Thursday, February 28, 2008

Jackie Kennedy por Andy Warhol


Jackie, Andy Warhol, 1964

O profeta Warhol

"I like money on the wall. Say you were going to buy a $200,000 painting. I think you should take that money, tie it up and hang it on the wall. Then when someone visited you, the first thing they would see is the money on the wall."
Andy Warhol

192 One Dollar Bills, 1962 /Andy Warhol

Tuesday, February 26, 2008

Pluralismo Capitalista


Se me permitem uma generalização, o artista contemporâneo lembra o malandro do samba de Chico Buarque, o "malandro regular, profissional, com aparato de malandro oficial,
com retrato na coluna social, com contrato e capital, que nunca se dá mal". Pois esse artista também trocou a deliberada posição de marginalidade em relação ao poder e ao mercado para se unir a eles e usufruir de suas benesses. É claro que ainda existem malandros e artistas "pra valer", mas estes dificilmente aparecerão nas colunas dos jornais.

(A idéia me ocorreu lendo um artigo no GLOBO sobre a ARCO 2008, que termina exaltando a generosidade do Governo brasileiro - apesar da frustração nas vendas, da má disposição das galerias na feira etc)

A oficialização da arte não se dá mais através da imposição, pelas esferas do poder, de um estilo único, hegemônico, como no Realismo Socialista, mas por meio da assimilação pelo sistema das mais diversas linguagens, numa espécie de "Pluralismo Capitalista". Daí a desconcertante profusão de estilos, formas, práticas e programas, a ausência de limites em relação ao que pode ser considerado material da arte e a negação de qualquer hierarquia de valor associada ao virtuosismo técnico e ao métier do artista como artesão - todas características marcantes do estado da arte hoje, no Brasil e no mundo.

Mas esta pluralidade é ilusória: tudo compartilha de um mesmo "estilo internacional", numa world art sob medida para os interesses do mercado globalizado. Por isso, paradoxalmente, é possível identificar, na diversidade dessa produção, elementos comuns, que dão a todas uma mesma "cara": cara de arte contemporânea. Alguns desses elementos são a secura, a ironia, a negação da idéia da arte como expressiva de algo "emocional".

As sementes desta situação foram lançadas já nos anos 60, mas com um espírito completamente diferente, na época: um espírito de experimentação e reflexão crítica, de busca de novos caminhos que levassem adiante à "tradição do novo" moderna, mesmo quando os artistas se contrapunham à codificação formalista/prescritiva dessa tradição, tal como formulada por Clement Greenberg, Michael Fried e outros teóricos.
Em algum momento esse espírito se perdeu e foi aproriado pelo sistema contra o qual se afirmava. Todas as manifestações que criticavam a arte como mercadoria, ironicamente, foram assimiladas e transformadas elas próprias em novas mercadorias.

"Em arte, nada pode ser entendido sem discutir e, muito menos, sem pensar", escreveu em 1961 o filósofo Theodor Adorno. Nas duas décadas seguintes, esta dimensão intelectual e sociológica da arte prevaleceu sobre sua dimensão pástica, "retiniana". O significado foi deslocado do objeto para o contexto, e o artista passou a depender cada vez mais de um discurso que envelopasse sua obra - ou, no limite, que a substituísse: no sentido estrito, a premissa da arte conceitual era que a obra estava na idéia, e que sua realização era um detalhe às vezes dispensável; no sentido mais amplo, estabeleceu-se uma atmosfera "conceitualista", que se espraiou por todos os domínios da arte - e que até hoje se faz presente, mesmo em obras aparentemente muito diversas.

De qualquer forma, quando se olha retrospectivamente a produção dos anos 60 ou 70, goste-se ou não, é inevitável a sensação de que algo verdadeiramente novo estava acontecendo ali, algo que dizia respeito não apenas à estética, mas à redefinição radical da relação entre a arte e a vida cotidiana, ao exame desafiador dos próprios alicerces da sociedade. Não por acaso, o contexto era o da contracultura, das revoltas edtudantis, do clima de efervescente descontrole do presente e de decomposição das certezas em relação ao futuro. Naquele momento faziam todo sentido os happenings de Allan Krapow e o bode empalhado com um pneu de Robert Rauschenberg (abaixo), dois artistas a quem não se pode negar importância histórica, goste-se ou não de sua sobras.

