passava despercebido é tornado visível. O ápice desse processo foi o gesto do artista italiano Lucio Fontana de rasgar a tela, estabelecendo uma relação direta e visceral com um suporte que se julgava esgotado, no qual pareciam não mais caber a representação e a expressão como idéias motoras da pintura.

(Na escultura, um momento semelhante foi alcançado pela obra Respingos, de Richard Serra, que em 1968 espalhou chumbo derretido num armazém na Galeria Leo Castelli: endurecido, o chumbo subvertia as convenções da escultura e criava uma nova experiência perceptiva no público, que tinha dificuldade em encaixar aquilo no universo dos objetos de arte)


Fontana, Yves Klein e Piero Manzoni foram, a seu modo, artistas visionários: os três radicalizaram na experimentação, apontando os impasses insuperáveis da arte que se dissocia do mundo para mergulhar no próprio umbigo. Fazer isso nos anos 50 e 60 foi genial, mas me parece problemático que boa parte da produção artística hoje, 40 anos depois, seja uma diluição ou um comentário estéril do que eles fizeram. É o triunfo da retórica sobre a arte.

É claro que é possível citar ou comentar de forma criativa, como Manet fez com Ticiano, como Magritte fez com Manet. Dando seqüência ao post O jogo dos conceitos, segue uma citação explícita a Fontana na obra da artista brasileira Adriana Varejão:



Adriana transporta as feridas na tela de Fontana para as suas paredes de azulejo, por trás das quais, em outras variações da obra, aparecem vísceras, sangue, matéria orgânica etc. A artista desloca assim o sentido do gesto de Fontana. Numa simplificação grosseira: se nas telas rasgadas dos anos 60 estavam a revelação da mentira da representação e a explicitação das convenções materiais da arte, nos azulejos de Adriana, a pureza e a assepsia da parede branca são desafiadas pelo desnudamento de outra mentira, a da falsificação histórica que escamoteia a violência e a exploração com que foi e continua a ser escrita a Hitória do Brasil.

A obra de Adriana Varejão reafirma a possibilidade de novas trilhas para a arte, que recuperem seu significado social, seu potencial de crítica e comentário do mundo (e não de si mesma). Como outros artistas, ela está longe da presunção pós-moderna de acreditar que a História da Arte acabou, e de que a arte hoje, pós-histórica, pode olhar de cima todas as etapas e movimentos dessa História.

Dez hipóteses sobre o estado da arte


1. O movimento pós-moderno de integração à cultura de massa é a antítese da atitude modernista de resistência à ideia da mercantilização da arte. O pós-modernismo assinala a rendição incondicional da arte e de toda a produção cultural às forças do mercado neoliberal globalizado, que subordina a cultura aos interesses corporativos. É evidente que ao longo de toda a História o artista teve que se relacionar de alguma maneira com o capital, mas hoje o fenômeno se diferencia pelo seu alcance e por suas implicações inéditas: acabaram as brechas, nada escapa da atuação do capitalismo corporativo e do Estado burocrático.

2. As grandes corporações se tornaram os principais patrocinadores da arte, formando coleções milionárias, concedendo fundos para mega-exposições nos museus etc. Tudo isso afeta não apenas a cotação dos artistas contemporâneos, mas também a sua própria produção, cada vez mais domesticada e alienante. As corporações compram barato e em quantidade, forçando em seguida a escalada da cotação de jovens artistas. É claro que tem gente de qualidade, mas muitos acabam funcionando como idiotas úteis.

3. O museu como instituição de guarda e conservação de patrimônio perdeu relevância. como se previu nos anos 80. Mas em seu lugar surgiram, às dezenas (às centenas em alguns países, como no Japão), museus fast-food e filiais caça-níqueis de grandes griffes, com a função de multiplicar as conexões da rede de produção e consumo num nível planetário - e estimular um novo e lucrativo entretenimento de massa, no qual se lançam novos produtos a cada temporada. Mas, como em outros mercados, geralmente o que muda é só a embalagem ou o nome de fantasia: no conteúdo pouca coisa de relevante aparece. Talvez seja por isso que, desde Daniel Buren, muitos artistas contemporâneos - mesmo aqueles cujos trabalhos, por vezes materialmente perecíveis, pedem um ambiente diferente - vivem atacando os museus como instituição ultrapassada a serviço de interesses ideológicos burgueses. Mas adoram estar neles, buscando a cumplicidade daquilo que criticam.

4. Os padrões estéticos do pós-moderno são transitórios, determinados por interesses mercadológicos - que vendem e consagram uma enorme quantidade de lixo. Enquanto os modernistas se engajavam na criação de novos códigos; os pós-modernos se contentam com a manipulação dos velhos códigos, que escolhem no catálogo da História. Já que o valor não está mais no objeto, mas na assinatura, e já que é esta que designa a obra de arte, qualquer pode reconhecer em si um artista, desde que o sistema o reconheça, transformando seu nome em griffe. Uma vez inserido no sistema, qualquer lixo poderá ser apresentado como arte - e o artista ainda poderá se divertir com a incompreensão da plebe ou, dependendo de seu temperamento, ficar indignado diante de quem for cego para o seu gênio.

5. Como o mundo editorial e o mundo fonográfico, o mundo da arte se aproximou do supermercado, onde é fundamental estar exposto para ser "vendido". E onde o preço alto é atrativo e garantia de qualidade, como nas lojas de roupa sofisticadas. Já repararam como essas lojas se parecem cada vez mais com galerias de arte?

6. A passagem do moderno ao pós-moderno coincidiu, em meados dos anos 60, com a integração crescente da cultura à lógica da produção de mercadorias em geral: a motivação da inovação aparente e da experimentação na arte passou a ser a disputa de espaço num mercado competitivo; tensões e conflitos antes limitados a outras esferas da sociedade invadiram a arena da produção artística. O capital investido na arte passou a produzir desejos, fabricar gostos cada vez mais aviltados e estimular sensibilidades para criar um novo paradigma, ligado ao consumo (material e simbólico) e à circulação em rede - e oposto ao projeto moderno e às formas tradicionais de alta cultura.

7. Paralelamente, a contracultura dos anos 60 e 70 criou um ambiente de novas demandas e desejos reprimidos, que a produção cultural pós-moderna se apressou a satisfazer e enquadrar, na forma de mercadorias, com a ajuda dos meios de comunicação de massa. As linguagens da publicidade se aproximaram e se apropriaram da linguagem artística; esta por sua vez, se afastou da expressão subjetiva para abraçar modelos impessoais de produção.

8. A arte pós-moderna rejeita as idéia de progresso e de continuidade linear, bem como qualquer autoridade no juízo estético, ao mesmo tempo em que pilha a História. Sem um consenso sobre os valores e crenças, o julgamento crítico perde a função. Sem um horizonte temporal no qual se inserir, a arte se atrela a uma lógica do espetáculo, e a produção artística perde a profundidade, se apoiando nas aparências e nos impactos mediáticos imediatos e instantâneos, numa série descontínua de reelaborações que não sobrevivem ao tempo. Como estrelas da cultura de massa, os artistas que conseguem se inserir no circuito internacional passam a se preocupar com estratégias de marketing que os mantenham em evidência.

9. No modernismo, o movimento de aproximação entre artista e sociedade se inseria num projeto de transformação social: os artistas acreditavam no papel emancipador da arte. Hoje essa aproximação obedece ao imperativo capitalista de ampliar o público consumidor e reforçar gostos e valores que sustentam o sistema, através de uma rede onipresente tão ramificada que às vezes é difícil dizer quem está influenciando quem. Os movimentos especulativos que sempre afetaram o mercado financeiro passaram a determinar mudanças espasmódicas na arte: a obra de arte, como o dinheiro, se torna puro valor de troca, em meio à reelaboração contínua de modelos do passado.

10. A consolidação da arte pós-moderna, a partir da Pop Art, coincidiu com a passagem da cultura de massas para a cultura das mídias. Esta aboliu definitivamente a reflexão crítica e a vontade libertadora do projeto moderno: a arte contemporânea abraça sem qualquer constrangimento a superficialidade inócua, irônica e cínica. A História e seus projetos de emancipação passaram a ser vistos como démodés: agora todas as idéias e movimentos do passado cabem dentro do presente, mas esvaziados de sentido, como artigos em prateleiras de supermercado. Coincidiu também, é claro, com o declínio declínio da hegemonia da arte européia e a ascensão americana.