Com o crescimento meteórico do mercado da arte nos anos 80, coincidente com a guinada à direita na política internacional (Reagan, Thatcher, crise e colapso do comunismo etc), a situação mudou muito. Uma nova ordem passou a imperar também no mundo da arte, submetido a uma implacável dinâmica especulativa. Gestos de rebeldia foram recodificados e transformados em procedimentos de marketing, ao mesmo tempo em que se recuperava o mito do artista como indivíduo iluminado - mas agora como ocupante de um "papel", no sentido teatral do termo, um "inocente útil" para alimentar a dinâmica do mercado.

Integrada a uma dinãmica de show-business, aproximada do universo da moda, a arte passou a movimentar dinheiro de verdade, e coerentemente excluiu qualquer hipótese de descontrole: todos os agentes do sistema contribuem para o seu desempenho lucrativo, do grande colecionador ao crítico cooptado, do curador ao galerista, do artista bem-sucedido ao artista desconhecido que sonha com a fama. Parece não existir mais um "lado de fora", de onde se possa produzir e ao mesmo tempo contestar: o que não for assimilável é esmagado, não pela negação, mas pelo silêncio.

Ao decreto do fim da História correspondeu o decreto do fim da História da Arte. É impressionante como mesmo gente bem informada não percebe que um e outro se baseiam numa idéia extremamente reacionária, a de que "batemos no teto", alcançamos a linha de chegada: fim da hipótese de qualquer utopia transformadora ou verdadeiramente inovadora. Da mesma forma que podemos sonhar, no máximo, com um aprimoramento dos mecanismos do neoliberalismo globalizado hegemônico, na arte os artistas se contentam em olhar para trás, recombinando linguagens e modelos do passado, produzindo uma arte domesticada e inofensiva. Ou, pior ainda, uma arte que exalta abertamente o status quo, os valores impostos pela mídia, o consumo e a mercantilização pré-programada de todas as relações humanas, mesmo quando usa o figurino da rebeldia.

Não dá para ser rebelde sendo maioria, sendo integrado ao sistema e beneficiando-se dele, do seu mercado e de suas instituições. O problema não é apresentar tubarões em formol, corações de alúmínio (obra de Jeff Koons, acima) ou maçãs espalhadas sobre uma mesa: o problema é este tipo de produção se apresentar/ser apresentado como cultura dominante, com as bênçãos dos grandes colecionadores, das corporações e até do Estado.

Sunday, February 24, 2008

Arte de minorias

É inegável que, nos últimos 30 anos, minorias que não tinham voz no sistema da arte conquistaram espaço no mercado e nas instituições, de forma tal que hoje existe lugar para todos no chamado pluralismo pós-moderno. Mais ainda, o sistema parece estimular as manifestações artísticas associadas a identidades minoritárias, sobretudo as de natureza étnica e sexual, o que pode parecer surpreendente.

Mas o resultado disso é uma fragmentação domesticada, na qual é possível enxergar a aplicaão de uma lógica de cotas ao mundo da arte: cada subcultura opera no seu nicho, e todas dão sua pequena contribuição ao funcionamento do sistema como um todo. Este sistema, inteligentíssimo, percebeu que absorver e comercializar esses nichos era muito mais lucrativo que ignorá-los ou reprimi-los. Aboliu-se assim o abismo que separava um "centro" poderoso e as minorias que o contestavam: eles se deram as mãos, com a bênção do mercado.

Assim, por exemplo, hoje são inúmeros os/as artistas de sucesso que não estão interessados em questões formais ou estéticas, mas simplesmente em afirmar sua identidade homossexual. Depois de décadas de exclusão e silêncio, eles agora vão á forra contra o modelo predominantemente masculino e heterossexual do Modernismo.

É claro que isso dá margem a inúmeros mal-entendidos, distorções e imposturas. Um caso revelador é o do grupo Guerrilla Girls, que no final dos anos 80 lançou uma cruzada contra o desequilíbrio entre homens e mulheres na arte. As integrantes eram ativistas feministas de Nova York, mas também apoiavam a causa dos artistas negros, ou melhor, afro-americanos. Aparentemente se pretendia reparar essa injustiça por decreto, garantindo igualdade de acesso e espaço nos museus e galerias a todas as manifestações artísticas de minorias.

Mas qual era a arte das Guerrilla Girls, que, para chamar a atenção, usavam máscaras de gorila? Basicamente, panfletos, como estes dois:


O primeiro protesta contra a predominância de nus femininos sobre os masculinos na História da Arte; o segundo argumenta que o valor pago por um quadro de Jasper Johns daria para comprar obras de 70 mulheres e negros artistas.