11. Tudo isso acontece com o beneplácito das elites intelectuais, que demonstram uma receptividade acrítica sem precedentes ao que lhes é vendido como arte. Essa tolerância total acaba se confundindo com a indiferença, e a arte, em algum aspecto essencial, se torna irrelevante - ainda que, economicamente, esteja cada vez mais calçada.

Na ilustração, Corner, fotografia de Louise Lawler

Beatriz Milhazes no Estadão


Saiu hoje na coluna da Sonia Racy, no Estado de S.Paulo, uma entrevista da artista plástica Beatriz Milhazes. Vou transcrever alguns trechos, não apenas porque tocam diretamente em assuntos tratados aqui, mas também porque:

1) É sempre bom mostrar o que os artistas efetivamente dizem e pensam: assim se eliminam ambigüidades, e a discussão de idéias fica mais transparente.
2) Percebo que a Beatriz, apesar de (ou por causa do) seu sucesso internacional, é vista com certo desdém por parte da tribo pós-moderna. Talvez porque seja pintora (e todo mundo sabe que a pintura está morta, não é?), talvez porque seus arabescos tenham algo de decorativo, talvez por motivos pessoais.

Quero dizer com isso que sei perfeitamente que o meio artístico é, como tudo no nosso país, sujeito a picuinhas e disputas internas, a fogueiras de vaidades, a motivações inconfessáveis. Mas vamos à entrevista:
___

Embora trabalhe duro, Beatriz produz pouco. Nessa exposição em São Paulo, não vai além de cinco pinturas e três colagens, com preços entre US$ 50 mil e US$ 250 mil - todas vendidas antes da abertura. (...)

Como você define a arte contemporânea?
Há várias possibilidades de resposta. Primeiro, acredito que a arte contemporânea, mesmo tendo feito bodas de ouro, pertence mais ao artista, em termos da compreensão. Como lida com o cotidiano, existe a liberdade de poder se expressar de qualquer forma. Depois que Marcel Duchamp colocou um urinol dentro do museu e disse que aquilo era arte, abriu um universo extremamente amplo.

O que você acha de tudo isso?
Como artista ligada a uma estrutura modernista e estética, acho passível de equívoco. Não vou mostrar imagens dantescas de pessoas mortas na rua. A arte tem que trabalhar coisas que são específicas. Senão, perde o sentido de existir.

A maior parte do que se cria hoje é descartável?
A maioria é besteira. Se um aluno de arte vai a uma galeria e vê um ovo colocado no meio da sala, vai pensar: “Isso eu também sei fazer.” E ele vai fazer. Vai fazer um, dois, dez ovos. Vão se passar três, quatro anos, e isso terá uma aceitação e vai parecer que realmente é arte contemporânea.
Se ele mesmo não estiver entendendo o porquê de estar fazendo aquilo, a obra morre. Agora, existem coisas que são importantes e que podem visualmente aparentar outras. Os artistas americanos que criaram, vamos dizer, a arte contemporânea, como Andy Warhol e Robert Rauschenberg, são facilmente identificáveis.

Warhol é referência para você?
Ele é, sim, uma das minhas referências mais importantes.

A porta de entrada para o mercado internacional foi a Venezuela, nos anos 90. Depois Nova York, Londres e Berlim. Foi uma estratégia planejada?
A escolha das galerias que representam um artista é fundamental. Mas sempre tive interesse grande na cultura brasileira. Em especial, nas cores do meu trabalho, numa geração totalmente americanizada como foi a minha. Não tenho medo dos estereótipos do Brasil.

Quando começa uma obra, você pensa se ela vai vender?
Não, nunca. Aliás, uma das razões do meu sucesso é que isso nunca pautou a minha vida. Apesar de achar muito bom fazer dinheiro, isso não é o primeiro item da lista de prioridades no meu trabalho.

Tem algum artista brasileiro que você realmente admira?
Tenho vários. Recebi forte influência do modernismo brasileiro. De Tarsila, principalmente. Ela sempre foi um dos meus focos de observação.

Saturday, December 29, 2007

O jogo dos conceitos


Escrevi há pouco que enxergo muito mais arte no quadro Las Meninas, de Velázquez, do que na obra completa de alguns artistas contemporâneos. Pode-se argumentar que os artistas de hoje lidam com outras questões, e que a comparação não tem cabimento. Mas eu não considero Velázquez superior apenas do ponto de vista da técnica, ou da beleza, mas também, por assim dizer, "no campo do adversário", isto é, nos conceitos que ele propõe discutir em suas obras.

Las Meninas (1657) é uma pintura tão rica, sofisticada e cheia de sutilezas que nem vou entrar aqui numa análise detalhada. Mas recomendo a leitura da introdução de As palavras e as coisas, de Michel Foucault, texto em que o filósofo francês (na minha opinião, o mais influente pensador do século 20) demonstra como Velázquez pinta a representação da representação, isto é, como o quadro desnuda os princípios que orientavam a atividade artística na fronteira entre dois modelos, o clássico e o moderno (moderno no sentido histórico, não artístico). O quadro que é objeto do quadro é ocultado do espectador, com quem o artista estabelece um jogo de espelhos. 350 anos depois de criada, é uma tela que continua dizendo coisas importantes. Não encontro em nenhum artista conceitual discussão mais profunda.

Outro tema que agrada aos pós-modernos é a explicitação do jogo de referências e influências com artistas do passado. Mas é claro que isso também não é novidade. Manet fez isso de forma muito mais inteligente e provocadora no quadro seminal Olympia, problematizando a relação da arte com suas fontes ao citar a Vênus de Urbino, de Ticiano. Isso em 1862.

Manet, que com razão é considerado por muitos críticos o marco zero do Modernismo - aliás, pouca gente lembra, mas Manet esteve no Brasil, em 1849, e há quem diga que a luz e as cores do Rio de Janeiro influenciaram o surgimento do Impressionismo; falarei disso em outro post - fez muito mais do que um pastiche: ao dialogar com uma referência clássica num quadro que retratava escandalosamente uma prostituta, ele desafiou os valores da tradição, não apenas no tema, mas também na forma, já que o quadro desrespeita deliberadamente a perspectiva clássica e outras convenções formais (no contraste acentuado das cores, nas pinceladas grossas das flores, na luz chapada - como se o próprio olhar do espectador iluminasse a modelo, diferentemente da Vênus de Ticiano, com sua sutil iluminação lateral).

Nessa revisão Manet apontava novos caminhos, enquanto o pós-modernismo faz o comentário irônico da ausência de caminhos novos. Nesse sentido o pós-moderno é literalmente reacionário, isto é, age no sentido contrário à proposta moderna de se estabelecer uma tradição do novo, transformando a arte num sistema endogâmico, encapsulado sobre si mesmo - embora, é claro, cada vez mais articulado com redes de consumo simbólico.

O pintor repetiu o procedimento com o próprio Velázquez:

E com Goya:

(Parêntesis: René Magritte, por sua vez, fez uma apropriação surrealista do Balcão de Manet, em 1950, profetizando talvez a morte da pintura que estava prestes a acontecer:

)
Manet deu início ao projeto moderno de autonomia da arte, isto é, libertar a pintura do discurso idealista-acadêmico que pressupunha a busca da perfeição mimética. Do ponto de vista temático, a vida cotidiana contingente substituía a Antigüidade transcendente. A representação passava a ser menos importante em si que como pretexto para a investigação da linguagem pictórica, cada vez mais transparente na materialidade de seus procedimentos, o que pode ser ilustrado pelas diferentes árvores que Mondrian pintou entre 1910 e 1912:



Manet, de certa forma, inventou o quadro como objeto material, promovendo assim uma ruptura consciente entre tradição e modernidade. Esse passo inaugural desencadeou uma investigação que, radicalizada, resultaria em Picasso, na abstração e nas vanguardas artísticas do início do século passado.