São duas bobagens, evidentemente, e é impressionante como propostas assim ganham espaço e reconhecimento no sistema da arte. É evidente que nus femininos foram muto mais representados que nus masculinos, e daí? E é evidente que um quadro de Jasper Johns pode valer cen vezes mais que obras de artistas menores - não por serem negros ou mulheres, mas por serem, justamente, menores. Basta citar o caso de Basquiat (na foto abaixo, com Andy Warhol), artista negro que hoje está entre os mais valorizados do mundo - mais uma vez, não por ser negro, mas por ser um artista maior.

Parece que, no mundo ideal das Guerrilla Girls, um sistema de cotas garantiria às mulheres e aos negros um espaço igual, nos museus e galerias, aos dos homens e brancos, independentemente da qualidade das obras. Só que não é asim que a coisa funciona. Uma coisa é a etnia ou a identidade sexual do/da artista, outra é a sua obra, cuja qualidade não deveria ter qualquer relação com a cor da pele ou opção sexual. A ser correta a tese de que Leonardo da Vinci era gay, ele não era um gênio por ser gay, nem apesar de ser gay: era um gênio e era gay. O mesmo se aplica a Robert Rauschenberg e Andy Warhol, que eram gays e, a seu modo, gênios. Dá até para especular sobre a existência de uma sensibiidade homossexual específica, mas de forma alguma ela será um determinante necessário da qualidade de uma obra de arte. Fosse assim, todos os gays seriam artistas.

Saturday, February 23, 2008

Contra o cânone

Estilo, autenticidade e qualidade são três valores que perderam o sentido na arte pós-moderna. A obra de arte passou a valer não por suas características intrínsecas, mas pela sua articulação com o contexto em que ela é produzida, difundida e comercializada.Em outras palavras houve um deslocamento de sentido da obra em si para a obra como manifestação ou ilustração de alguma idéia ou opinião.

Assim, por exemplo, todos os movimentos ligados a minorias ou subculturas (de gênero, raça, opção sexual etc), a mensagem prevalece sobre qualquer questão estética. O mesmo raciocínio, invertido, serve para desqualificar toda a arte moderna como um exercício de poder de homens europeus brancos que impunham seu gosto e seus valores ao resto da humanidade, mulheres inclusive. Daí a rejeição do pós-modernismo à sensibilidade "elitista" e eurocêntrica do cânone moderno. Daí também a desvalorização da beleza, do talento, da técnica, do artesanato etc - todos a serviço de uma ideologia coercitiva e conservadora. Acreditar nisso é ignorar o apelo universal das verdadeiras obras de arte, é claro, mas isto é apenas um detlahe.

Estar ciente desse deslocamento - operado desde o final dos anos 70 - é uma premissa fundamental para se entender o estado da arte contemporânea (que remonta a Marcel Duchamp e seu urinol, nunca é demais repetir). É o que explica, por exemplo, a absoluta falta de questionamento de qualquer das obras expostas por mais de cem artistas brasileiros em Madri, na semana passada: é como se todas se equivalessem, já que os pré-requisitos que importam elas já cumpriram - isto é: serem designadas como arte e serem assimiladas pelo mercado e palas instituições, isto é, pelo sistema da arte. Além do mais, como muitas delas dispensam a própria mão do artista, qual avaliação baseada no talento e na técnica não teria mesmo sentido.

A crença de que qualquer coisa hoje pode ser arte, desde que desginada como tal pelos agentes do sistema, é a base da teoria institucional da arte. É assim que uma cabeça de boi em decomposição virou uma obra de arte caríssima quando Damien Hirst a expôs numa galeria, em 1990, e a obra (pretensiosamente intitulada A thousand years)foi comprada pelo colecionador Charles Saatchi - que opera basicamente como um especulador: infla as cotações dos artistas que ele próprio escolhe para em seguida vender suas obras a incautos, com lucros extraordinários. Segundo essa teoria, a Mona Lisa ou os girassóis de Van Gogh não tem qualidade intrínseca: são apenas expressões da ideologia de seus respectivos contextos, e portanto são equivalentes em valor à fotografia de uma cabeça de cavalo que Mark Wallinger, outro artista inglês pretigiado por Saatchi, intitulou (ironicamente?) A real work of art.

Nem preciso dizer que discordo radicalmente dessa teoria, embora reconheça que é ela que prevalece hoje na arte contemporânea - o que provavelmente me transforma num marginal, numa persona non grata no meio. Como me recuso a enxergar numa instalação ou numa obra conceitual o mesmo valor que enxergo numa escultura de Giacometti ou num quadro de Picasso ou Matisse, devo ser um ignorante, incapaz de entender a genialidade do que se produz hoje. Não estou exagerando: debochar de quem contesta é a reação típica dos artistas que usufruem do atual status quo, mesmo que muitos deles mal sejam capazes de articular duas frases coerentes sobre a diferença entre o conceitualismo e o formalismo.