O gesto de Manet foi criador. Bem diferente foi o gesto de Robert Rauschenberg, ao reproduzir imagens de Vênus de Velázques e Rubens numa série de quadros em silk-screen, cem anos depois. Manet produziu, autoralmente; Rauschenberg reproduziu, mecanicamente, substituindo o sujeito criador pelo confisco, pela citação estéril, pela repetição de imagens pré-existentes. Não por acaso, Rauschenber foi o primeiro artista a quem um crítico (Leo Steinberg, em Other Criteria) como pós-moderno. Pode-se dizer que Rauschenberg foi o Manet do pós-modernismo? Talvez, mas isso é bom?

"Number 5", de Pollock


Na minha opinião, Jackson Pollock foi o último artista a fazer Arte com A maiúsculo. Veio muita coisa importantíssima depois dele, mas já dentro de um novo paradigma, em que a arte virou outra coisa. Pollock também foi o último suspiro do modelo romântico do artista atormentado e de vida trágica. Pelo menos ele não teve tempo de sofrer com a decretação, pelo sistema da arte, da morte da pintura, após o fim do Expressionismo Abstrato, no começo da década de 60. Muita gente continuou pintando e pinta até hoje, é claro, mas definitivamente sem o mesmo status de antes. Criou-se até uma expressão para delimitar o período de vida da pintura: "De Altamira a Pollock", referência à caverna na Espanha onde foram descobertos registros pictóricos da Pré-História (abaixo). Ou seja, o homem teve necessidade de se expressar através da pintura de 16 mil anos atrás até, mais ou menos, 1965. Depois daí pintar é exercer uma atividade morta, vejam vocês.

Las Meninas, de Velázquez

Eu vejo mais arte neste quadro do que em toda a obra de Jeff Koons e Damien Hirst juntas. Mas devo estar equivocado, é claro. O problema deve ser meu.

O futuro à deriva

Esta semana encontrei num sebo do Centro um livro sensacional e há muito tempo fora de catálogo: Art without boundaries: 1950-1970 ("Arte sem fronteiras"), de Gerald Woods, Philip Thompson e John Williams, publicado pela Thames & Hudson em 1972. Trata-se de um balanço fartamente ilustrado de 20 anos que mudaram a arte, e dos seus artistas mais representativos. Foi efetivamente, um período de diluição de fronteiras nas artes visuais: pintura, escultura, cinema, tipografia e gravura passaram a conversar, e o mito da pintura como arte ideal e transcendente foi subtituído pela afirmação de que a arte, como todas as atividades humanas, está ligada a circunstâncias materiais e históricas. Foi nesse período em que a Arte perdeu seu A maiúsculo, para o bem e para o mal.


Ao lado de artistas cujas obras sobreviveram à prova do tempo (Lucio Fontana, David Hockney, Christo, Sol Lewitt etc), estão muitos outros que caíram no ostracismo e desapareceram do mercado, é verdade, mas isso é natural.

O que não parece natural é que as obras dos mais de 70 artistas reproduzidas ali, em 333 ilustrações, sejam perfeitamente intercambiáveis - em suas propostas, estilos, materiais - com as obras reunidas, 35 anos depois, na exposição Futuro do Presente, realizada pelo Itaú Cultural, em São Paulo. Não vou entrar em juízos de valor estético sobre esta mostra (há artistas ali que aprecio, aliás), porque o debate acabaria caindo numa questão de diferenças de gosto ou opinião. Mas me parece problemática essa semelhança, mesmo na sua aparente diversidade, de exposições separadas por um intervalo de décadas - o que reforça algumas hipóteses que tenho apresentado aqui: a arte contemporânea entrou numa egotrip pós-moderna auto-referencial e suicida da qual não consegue nem parece querer sair.


Uma das características do pós-modernismo é não se apresentar como um projeto, não se basear uma agenda nem se identificar com qualquer perspectiva que aponte para um futuro histórico diferente do presente (o que torna o título da exposição involuntariamente irônico). O pós-moderno simplesmente constata que a História acabou, que as grandes narrativas perderam a validade, e que só nos resta recombinar antigos vocabulários e gramáticas indefinidamente, tendo como pano de fundo o hiperconsumo neoliberal globalizado. A arte virou recapitulação associada a estratégias de marketing; em sua lenta e prolongada agonia, ela vive à base de aparelhos, ou melhor: o que vive é o seu simulacro, alimentado pelas redes de produção e consumo das quais se tornou refém.

O impasse pós-moderno fica explicitado no texto de apresentação dos curadores da exposição (texto que também é, por si só, um rearranjo de idéias convencionais, recorrentes em catálogos há 30 anos): "Pode-se dizer que não há um futuro único, mas infinitos. Tantos quanto obras de arte". À revista Veja, o curador Agnaldo Farias "conceituou": "Futuro do Presente parte da constatação de que todo trabalho do artista é uma afirmação, um caminho". Maneira tipicamente pós-moderna de não dizer coisa nenhuma. O pior é que nove de cada dez sites que citam a exposição simplesmente transcrevem o texto do release. Nos jornais e revistas impressos, a situação não é muito diferente: o papel da imprensa nas artes e na cultura em geral passou a ser o da divulgação pura e simples.

Ora, enxergar na variedade de recombinações de material e idéias velhas uma pluralidade criativa é não entender o que está acontecendo no mundo da arte. O que existe é uma pluralidade de repetições, releituras etc Futuro do presente reúne obras de 17 artistas brasileiros de diferentes gerações, entre eles os consagrados Cildo Meireles e Nelson Leirner. A obra de Leirner é uma banca de jornaleiro com exemplares do Jornal do Não Artista, que ele criou há mais de 30 anos para estimular o público a produzir suas próprias obras de arte. A de Meireles, Elemento Desaparecendo, Elemento Desaparecido, consiste de picolés de gelo que saem de um freezer na exposição em carrinhos de sorvete e são vendidos na rua a 25 centavos cada um (o artista espera vender 125 mil picolés até o fim da exposição). Já Paulo Bruscky sobrepõe a um eletroencefalograma que fez na década de 70 imagens da sua atividade cerebral hoje, em cores... Será uma alusão irônica à falta de atividade cerebral na arte cntemporânea?


Como cantava Cazuza, "eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades, o tempo não pára". Não pára, mas na arte passou a andar para trás.

Serviço:
Futuro do presente
Itaú Cultural
Avenida Paulista, 149.
Terça a sexta, 10h às 21h; sábado, domingo e feriados, 10h às 19h. Grátis. Até 10 de fevereiro de 2008.

Friday, December 28, 2007

Arte e neoliberalismo





Comecei a escrever sobre arte contemporânea neste blog, no início de novembro, motivado por intuições de diletante e por curiosidade jornalística. Graças às reações que chegaram e à coincidência de alguns fatores (crise da Bienal de S.Paulo, roubo no Masp, destaque dado pela mídia a obras e artistas excêntricos etc), percebi que esta é uma área praticamente abandonada pelo pensamento no Brasil. Quanto mais leio a respeito, mais verifico que, no nosso país, o terreno para a investigação da arte contemporânea em qualquer de seus aspectos (estético, mercadológico, econômico, simbólico) é fértil e inexplorado.

Mais importante do que especular sobre as razões deste bloqueio da reflexão é trazer temas para o debate, o que venho tentando fazer aqui. O curioso é que muitos artistas que inicialmente reagiram com indignação aos meus textos agora passaram a ignorá-los, o que é revelador: em vez do diálogo ou da contestação racional, tentam fazer de conta que o questionamento não existe. Não tem problema: não é para eles que escrevo, mas para todo mundo que, dentro ou fora do meio, tenha interesse em pensar e discutir livremente sobre arte. E tem bastante gente interessada.

Pois bem, um tema que irrita particularmente algumas pessoas é a articulação evidente da arte contemporânea com o capitalismo neoliberal mais descabelado. É compreensível a irritação: o artista gosta sempre de se colocar à esquerda, e qualquer raciocínio que demonstre que a vertente dominante da arte se vendeu às regras do mercado globalizado é recebida como ofensa pessoal. (aliás isso não acontece só nas artes plásticas: deve ter sido duro para muita gente ver William Burroughs aparecer num anúncio da Nike, alguns anos atrás).