Pollock, diante de um quadro que acabara de pintar, se perguntou: isto é uma pintura? Não perguntou se era uma pintura boa ou ruim, mas se era uma pintura, tamanho o estranhamento que ele próprio sentia diante da nova arte que criava. Hoje, artistas que talvez nunca tenham ouvido falar em Pollock se acham os gênio da raça por repetirem procedimentos conceituais de 40 anos atrás, sem entenderem o que estão fazendo. Falam mal do quadro na parede e da escultura no pedestal, mas o que mais querem é que suas obras perceíveis ganhem o reconhecimento dos museus e galerias. Se acham muito ousados no uso dos materiais e de velhas idéias, mas quando se trata de mercado e instituição são mais do que tradicionais. Ingenuidade ou cinismo?

Como se sabe, o Expresionismo Abstrato de Pollock representou a linha de chegada do Modernismo tal como entendido e sistematizado pelo crítico americano Clement Greenberg e seus discípulos. Mas os diversos movimentos que eclodiram ao longo dos anos 60 e 70 ainda eram modernos, no sentido de serem fiéis à "tradição do novo". Foram, na verdade, hipermodernos, já que estenderam essa busca do novo a territórios inexplorados, levando a novos materiais, conceitos e suportes - que, nunca é demais repetir, se colocavam contra as instituições e o mercado, caso dos happenings, instalações e performances originais.

Artistas como o alemão Joseph Beuys (foto acima) e o italiano Piero Manzoni continuavam a fazer uma arte crítica e questionadora, uma arte que apostava na emancipação e na conscientização do homem. O mesmo acontecia com a Arte Povera e com os artistas ligados à Internacional Situacionista. Produziu-se muita coisa excêntrica, é verdade, mas não se pode negar a esses movimentos a autenticidade e o conteúdo crítico. Manzoni, por exemplo, assinava mulheres nuas e as apresentava como obras de arte (foto abaixo).

O pluralismo que testemunhamos hoje não tem nada a ver com isso: é um pluralismo domesticado, politicamente correto, que não questiona nada e alimenta um selvagem mecanismo de especulação. Se antes a idéia era fugir dos espaços dominados pelas convenções culturais dominantes, sabotando assim os mecanismos do mercado, hoje todos correm para esses espaços e para o mercado. A agenda radical dos anos 60 se transformou numa produção bem comportada voltada para alimentar o sistema especulativo. A atitude de vanguarda se profissonalizou e se institucionalizou. Também nunca é demais lembrar que esse processo começou quando o mundo entrou num período politicamente conservador, com Ronald Reagan na América e Margaret Thatcher na Grã-Bretanha.

Por tudo isso, a arte contemporânea parece se encontrar numa encruzilhada de contradições, na qual o próprio artista está compreensivelmente confuso, sobretudo nm país já naturalmente confuso como o Brasil. Aparentemente sobram motivos para euforia: aumento constante das cotações, abertura do sistema para países periféricos, êxito no exterior, ainda que tímido, de artistas com menos de 50 anos. A contrapartida é a submssão incondicional às regras do jogo mediático-especulativo, no qual os grandes colecionadores, incluindo corporações, ditam as regras do jogo com a cumplicidade de curadores, marchands, galeristas, críticos etc, movidos por interesses que podem ser os mais mesquinhos.

Nesse cenário ao mesmo tempo afluente e sombrio, o desafio é encontrar maneiras de escapar à lógica do sistema sem cair na invisibilidade total e, portanto, na irrelevância.

Na ilustração, The innocent eye test, de 1981, quadro de Mark Tansey que cita outro quadro, The young bull (1647), de Paulus Potter.

Hokusai


"Amo a pintura desde que tomei consciência dela, aos 6 anos. Aos 50, produzi alguns desenhos que considero razoáveis, mas nada que fiz até os 70 anos é realmente digno de menção. Aos 73, finalmente compreendi cada aspecto da natureza vital dos pássaros, animais, insetos, peixes, plantas e árvores. Quando eu tiver 80 anos, terei feito um progresso ainda maior, e aos 90 realmente dominarei todos os mistérios da arte. Quando eu tiver 100 anos, a minha arte será verdadeiramente sublime, mas minha meta final só será alcançada aos 110 anos: então, cada ponto, cada linha que eu desenhe terá uma vida própria."

Katsushika Hokusai (1760-1849)

(Li que os japoneses só inventaram uma palavra para "arte" depois que entraram em contato com os ocidentais. É curioso pensar que em algumas línguas esta palavra não existe).

Jean-François Millet

Thursday, February 21, 2008

Reflexões sobre a ARCO


A charge acima foi publicada no jornal espanhol EL PAIS, a propósito da feira de arte ARCO 2008, realizada na semana passada em Madri - na qual o país homenageado, como se sabe, foi o Brasil. Não foi exatamente uma homenagem espontânea, já que o Governo brasileiro, habitualmente tão avaro com a Cultura, desta vez foi generoso: gastou 1 milhão de euros, cerca de 2,6 milhões de reais de dinheiro público, para bancar a participação, incluindo o pagamento das despesas de viagem, estadia, transporte de obras e seguros de mais de cem artistas, galeristas e agregados. Como as opiniões sobre a eficácia desse tipo de mega-evento divergem dentro do próprio meio, me pergunto se esta verba foi bem aplicada, com que critérios, e por meio de que mecanismos.

Imagino que em algum momento serão apresentados à população os resultados desse investimento, até por dever legal do Estado, mas enquanto isso não acontece me permito fazer aqui algumas reflexões. Valores são sempre relativos: se pensarmos que o artista inglês Damien Hirst vendeu recentemente uma obra por 19 milhões de dólares, 2,6 milhões de reais podem parecer pouco. Mas, no contexto da relação do Estado com a cultura no Brasil, é uma fortuna. Pouquíssimos museus e instituições têm um orçamento anual que alcance este valor, mesmo precisando desesperadamente de recursos para conservar seu patrimônio em condições mínimas de preservação e segurança. Basta lembrar que roubos de acervos se tornaram rotineitos nos últimos anos.

Acompanhei com atenção o noticiário sobre a ARCO, no Brasil e nos jornais europeus, e algumas coisas me chamaram a atenção. A charge acima foi uma delas: na desenvolvida Espanha, como aqui, causa estranheza ao cidadão médio a que o jornal EL PAIS se dirige, a desqualificação da pintura pelo sistema da arte contemporânea - no mês passado, o curador da próxima Bienal de São Paulo não teve nenhuma vergonha de dizer com deboche: "Quadro na parede não vai ter". Pintura hoje só tem vez se for releitura irônica ou kitsch, ou se demonstrar a impotência pós-moderna da própria pintura para expressar ou representar qualquer coisa relevante.

Por coincidência, recebi esta semana um e-mail do pintor brasileiro Gonçalo Ivo, há nove anos radicado em Paris, que me contou o seguinte: o Beaubourg tem em sua reserva técnica centenas de instalações e objetos de artistas contemporâneos (comprados pelo Estado francês com o dinheiro do contribuinte, através da intermediação de curadores, criticos e galeristas) que nunca serão remontados, pois estão irremediavelmente danificados ou eram mesmo trabalhos pereciveis, impossiveis de serem refeitos. Esta informação reforça a contradição que já apontei mais de uma vez aqui: instalações, obras conceituais perecíveis, happenings etc surgiram em oposição aos museus e ao mercado, e é verdadeiramente impressionante o cinismo com que hoje são negociados e expostos - com o alegre consentimento dos artistas, claro, que estão sempre viajando, fazendo festas e aparecendo nas colunas sociais ou na revista CARAS.

Isso me leva a outra observação sobre a cobertura da mídia à ARCO, que de certa forma reflete o papel geral que a imprensa assumiu em relação à arte. Praticamente todos os jornais e revistas repetiram as mesmas informações, em tom de oba-oba, exaltando a diversidade da arte brasileira apresentada pelas 32 galerias brasileiras que participaram da festa. Até os artistas citados, entre os 108 convidados, são sempre os mesmos. Nem uma linha de reflexão crítica ou estética, nenhuma tentativa de hierarquização em relação às obras expostas. Chegamos ao ponto em que não se discute mais arte, a não ser em termos de cifras ou de espetacularização mediática: não interessa a ninguém apontar que esta ou aquela obra é um fracasso, que este ou aquele artista está equivocado, porque equívocos e fracassos não fazem parte do vocabulário da arte relativista e pluralista de hoje.

Com graus diferentes de conscientização sobre as regras do jogo, os artistas estão fazendo o seu papel. O sucesso é sedutor, e se as utopias acabaram, se a História acabou, se a crítica acabou, se dizem que a própria arte acabou, em nome de quê valeria a pena remar na contracorrente das tendências pautadas pelo mercado? Em nome de quê deveriam abrir mão de usufruir o que o sistema tem a oferecer - especialmente quando as instituições dão as mãos aos colecionadores, com o endosso intelectual da imprensa e da academia? Tem gente que pensa diferente, mas seria inocente atacar os artistas contemporâneos de má-fé. Até porque eles também têm contas para pagar.