Este é um assunto que, lá fora, vem gerando pesquisas e discussões interessantíssimas. Acabei de ler alguns livros reveladores, sobre os quais vou falar em futuros posts. Um deles, Privatização da cultura, já foi traduzido no Brasil (e solenemente ignorado por todos os jornais e revistas; não estou insinuando uma conspiração, acho que foi incompetência mesmo). Segue a sinopse:

Privatização da cultura - A intervenção corporativa nas artes, de Chin Tao Wu. Boitempo Editorial, 408 páginas, R$56)
O crescente papel das grandes empresas e seus interesses privados no mundo das artes na produção, circulação e nas instituições culturais no mundo, submetendo-a aos seus interesses, sob a ótica do marketing, do investimento em ativos ou da diplomacia de negócios. Este é o delicado e pouco explorado tema deste livro inovador da autora taiwanesa Chin-tao Wu, a partir de sua pesquisa na Universidade de Londres sobre as mudanças ocorridas nos sistemas de apoio às artes nos Estados Unidos e Reino Unidos no final do século XX. A obra analisa os efeitos das políticas para o setor dos governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, que estabeleceram marcos como a redução dos investimentos governamentais diretos e do controle público, e o crescimento dos incentivos fiscais, fundações privadas, do marketing cultural e dos institutos de empresas atuando no setor. A cultura deixa de ser uma área de enriquecimento do espírito, para se tornar mais um setor que tem que "se sustentar", como "negócios privados", mas que seguem, ainda que de forma às vezes dissimulada, subsidiados pelo poder público. A partir desta mudança na postura dos governos e sociedades em relação à influência do mundo dos negócios na arte, Chin-tao explora o peso das empresas e seus dirigentes nos conselhos curadores, inclusive de instituições públicas como a Tate Gallery, e as crescentes coleções privadas, em poder das próprias empresas. Como estas fazem da arte, também, seu negócio financeiro e de imagem. E como os próprios museus se tornam cada dia mais orientados e parecidos com empresas. Como no caso, estudado no livro, das "franquias" do museu Guggenheim, que hoje já possui até uma filial dentro de um cassino em Las Vegas. E quais são os efeitos disso na produção artística. Um debate essencial para a discussão de cultura no Brasil das leis de incentivo que promovem o controle privado com recursos públicos, após a falência da polêmica Brasilconnects, da imensa coleção privada de Edemar Cid Ferreira, e dos projetos imobiliários de um Museu de Artes de São Paulo em crise. O livro traz ainda um texto inédito sobre financiamento público à cultura, escrito por Danilo Santos de Miranda, Diretor do Departamento Regional do SESC no Estado de São Paulo.

A capa mostra Van Gogh segurando um cartão de crédito - imagem retirada de um anúncio do banco holandês ABN-AMRO.

É importante observar que este livro fala principalmente do aspecto privado do problema, isto é da entrada agressiva e estratégica das grandes corporações e outras instituições no circuito internacional da arte. Mas existe outra questão igualmente importante, sobretudo no Brasil, onde interesses públicos e privados muitas vezes se misturam: a participação do Estado no sistema da arte, suas políticas, estratégias e critérios de incentivo e reconhecimento, seus mecanismos de destinação de fundos públicos etc. O fato é que, como em tudo na vida, quem banca controla, seja o dinheiro público ou privado.

A ação e o impacto dessas duas frentes só têm feito crescer nas últimas décadas. Minha hipótese é que isso explica em parte a "domesticação" da produção artística contemporânea, isto é, a prevalência de artistas que produzem uma arte alienada da sociedade, da política e de qualquer questionamento real do sistema em que está inserida (mesmo quando se disfarça de instalações "subversivas"). Daí a força crescente das obras de matriz conceitual, valorizadas pelo sistema (e simbolicamente construídas pela publicidade) justamente por seu conteúdo inofensivo, ou por sua falta de conteúdo. Daí também a clara ambição comercial de artistas que se assumem como celebridades mediáticas e buscam abertamente o enriquecimento, como Takashi Murakami, Donald Judd e o Jeff Koons, que já vendeu uma obra por 5 milhões de dólares.

Não foi à toa que, quando esteve no Brasil em 2004, o artista americano Frank Stella declarou: "Para os artistas que estão começando hoje, é mais importante ter um bom agente do que talento. Aumentou muito o número dos que conseguem um lugar ao sol, mas são pouquíssimos, infelizmente, os que prestam". O que Stella veio fazer aqui? Entregar uma encomenda de 500 mil dólares ao banqueiro paulista Edemar Cid Ferreira, um painel de quase 15 metros de comprimento.

Desde a década de 80 - coincidentemente, ao mesmo tempo em que o neoliberalismo se instalava como ideologia homogênea em nível planetário - as grandes corporações passaram a ter influência ativa no mundo da arte, comprando e encomendando obras cada vez mais caras (um objeto de arte vendido por um preço exorbitante eleva o status do comprador e do artista), patrocinando programas de bolsas, abrindo galerias e espaços de exposição, integrando conselhos de instituições artísticas, etc. Tudo isso faz com que cada centavo aplicado em mecenato tenha um enorme retorno.

É claro que a injeção de capital no mundo da arte tem um lado bom, que é evidente. Seu lado ruim é menos visível: a subordinação da arte aos negócios; dominada pelas corporações, a arte tende a seguir cada vez mais a lógica do marketing, da publicidade, da celebridade, do espetáculo; a experiência estética é reduzida à moda e ao consumo passivo; mega-exposições se sucedem nos grandes museus como os blockbusters no cinema: sem reflexão crítica, sem hierarquia, sem contestação.

Numa sociedade que reduz toda a cultura ao entretenimento, a arte não poderia ficar de fora. Revela-se assim o caráter conservador e reacionário do pós-modernismo: à "tradição do novo" criada pelo Modernismo, ele contrapôs um movimento de dispersão, de reelaboração dócil de elementos do passado. Se as vanguardas modernas se organizavam contra o mercado oficial para assegurar a autonomia do artista, tudo o que o artista contemporâneo quer é ser assimilado pelo mercado.

Quanto aos artistas contemporâneos, são conduzidos pelo sistema a produzir desta ou daquela maneira - e por isso se tornam cada vez mais previsíveis e repetitivos, como ecos de si mesmos, com obras esvaziadas de conteúdo crítico verdadeiro. Se os grandes museus (Guggenheim, Tate) viraram griffes e abriram franquias mundo afora, é claro que têm o direito de selecionar obras coerentes com seus valores (ainda que radicais na aparência), ou de encomendar produções em série, para facilitar a identificação do autor (já que a originalidade, a autenticidade e a unicidade deixaram de ter sentido).

Não existe capitalista bonzinho: as corporações não entraram nesse negócio de maneira desinteressada, mas com objetivos variados - a melhoria da própria imagem, a atração de novos clientes, a associação a uma atividade culturalmente valorizada pela mídia, o contato com um público de elite, a fabricação do gosto; no final das contas, todas essas metas desembocam numa só: aumentar os lucros de forma predatória. Os museus, quase sempre endividados, são pressionados a "se vender melhor" e precisam correr atrás de grandes patrocínios - mas estes só aparecem para projetos glamurosos que chamem a atenção da mídia, não para o funcionamento regular da instituição, que se torna mais uma vítima da especulação cultural.

(Parêntesis: por que o Masp não tinha dinheiro para pagar a conta de luz e a segurança, mas era capaz de fazer grandes exposições? Boa parte da produção contemporânea brasileira está hoje sob a guarda de instituições financeiras privadas, como o Itaú Cultural. Os espaços culturais privados se multiplicam, enquanto os museus públicos passam por crises terríveis. Em março de 2006, o MASP já contabilizava uma dívida de R$ 4.000.000,00 com o INSS. Os acervos públicos são roubados ou literalmente apodrecem por falta de condições mínimas de conservação, enquanto as instituições financeiras privadas e as coleções particulares absorvem as mais importantes obras brasileiras do passado e do presente. Quem impede essas empresas de, amanhã ou depois, transformar esse patrimônio cultural em mercadoria, cobrando ingressos para a população ver algo que deveria ser de livre acesso?)