Mas, voltando à ARCO: li numa revista semanal que algumas obras foram postas à venda em Madri por dezenas de milhares de dólares. Como a participação neste evento foi bancada pelo Governo brasileiro, pergunto: artistas que vendem objetos por dezena de milhares de dólares, pois já têm cotação internacional, precisariam de ajuda do Estado para ganhar visibilidade? E, mesmo no caso de artistas menos conhecidos que eventualmente tiverem vendido obras na ARCO (ainda aguardo a divulgação dos negócios realizados), é certo usar dinheiro público para gerar receita direta para galerias comerciais privadas? Ou será que parte do dinheiro obtido com a venda das obras será devolvido ao Estado? Como dizem respeito a todos, estas são perguntas que não podem ser desqualificadas como vindo de "alguém de fora", como costumam fazer com as análises que investigam os mecanismos do sistema da arte hoje.

PS. Sobre a divisão de opiniões em relação ao potencial da arte, cito a galerista Raquel Arnaud, que declarou à Isto É desta semana: "Não será mais uma homenagem que irá provocar o descobrimento do Brasil. A arte nacional já foi descoberta nos anos 1960. Waltercio Caldas foi convidado para o Pavilhão Itália da Bienal de Veneza, Iole de Freitas para a Documenta e Carmela Gross para o El Matadero, em Madri, todos por méritos próprios e não por delimitações geográficas".

Saturday, February 16, 2008

O estado da arte (5)


“A questão básica é se os museus têm ou não qualquer relevância para a arte contemporânea.” (Allan Kaprow, Arts Magazine, 1967)

“Os museus, assim como os asilos e as prisões, têm pavilhões e celas – em outras palavras, salas neutras chamadas de galerias. Ao ser colocada numa galeria, a obra de arte perde sua carga e torna-se um objeto ou uma superfície portátil, separada do mundo externo.”(Robert Smithson)


Quem ler com isenção tudo que escrevi até aqui deve entender que não estou preocupado em fazer crítica de arte, mas entender o que está acontecendo com a arte contemporânea. Minha opinião pessoal sobre este ou aquele artista interessa pouco, e não tenho a pretensão de que ela faça alguma diferença. Mas, num cenário de escassez de debates como o do Brasil, pode ter interesse e fazer alguma diferença uma investigação sobre os caminhos da arte em geral, suas relações com a sociedade, com o mercado, com a tradição, com o Modernismo etc.

Parece inegável - e isto é aliás internacionalmente reconhecido - que a arte vive, desde o final dos anos 70, um novo "regime", que se afastou do ambicioso projeto estético modernista e se aproximou da esfera da moda, no sentido de ser dominado por tendências que se renovam a cada estação e de ter uma relação forte com o mundo do consumo, do espetáculo e da cultura de massa.

Também parece inegável que, se a arte moderna tinha uma relação de permanente conflito e tensão com o mercado e as instituições, a arte contemporânea capitulou totalmente ao neoliberalismo globalizado, abrindo mão de qualquer contestação em relação aos valores da sociedade que as instituições e o mercado refletem.

Por exemplo, agora mesmo, mais de cem artistas brasileiros estão em Madri, na feira comercial ARCO, às custas do Estado, que investiu 2,6 milhões de reais (1 milhão de euros) na participação brasileira. Não estou dizendo que isto é errado - ainda que o assunto dê margem a um longo debate sobre relações entre o artista e o Estado. Mas é um fenômeno sugestivo do novo paradigma, em que o artista contemporâneo dá às mãos alegremente ao mercado globalizado e ao apoio do Governo. Acreditar que alguma arte verdadeiramente crítica pode ser produzida nesses moldes é no mínimo ingênuo.

As duas epígrafes ao alto, de artistas-chave dos anos 60, mostram que nem sempre foi assim. Houve um tempo em que os artistas atacavam frontalmente as instituições e o mercado, colocando em questão suas próprias condições de existência. Aqui vou ter que citar mais uma vez um artista conceitual de 40 anos atrás, não apenas porque seria difícil encontrar artistas de hoje que não tenham sido assimilados pelo capital, mas também porque é difícil encontrar um artista de hoje verdadeiramente original - aliás, o fim da originalidade como valor é uma características mais marcantes da pós-modernidade.

O artista em questão é o americano Michael Asher, que nos anos 70 criou obas que punham em questão os mecanismos por trás das exposições em museus e galerias, e como essas práticas institucionais moldavam/moldam a forma como entendemos a arte que vemos. Por exemplo, em 1974, Asher (que já esteve na Bienal de São Paulo) ocupou uma galeria privada em Los Angeles e derubou a parede que separava o espaço da exposição e do escritório onde se fechavam negócios.

Esta era a obra: e eliminação literal da parede que separava a experiência estética da atividade comercial, de forma a confrontar o público com o procedimento mercadológico habitualmente camuflado nas exposições. Não havia mais nada para ver.
Asher removeu o objeto de arte e transformando a própria galeria em núcleo da exposição, questionando a natureza crescentemente materialista do sistema da arte, no qual fatores econômisocs e institucionais começavam a prevalecer sobre a estética. O mesmo Asher criou obras que apontavam para o novo papel do curador, que começava a participar da "autoria" das obras de arte. Obras que não podiam ser compradas e vendidas, das quais restam registros e documentação escassos.

Nos anos 70, dois livros fundamentais tocaram nessa questão: o crítico Douglas Crimp reuniu no livro Sobre as ruínas do museu ensaios profundos sobre a ideologia oculta das instituições de arte; Brian O'Doherty foi ainda mais radical em No interior do cubo branco, analisando criticamente as premissas nem sempre explícitas das galerias de arte. O sentimento de que a arte verdadeira não cabia mais nos museus e galerias era generalizado.

Aliás essa reflexão crítica vem de muito mais longe: artistas dadaístas e futuristas também acusaram o museu de ser simplesmente um retrato do establishment burguês e conservador, avesso a qualquer projeto emancipador de uma transformação artística da sociedade. Mas foi, de fato, nas décadas de 60 e 70 que a instituição se tornou alvo de um ataque sistemático: parecia que os museus e galerias estavam nos seus estertores, pois eram vistos como um santuário de objetos mortos, que exigiam uma atitude de adoração do público diante de obras sem ar para respirar ou espaço para se mover.

Mas veio a virada conservadora dos anos 80, e esses espaços que pareciam obsoletos recuperaram seu antigo status juntos aos artistas - mesmo aqueles que produziam obras por natureza contrárias a eles, como instalações, performances, obras com materiais perecíveis etc. Ao mesmo tempo, associados ao capital de grandes corporações, os museus se tornaram grandes espaços de entretenimento para massas, sempre com um espaço nobre para as lojas que vendem produtos com suas griffes, naturalmente.

Na ilustração, a obra My Bed, da artista inglesa Tracey Emin

Thursday, February 14, 2008

Andy Warhol come um hambúrguer



É isso aí: Andy Warhol comendo um hambúrguer.

Monday, February 11, 2008

Estado da arte (4)

Querendo ou não, toda arte é de alguma forma determinada pelo contexto social, cultural e histórico que a circunscreve. Mesmo uma arte que se pretenda inteiramente apolítica é em alguma medida ideológica. Neste sentido, existe uma relação direta entre o alardeado pluralismo da arte contemporânea e a globalização e a hegemonia neoliberal.

E não apenas no mau sentido: a reconfiguração da ordem mundial a partir dos anos 50 abriu uma brecha para a arte de países emergentes, e isto foi evidentemente positivo, pois trouxe para o mapa internacional das arte manifestações artísticas até então ignoradas.

Por outro lado, foi também nos anos 50 que começou, de forma avassaladora, o processo de exportação de valores culturais americanos para o então chamado Terceiro Mundo (expressão caída em desuso, já que hje, como se sabe, s´existe um mundo, e ele é "plano"). Da coca-cola e da fast-food ao jeans e à T-shirt, da publicidade e do cinema à música e à dança, o estilo de vida americano foi globalizado de forma extremamente competente - principalmente porque não se tratou apenas de um prcesso de coerção externa, mas de sedução interna, conquistando os corações e as mentes dos neocolonizados.

Nas artes plásticas, o Expresionismo Abstrato foi o primeiro grande movimento de exportação americano. A qualidade das obras de De Kooning e Pollock e mesmo a intenção crítica de suas obras em relação aos valores do capitalismo não mudam o fato de que aquele movimento foi usado estrategicamente pelos Estados Unidos para roubar de uma Europa um pouco exaurida o papel de eixo do mundo da arte.

Subitamente valorizados - inclusive pelo Governo - os artistas americanos se permitiram as experimentações mais descabeladas. Uma obra de Rauschenberg de 1953 deve ser considerada um marco: Erased De Kooning ("De Kooning apagado"). Trata-se de um desenho de De Kooning que Rauschenberg... apagou.