Seguindo essa lógica, o Guggenheim de Nova York não teve nenhuma vergonha de abrigar, em 2000, uma exposição sobre Giorgio Armani(abaixo), que coincidentemente tinha doado 15 milhões de dólares ao museu. Peças que estavam á venda nas lojas do estilista foram expostas! Na prática, Armani contratou o Gug como agência de publicidade. O mesmo museu abrigou mais tarde a exposição A Arte da Motocicleta, motivada por patrocínios, mais que pelo valor cultural do empreendimento. Outras griffes, como Balenciaga, Cartier, Hermès, YSL, Louis Vuitton e Hugo Boss também fizeram parcerias milionárias com museus. Hugo Boss cvriou um prêmio que já teve Tunga no júri, aliás. O artista Murakami, por sua vez, assinou malas para a Louis Vuitton.


O Guggenheim de Bilbao (acima), arquitetonicamente deslumbrante, merece um post à parte, mas foi um negócio da China para o museu e um desastre para os cofres públicos (como seria sua filial carioca, felizmente abortada a tempo), além de ter gerado muitas críticas locais por conta da seleção do acervo.

Só mais dois exemplos, tabagísticos, da delicadeza dessa relação: uma edição recente da Documenta de Kassel foi patrocinada por uma companhia alemã de cigarros, a Reemstma, que anunciava seus profutos no catálogo do evento; nos Estados Unidos, a gigante Philip Morris, uma das maiores patrocinadoras das artes no país, ameaçou fechar a torneira caso fossem aprovadas novas leis anti-fumo. No Brasil teria conseguido: bastaria comprar os Deputados no balcão de negócios chamado Brasília.

Nos Estados Unidos, onde os fundos públicos para a arte são cada vez menores (é claro, sobretudo depois de Reagan), na Inglaterra (desde a Era Thatcher) e na Alemanha pós-unificação, esse processo crescente de promiscuidade entre arte e capital tem sido alvo de ataques vigorosos por parte de alguns críticos, pela aliança de interesses entre parceiros incompatíveis. Isso envolve manipulação de cotações e práticas que em outros mercados seriam ilegais: por exemplo, grandes colecionadores americanos, de posse da informação de que um artista europeu será exposto numa galeria importante, correm para adquirir suas obras no país de origem, antes do efeito da exposição sobre os preços. Antes mesmo de chegar materialmente à América, a obra já estará circulando na rede especulativa imaterialmente, como signo.

Mas o mais grave não é isso: é o casamento da arte com sua inimiga histórica, a cultura do consumo; como dote, os artistas entregam sua autonomia. Como no Brasil, com exceções cada vez mais raras, os críticos abandonaram seu papel de mediadores e se limitam a copiar releases ou escrever prefácios de catálogos, é claro que esse debate sobre o uso corporativo ou estatal da arte ainda não aconteceu aqui. Ou, quando acontece, é rapidamente abafado.

Na última Bienal de São Paulo (talvez tenha sido mesmo a última), um grupo coletivo dinamarquês, Superflex, teve uma obra censurada. Guaraná Power, que críticava o monopólio do mercado e seu impacto nas comunidades amazônicas, já tinha sido exposta na Bienal de Veneza de 2003 (foto abaixo), mas foi vetada na última hora e acusada de "mau gosto" pela diretoria da Fundação Bienal. O Superflex usa a arte para discutir políticamente temas como liberdade de expressão, cidadania, sistema de patentes, marcas, direitos de propriedade. O grupo fabrica produtos que podem ser comprados em lojas na Europa, ao lado de seus similares comerciais. O Guaraná Power é uma bebida fabricada em parceria com uma cooperativa de trabalhadores rurais amazonenses, que recebe parte dos lucros obtidos com a venda. Nem é necessário dizer que uma empresa de refrigerantes fez pressão para que a Bienal vetasse a obra. Quem tiver interesse em saber mais visite os sites www.superflex.dk e www.guaranapower.org


É curioso observar como a nova ordem internacional gera algumas contradições: compreensivelmente, Chin Tao Wu, autora de Privatização da cultura, é uma teórica de esquerda, colaboradora da New Left Review. A Boitempo, que lançou o livro no Brasil, também é uma editora de esquerda. Nessa hora, os artistas deveriam achar a esquerda reacionária e ultrapassada, não? Mas algum artista contemporâneo se assumiria como sendo de direita, neoliberal, pró-"mão invisível do mercado" etc? Duvido muito. Como é comum no Brasil, quer-se o melhor de dois mundos: a atitude de esquerda e a prática de direita, e os benefícios de ambas. Para o sistema, o que importa é que as torneiras continuem abertas.

Thursday, December 27, 2007

Sobre Banksy


Tudo que tenho escrito aqui sobre arte contemporânea são hipóteses: não pretendo de forma alguma ser o dono da verdade. Mas este é um terreno em que a carência de debates é tão grande que qualquer reflexão minimamente inteligente provoca reações, por assim dizer, intensas. Leio com atenção todas as mensagens e comentários que chegam, procurando absorver o que eles têm de útil e ignorar o que eles têm de irrelevante (as distorções de leitura, os preconceitos, a visão maniqueísta do mundo, a patrulha ideológica etc).

Outra observação importante: falo aqui de artistas representativos de determinados fenômenos, mas sei perfeitamente que eles correspondem a uma fração mínima da classe; sei também que, excluídas exceções que se contam nos dedos, uma grande parcela dos artistas brasileiros vive precariamente, e uma parcela maior ainda nem consegue chegar na periferia do sistema da arte, expor em coletivas etc. Mas, para analisar a arte contemporânea, é preciso ir nos exemplos mais típicos do modelo vigente. Por isso é necessário, sim, desmontar fraudes e embustes que fazem sucesso, porque é ali que se manifestam os problemas mais graves do sistema. Nesse processo, são inevitáveis algumas simplificações.

Pois bem, recebi há pouco o comentário abaixo, relativo ao post Perguntas que não querem calar:

Concordo com quase tudo, logicamente.
Agora, colocar Rauschenberg e Bansky no caldeirão de frivolidades da arte contemporânea é um equívoco.
Faça uma visita ao site do Banksy para descobrir nele um dos melhores artistas da atualidade. Ele é tudo o que você aponta de positivo na arte: contestador, questionador, e criador de uma arte que instiga e se comunica.
Alarcão


Ainda que a obra escolhida para ilustrar o post em questão (Mona Simpson) seja uma bobagem, o Alarcão tem razão: Bansky tem trabalhos interessantes, que fogem ao padrão alienante de seus principais contemporâneos. Por outro lado, não sou quem quem coloca Banksy no caldeirão de frivolidades da arte, é esse caldeirão que puxa para si, com uma força magnética à qual é difícil resistir, qualquer artista que se destaque.

Ainda assim:

Banksy recupera o conteúdo social e político na arte e a prática da intervenção urbana: trabalhos seus, principalmente stencils, são facilmente encontrados nas ruas de Londres. Avesso à publicidade, não dá entrevistas (é claro que iso também funciona como um anti-marketing), e quase todas as suas obras têm um componente de contravenção (mais que de transgressão), de desprezo à autoridade e ao poder constituído. Sua mensagem é anti-guerra, anti-capitalismo e anti-instituições.


Sua tática é de guerrilha. Assim, por exemplo, ele trocou, em lojas de discos, 500 CDs de Paris Hilton por cópias adulteradas; e colocou na Disneylândia uma escultura representando um preso de Guantánamo, em tamanho natural. Em 2006, expôs um quadro que mostrava cantor Michael Jackson atraindo, com doces, crianças para uma casa na floresta.

Banksy não procura chocar, nem confundir, nem humilhar. Não encerra sua arte numa cápsula para iniciados. Por isso, ao contrário de muitos artistas contemporâneos, desperta em seus observadores não a perplexidade ou a rejeição, mas concordância e o sentimento de identidade - e, freqüentemente, o sorriso de cumplicidade.

Pela própria natureza de seu trabalho, Banksy escapa da alucinação especulativa do sistema da arte: como fixar um preço para um desenho feito num muro público, por exemplo? Aliás, recentemente, um painel de sete metros de comprimento pintado pelo artista num bairro operário de Bristol foi coberto de tinta por funcionários contratados pela prefeitura para apagar pichações. Confundiram a obra com vandalismo.

É claro que ele também vende bem, mas são valores modestos perto das obras de Damien Hirst e outras estrelas: por exemplo, em fevereiro passado uma desenho de aposentados jogando boliche com bombas foi comprada 200 mil dólares, m as é possível comprar telas suas por 25 mil libras.

No começo deste mês Banksy instalou, junto a uma barreira israelense erguida na Cisjordânia, uma exposição coleticva com artistas palestinos, com o título Santa'a Ghetto ("O Gueto do Papai Noel"), chamando a atenção, em suas próprias palavras (www.banksy.co.uk), para "uma parte do mundo destruída pela pobreza e conflitos". A exposição atraiu turistas (e receita) para a comunidade local. Em 2005, Banksy já tinha feito um desenho na barreira israelense - um buraco na parede com uma paisagem serena ao fundo.

Seguem mais algumas obras e dois vídeos pescados no Youtube.



Wednesday, December 26, 2007

Grandes momentos da arte pós-moderna: Jeff Koons


Estabelecidas algumas hipóteses sobre a crise da arte contemporânea, sobre as quais reconheço que não existe qualquer consenso (nem poderia, já que muitos negam até mesmo que a arte esteja em crise), passo a fazer breves comentários sobre artistas representativos do pós-modernismo.

Como se sabe, o artista contemporâneo precisa ser uma estrela: a fama é um índice de seu valor. Tanto quanto a sua produção artística propriamente dita, importa o seu desempenho como figura pública capaz de chamar a atenção: o artista como performer (também nisso, aliás, o francês Yves Klein foi um precursor). O mundo da arte é um palco sempre à cata de personagens interessantes.

Foi assim que, para se manter em evidência num mercado cada vez mais competitivo, muitos artistas optaram por chamar a atenção da mídia com jogadas de marketing periódicas. Foi o caso do americano Jeff Koons (1955- ), que chegou ao cúmulo de se casar com a atriz pornô e então deputada Cicciolina, em 1991, num evento que recebeu grande publicidade - e virou tema de uma exposição em Londres. Tudo pela arte.


Como artista mediático, Koons é uma ilustração viva de um dos aforismas de Guy Debord em A sociedade do espetáculo: "O espetáculo (...) nada mais diz senão que "o que aparece é bom, o que é bom aparece. A atitude que ele exige por princípio é essa aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência".

As mais famosas (ou seja, as melhores) de Koons são:

- Puppy, um cachorro feito de flores, de 16 metros de altura. A escultura está no Museu Guggenheim de Bilbao.


- Rabbit, um coelho inflável feito de plástico prateado espelhado.


- Objetos de porcelana: Koons encomendava pequenos objetos de artesanato - estatuetas religiosas, animais fofinhos(cachorrinhos, ursinhos) e ícones populares (Michael Jackson, Popeye, Pantera Cor-de-Rosa etc). Apropriava-se assim de ícones da cultura de massa, deslocando-os de seu contexto. Sobre a obra abaixo, Koons declarou: "Pink Panther is about masturbation. I don’t know what she would be doing with the Pink Panther other than taking it home to masturbate with". (Pensando bem, acho que todas as obras de Koons são about masturbation...)


- Made in Heaven, a série de fotografias e esculturas representando atos sexuais explícitos, que incluem cenas de sua vida conjugal com Cicciolina, com títulos sutis como "Jeff por cima”, "Chupeta", “Ejaculação”, “Jeff chupando Ilona” etc. A idéia era discutir a validade da pornografia como arte. Aham. Podem chamar isso de releitura do kitsch etc. Para mim são imagens de um mau gosto extremo. Ponto.

Koons é a encarnação do pós-moderno em vários aspectos:

- a mão do artista está ausente da obra, já que uma equipe se encarrega de produzi-la (foi o caso das pinturas que Koons apresentou na 25a Bienal de São Paulo, feitas por profissionais contratados). Seu ateliê em Nova York é uma verdadeira fábrica, com cerca de 50 assistentes, que dão aterialidade às pinturas e esculturas que ele elabora em compjutador, pinturas e esculturas. Da arte conceitual Koons herdou o princípio de que o artista concebe a obra mas não necessariamente participa da sua realização.
- ele usa a arte para falar da própria arte (masturbation);
- busca inspiração em elementos cotidianos e da cultura pop: aspiradores de pó, panelas de pressão, flores de plástico, bolas de basquete, anúncios de cigarro e bebidas etc; a herança maldita dos ready-mades de Duchamp.
- exige, em alguns casos, a participação do espectador para dar significado à obra;
- ocupa espaços não-convencionais (mas acaba indo para os museus mais importantes);
- transforma a si mesmo em personagem/objeto artístico;
- supostamente questiona os valores e dogmas do mercado - mas não se incomoda de vender suas obras por pequenas fortunas. Em 2001, uma escultura em cerâmica do cantor Michael Jackson e de seu macaco Bubbles foi vendida por 5,6 milhões de dólares. E a obra abaixo, Blue diamond, por exemplo, tem dois metros e meio de altura e foi avaliada em 20 milhões de dólares, pela casa de leilões Christie's. E nem é um diamante verdadeiro...


De maio a setembro de 2008, o Museu de Arte Contemporânea de Chicago fará uma grande retrospectiva de Jeff Koons, e sua influência é visível em novas estrelas do mercado, como Damien Hirst e Andreas Gursky. É toda uma linhagem de artistas que torna evidente que uma parcela importante da arte contemporânea é obra de moedeiros falsos, de prostitutos da banalidade. Aliás, antes de enveredar pelas artes pláticas, Koons corretor de valores e trabalhou em Wall Street - uma experiência perfeita para o artista contemporâneo.

É assim que o crítico James Gardner se refere a Koons no livro Cultura ou lixo?: "O último, mas também o mais insignificante. Num mundo perfeito, nem falaríamos dele. Veríamos a sua arte como uma brincadeira marota que, embora faça rir, está condenada ao esquecimento. Como Koons continua sendo levado a sério por gente que se leva mais a sério ainda, é impossível ignorá-lo numa discussão sobre arte contemporânea. Pelo que sei, ele jamais fez uma obra de arte que fosse formal ou espiritualmente ambiciosa. Aliás, ele nunca fez uma obra de arte"

Quem tiver interesse em conhecer mais sobre a obra de Koons, clique no site oficial do artista: www.jeffkoons.com.

Padilha e Meirelles



Não pretendia voltar a esse assunto, mas saiu na coluna do Ancelmo Gois, no jornal O Globo de hoje:


Padilha e Meirelles
A revista "Bravo" reuniu Fernando Meirelles e José Padilha, os supercineastas, para uma entrevista que publica em janeiro.
Os dois, que fizeram filmes sobre o tráfico ("Cidade de Deus" e "Tropa de Elite"), metem o malho no consumo de drogas, inclusive de maconha, sob o argumento de que "estimula o tráfico".

Padilha diz: "Não há como escapar. No Brasil, o comprador de drogas está dando dinheiro para um grupo armado que controla uma comunidade carente. O cara que consome drogas sabe disso".
O diretor defende "Tropa": "O filme mostra essa posição com absoluta clareza".

Meirelles diz: "Fico quase repugnado, irritado mesmo, quando vejo alguém consumindo maconha, porque o cara está bancando o tráfico, não adianta dizer que não está".
Faz sentido.


É a posição que venho defendendo há tempos. Parabéns aos dois cineastas por desafiarem a patrulha ideológica que se recusa a enxergar o óbvio. Quando as pessoas vão acordar?

Sunday, December 23, 2007

Perguntas que não querem calar


Onde está o artista? Onde está a arte? Perguntas básicas como estas são feitas hoje apenas pelos freqüentadores eventuais de exposições de artes plásticas, que têm dificuldade para apreender o que vêem, já que não são mais feitas pelos críticos nem pelos próprios artistas. As exposições viraram fenômenos sociais e econômicos, em que na prática pouco importa o que está sendo exposto: ao artista basta entrar com a assinatura: ele e a obra se tornaram meros pretextos para o funcionamento da rede. O conteúdo (ou a mensagem que circula na rede) é menos importante do que a visibilidade do evento em si. Daí a auto-atribuição crescente, por parte de curadores e outros profissionais da arte, de uma função artística, como se também eles fosem criadores. Daqui a pouco até os patrocinadores vão reivindicar esse papel, já que também participam diretamente da "produção" da arte. E do consumo, já que esta arte, desligada do mundo, se destina à própria rede que a fabrica. Processo de autoconsumo: os profissionais que fazem o sistema girar fabricam os artistas e os vendem não ao público externo, mas a outros profissionais da rede, num mecanismo circular.

O visitante esporádico de uma Bienal, o leigo que freqüenta galerias, tende em muitos casos a questionar a legitimidade do que vê, ou mesmo a se sentir enganado e até ofendido. Este visitante não é um idiota: ele tem esse direito e, de certa forma, está certo - não por se tratarem de obras que exijam um repertório prévio de informações para ser fruída, pois isso sempre fez parte da relação entre obra de arte e público: para se gostar de um quarteto da fase final de Beethoven, por exemplo, é preciso um "ouvido informado"; mas porque estão lhe vendendo como novidade reelaborações estéreis, obtusas, refratárias e opacas de modelos ultrapassados já há 30 ou 40 anos. E isto, vender gato por lebre, é verdadeiramente ofensivo.

Já usei muitas vezes aqui a expressão "fim da arte", mas é importante sublinhar que ela corresponde a um conceito ambíguo e enganoso. Como ferramenta de análise, é um desastre. Para teóricos como Donald Kuspit e Robert Hughes, a arte efetivamente está morrendo de inanição, ou seja, eles empregam a expressão de forma negativa; mas o conservadorismo com que rejeitam em bloco a arte contemporânea se torna um pretexto para rejeitar o que eles têm de relevante a dizer. Já Arthur Danto e Hans Belting, que de certa forma estabeleceram o pano de fundo teórico em que se desenvolve o debate, o "fim da arte" significa a superação da história da arte, isto é, o fato de a arte hoje já não se filiar a qualquer linhagem ou tradição, de se ter tornado saudavelmente plural e heterogêna.

Dos dois lados, a idéia de morte da arte é imobilizadora e conformista, e não é preciso ir muito fundo para perceber que essa tese é prima-irmã da teoria do fim da História, nas ciências sociais: subliminarmente se tenta convencer as pessoas de que já não cabe mais lutar por um mundo e por uma arte melhores, e de que a reelaboração permanente de idéias velhas é o horizonte insuperável da pós-modernidade. Não existe mais nenhum projeto coletivo aglutinante, e a produção artística deve celebrar esse atomismo. Não é à toa que o crítico Frederic Jameson identificou o pós-moderno como a lógica cultural do capitalismo tardio.

No tempo das vanguardas européias, os movimentos eram vibrantes, cada um deles trazendo uma mensagem sócio-política, uma promessa de transformação radical da vida. Hoje prevalecem a apatia e o conformismo, mesmo quando o discurso é de contestação e rebeldia - discurso transformado ele próprio em mercadoria. É claro que isso vem acompanhado por um processo de despolitização da vida, de alienação ou, para usar um jargão marxista fora de moda, de reificação: por meio da associação de valores simbólicos e abstratos a bens materiais (aí incluídos os objetos de arte), incute-se nas pessoas o sentimento de que as relações sociais são imutáveis, uma vez que chegaram à sua forma final.

Ora, muitas tolices foram abrigadas pelos guarda-chuvas dos diversos "ismos" dos anos 60 e 70, quando se chegou ao limite da auto-mutilação do artista (Rudolf Schwarzkogler morreu em 1969 após ter fatiado o próprio pênis num ato performático), mas pelo menos naquela época os artistas se posicionavam criticamente em relação ao mundo em que viviam, sendo que alguns movimentos iam além, combinando explicitamente preocupações estéticas e políticas - casos do grupo CoBrA e, principalmente, da Internacional Situacionista, comandada por Guy Debord (foto), de quem recomendo muitíssimo a leitura de A sociedade do espetáculo, escrito há 40 anos mais cada vez mais atual.

Debord acreditava, por exemplo, que as rotinas e convenções da vida cotidiana tal como organizada pelo sistema capitalista alienavam e esmagavam o indivíduo. Questionava assim as supostas liberdades do capitalismo, que não seriam mais que projeções "espetaculares" de uma ideologia de controle social. Num determinado momento, quando Debord percebeu que os movimentos artísticos, com motivações cada vez mais comerciais, em vez de darem respostas estéticas aos desafios colocados pela/para a sociedade, tinham se tornado uma ramificação desse espetáculo total, ele dissociou o Situacionismo do debate sobre a arte. Ele percebeu que os mesmos artistas que diziam rejeitar o mercado vendiam suas obras, muitas vezes esdrúxulas, por preços exorbitantes.

Ainda assim, mesmo um artista hoje irrelevante como o francês Daniel Buren, que basicamente pintava listras (foto), protestou em 1968 contra a crescente ocupação/reordenação do espaço público por imagens da publicidade e da cultura de massa, de forma a promover o consumo passivo de bens materiais ou simbólicos por parte da população.

Ironicamente, a mesma indústria cultural seria exaltada em Nova York pela Pop Art, o movimento mais importante daquele período (do ponto de vista sociológico, mais que estético: a partir dele o artista se tornou inevitavelmente um homem de negócios, ou uma peça na engrenagem especulativa do mercado).

Esta foi a grande armadilha do pós-modernismo globalizado, que no fim das contas se revelou extremamente conservador, no mau sentido. Relativizando todas as coisas, ele eliminou toda hierarquia baseada em qualidade, mérito e valor: por exemplo, ao afirmar que não existe uma cultura superior a outra, mas culturas diferentes, e todas ligadas a mercados consumidores potenciais - assim, Beethoven e Ivete Sangallo se equivalem etc. Na arte, não existe obra superior que outra, nem muito menos progresso, ou a possibilidade de criar/fazer arte melhor que a dos predecessores. Existem simplesmente artistas que se articulam com o sistema de produção e consumo e outros que ficam de fora da rede.


Não é à toa que a influência de Marcel Duchamp aumenta com o passar dos anos: com ele a arte deixou de ser uma questão de conteúdos (cores, formas, estilos, habilidades, leituras da realidade) para ser uma questão de atitudes. Por volta dos anos 70, com a passagem do regime moderno ao pós-moderno, ele já tinha substituído Picasso no posto de artista mais importante do século 20 para a prática contemporânea. Os critérios-chave da estética moderna, do novo, da ruptura e da vanguarda, são rejeitados. Não é mais preciso inovar nem ser original: a repetição de formas passadas não é somente tolerada, é estimulada. O artista não cria mais, ele recicla ou simplesmente desloca material pré-existente. [Atenção: Não estou dizendo que todos os artistas fazem isso, é claro; estou descrevendo a grade pós-moderna na qual se encaixa hoje a produção artística, plural na superfície]

Veja-se o caso da artista Sherrie Levine, que simplesmente reproduz com sutis modificações uma pintura de Van Gogh, uma fotografia de Walker Evans ou um ready-made de Duchamp e assina as obras como sendo suas. Sim, leitor(a), o que você está vendo aqui ao lado não é um Van Gogh, é uma Levine e vale uma fortuna. E o pior é que o sistema bate palmas para esse parasitismo, e sempre existe uma maneira de justificar criticamente qualquer coisa: no caso de Levine, fala-se que ela trabalha com módulos de espelhamento e desmultiplicação tomados como unidades de medida da influência de uma obra de arte, num jogo de clonagem e replicação que faz o objeto artístico se desdobrar em reafirmações e releituras de si mesmo. Ora, vamos falar seriamente: se isso não é um embuste, não existem embustes na arte. Dou muito mais valor a um artista popular da Feira de São Cristóvão que às cópias pós-modernas de Bildo e Levine.

(A compulsão de Sherrie Levine para a cópia e a falsificação é tão grande que ela escreveu um texto sobre si mesma plagiando palavra por palavra um trecho do romance Desidéria, de Alberto Moravia. E um de seus trabalhos mais famosos é a série de fotografias que ela fez... de fotografias de Edward Weston. É como fotografar uma foto de Cartier-Bresson e reivindicar a autoria; o que me espanta é que muita gente leve isso a sério).

Levine e Mike Bildo (que reproduz uma tela de Andy Warhol e intitula a obra No-Warhol) são exemplos que podem ser vistos como caricatos, mas que no fundo levam às últimas conseqüências um dos princípios do pós-modernismo: a substituição das técnicas de produção modernas pelas técnicas de reprodução pós-modernas. O artista troca a criação por uma atitude aberta de citação, e confisco, comprometendo os valores de autenticidade e originalidade. Artista-chave desse processo é o americano Robert Rauschenberg, com suas pinturas em silkscreen do começo dos anos 60, que reproduziam imagens de livros e revistas, fotografias, telas clássicas etc.


Se um dos efeitos da globalização é a homogeneização das relações de produção e dos hábitos de consumo, na produção artística ela se manifesta pela abolição (ou pela mistura) de todos os estilos históricos, em produtos sem estilo definido. A arte deixou de ser algo indissociável de seu momento histórico específico. No novo regime da arte, se esses produtos valem alguma coisa ou não, é o mercado que vai decidir (não apenas o mercado no sentido de oferta e procura empurrando os preços para cima ou para baixo, mas o mercado simbólico das redes, onde os laços de relacionamento são muito mais decisivos para o êxito que o conteúdo das obras). É a entropia, que leva á crise ética e estética da arte.

Como chegamos a esse ponto? Tudo começou quando o sistema da arte deu uma volta nos artistas modernos que contestavam o mercado como motor da existência. Suas experimentações foram esvaziadas de conteúdo social e político e inspiraram outras, puramente formalistas, realizadas por artistas loucos pela fama. Quando o primeiro prato vazio foi colado numa tela e exposto numa galeria, e o sistema legitimou a inteligência espantosa do artista que criou uma metáfora da fome (e instigou no espectador uma "fome de arte"), abriu-se a porteira.

A partir daí, o jovem artista não precisa sequer ser capaz de desenhar uma bicicleta, muito menos ter qualquer conhecimento rudimentar de perspectiva: basta colocar uma tartaruga do lado de um aspirador de pó e de um rolo de papel higiênico, e está criada uma instalação. O artista se intitula contemporâneo e olha com desdém quem faz pintura, mesmo não-figurativa, endeusa Marcel Duchamp e fala com ironia complacente de Pablo Picasso. Suas instalações são efêmeras, têm "especificidade de lugar", mas o que ele mais quer é vendê-las ou vê-las acolhidas num museu, lo que às vezes acontece. De agora em diante, tudo que ele fizer será arte, desde que ele assim o afirme.

(Estou exagerando, é claro: o outro lado da moeda é que, sendo um sistema fechado, a arte limita o acesso ao reconhecimento público. Não se exigem mais conhecimentos técnicos nem requisitos formais, mas isso deixa o aspirante sujeito ao arbítrio e às preferências subjetivas das autoridades institucionais. Como não existem mais critérios objetivos de avaliação os diretores de museu, curadores e donos de galeria usam e abusam de seu poder legitimador - poder que é diretamente proporcional ao prestígio das suas instituições. Por tudo isso, o processo de reconhecimento artístico se tornou ainda mas hierarquizado, concêntrico e metropolitano do que era quando existiam "barreiras de entrada" mais claras e objetivas.)

Quando escrevo que hoje qualquer coisa pode ser designada como arte, não estou sendo irônico: este é um princípio assumido por diversos teóricos da arte contemporânea, mesmo quando querem exaltá-la. Tudo isso facilitou, naturalmente, a predominância das instalações e das obras de matriz conceitual, que não estão ligadas ao valor estético, mas são auto-referentes: seu diálogo não é com o público nem com a sociedade, mas com o próprio vocabulário artístico; são obras que evitam o contato direto com o espectador, se escondendo atrás da necessidade de uma elaboração discursiva intermediária, da qual se servem para aparentar profundidade quando na verdade são frívolas e rasas. Espalham-se maçãs numa galeria, e se alguém contesta é porque não entendeu: vem uma resposta-explicação da obra que ocupa páginas inteiras. Ora, por que não escrever logo um livro? Como ações no mercado financeiro, obras assim dependem da crença, involuntária ou planejada, de que valem alguma coisa; e como produtores e consumidores integram a mesma rede circular, todos se interessam em alimentar essa crença.

Tudo isso é conseqüência do assassinato da arte como um objeto tangível e contemplável, dotado de determinadas especificidades e qualidades sensíveis. Em seu lugar entrou a arte como produto de um discurso autorizado que a afirme, isto é, o discurso do sistema - os grandes marchands, museus, curadores, colecionadores, que tomam suas decisões independentemente da própria realidade do objeto. Idéias pobres e soluções rudimentares são vendidas ao público como rigor conceitual e economia de linguagem. Sem reflexão formal sobre o mundo, sem provocar o pensamento, sem questionar nada, a arte caminha para ser mais uma variedade da indústria do entretenimento. É por isso que as novas gerações, que crescem acreditando que chutar uma bola numa grade de ferro é arte, tendem a desprezar e mesmo a odiar qualquer arte séria.

O crítico tem pouco a fazer nesse contexto, e por isso mesmo foi sutilmente expelido dos jornais e revistas; os que resistem foram cooptados, evitando qualquer julgamento que não seja elogioso, ou viraram escrevedores de prefácios de catálogos. O público, num sentido amplo, também está sendo pouco a pouco dispensado do jogo, já que quem importa mesmo são os players que movimentam a máquina, isto é, os colecionadores, compradores regulares, galeristas, marchands. Quem quiser um entretenimento espiritualmente elevado que procure uma igreja ou vá ler Hamlet, como o Ferreira Gullar; quando vai a galerias e museus, o leigo interessado em arte sente falta de bulas ou manuais de instruções.

Isso funciona e se reproduz numa atmosfera geral de crise institucional (museus e escolas de arte endividados, Bienal vazia, Masp assaltado são apenas os sintomas mais evidentes). Mas duvido que exista consenso, entre os próprios artistas que se sentem ofendidos quando são questionados, sobre pergunts básicas como as propostas acima. E outras, como: A arte deve estar sujeita ao julgamento intelectual? E ao julgamento moral? A arte deve ter regras ou o artista é um grande demiurgo, que tem o poder de tornar qualquer coisa arte pela mera afirmação de que é arte? A arte tem o dever de se comunicar universalmente ou é mesmo coisa para iniciados? A arte ainda tem alguma coisa a ver com o belo, o gosto, o único, a autonomia? Ou sua realidade se constitui fora dos limites da obra? A arte deve se assumir como uma mercadoria como outra qualquer ou deve ser de alguma forma protegida do capitalismo selvagem?

Provavelmente cada artista vai responder de uma forma diferente, mas se engana quem pensa que isso é bom: é preciso haver um consenso mínimo sobre a natureza e a função da arte, do que ela é ou deve ser. Em outras palavras, é preciso haver formas e moldes narrativos que organizem a produção artística e estabeleçam sua mediação com o público. Se não, o mundo da arte entra num vale-tudo suicida, como está acontecendo hoje: o sistema não reconhece nenhuma narrativa ordenadora, apenas o mercado e suas redes. Ora, da mesma forma que no passado as narrativas da arte mimética e da arte modernista se esgotaram, a não-narrativa da arte contemporânea já se esgotou. É preciso dar um salto para a frente, assumir novos desafios e compromissos, porque a alternativa é a morte.

De quem depende esse salto? Dos artistas, é claro, mas também de gente que queira pensar e se manifestar de forma independente sobre a arte. O sistema, para funcionar, depende de um pacto que se vem mantendo por inércia, pela fragilidade dos críticos, pela indiferença de um público cada vez mais distanciado, pela arrogância de muitos curadores e marchands. Mas a incompetência dos gestores desse sistema, cada vez mais evidente, pode servir de pretexto para uma mudança, para uma revisão dos papéis, dos códigos, das relações de poder, dos mecanismos de produção e circulação.

Na ilustração do alto, Mona Simpson, de Bansky, artista valorizadíssimo no mercado internacional. Entenderam? é uma mistura de Mona Lisa com a Sra. Simpson. Dããããã...