Na minha opinião, este foi um momento crítico, de dimensão e implicações tão grandes quanto os primeiros ready-mades de Duchamp. A partir do momento em que uma folha de papel em que um desenho fora apagado foi validada como obra de arte, o caminho estava aberto para tudo. Um deslocamento decisivo se operou, porque, evidentemente, apagar um desenho alheio não era em si uma forma de expressão, nem uma obra autoral, nem uma obra única e autêntica - e, vale lembrar, os expressionismos abstratos ainda davam valor à autenticidade, à autoria e à expressão, que eram elementos de uma estética moderna. Era uma atitude, e a atitude passava a poder determinar a artisticidade de uma obra, não apenas suas qualidades intrínsecas.

(Com o tempo, estas qualidades intrínsecas foram eliminadas como critério de validação da arte. É por isso que insisto que, num determinado sentido, toda a arte contemporânea é de matriz onceitual. Não sou só eu, aliás: por volta de 2000, a imprensa inglesa criticou acidamente o "conceitualismo" de tubarões e camas desarrumadas, refereindo-se às obras de jovens artistas ingleses (incluindo Damien Hirst). Ou seja, meu emprego do termo "arte conceitual" não se limita à produção específica do movimento de vanguarda dos anos 60 e 70, mas a uma idéia-chave que está presente em toda a produção artística contemporânea, ou pós-moderna.)

No final dos anos 50, foi a vez de Frank Stella pintar telas negras (Black paintings, 1959) - mais ou menos 40 anos depois de Malevich ter feito a mesma coisa na Rússia, mas isso não vem ao caso.

O Modernismo ainda estava cheio de vigor, mas as sementes de sua destruição já estavam lançadas. Os movimentos de decomposição e negação das linguagens e convenções artísticas se tornaram cada vez mais destrutivos.

Na Europa, por sua vez, três artistas levaram a experimentação a extremos radicais: Yves Klein, que expôs o vazio numa galeria, Piero Manzoni, que enlatou as próprias fezes, e Lucio Fontana, que esfaqueou a tela - três gestos diante dos quais as obras "experimentais" de hoje parecem muito tímidas, minúsculas em sua despretensão.

Os artistas que depois disso insistiam na pintura figurativa - incluindo Balthus e Francis Bacon - pareciam depassés. Não é á toa, aliás, que Arthur Danto odeia Bacon, um artista que ainda era fiel a idéia de uma História da Arte e às possibilidades expressivas e emancipadoras da pintura.

A rejeição às convenções da arte moderna traduz um desprezo visceral da pós-modernidade por tudo que esteja associado à uma divisão entre a alta cultura e a cultura de massa - divisão prejudicial à lógica da reciclagem e do relativismo que prevalece hoje. A estética da publicidade, do consumo, da produção em série favorece a citação fugaz - seja ela crítica, irônica ou reverente.

O ideal das vangjuardas dos anos 60 e 70, de fusão entre arte e vida, foi realizado, mas não da forma esperada. Hoje, da mesma forma qualquer pessoa que seja designada artista é artista - diferentemenre de outras esferas da cultura: por exemplo, para ser um cantor de ópera não basta a designação; é preciso ter voz, técnica, talento etc - a qualquer pessoa que queira se sentir em sintonia com a arte contemporânea basta aderir a ela: ninguém lhe cobrará reflexão, análise, sequer compreensão.

É uma situação muito mais democrática que o elitismo modernista, é verdade, pois este exigia a compreensão de questões formais, tanto na pintura quanto na escultura, em suma, apresentava ao público um desafio, na forma de um objeto carregado de valores de decodificação nem sempre imediata.

Essas duas características da arte ocidental, às quais o Modernismo permaneceu fiel -primeiro, a arte entendida como um objeto, com determinadas características, criado pelo artista; segundo, a arte como algo que demanda um olhar contemplativo e inquiridor - foram simplesmente abolidas por práticas que, nos anos 60 e 70, eram autenticamente experimentais e que, a partir dos anos 80, viraram uma espécie de academicismo às avessas, isto é, uma produção que é endossada pelas instituições e pelo mercado, apesar de sua aparência contestadora.

Assim hoje se vê de tudo nas feiras de arte e galerias, menos pinturas e esculturas no sentido moderno do termo: o artista transforma em suporte, ou mesmo na própria obra, seu corpo, sua atitude, suas idéias, seus projetos irrealizados, seus processos de criação, menos um objeto acabado.

Essa elevação do provisório, do circunstancial, do rascunho, ao status de obra de arte é uma confissão tipicamente pós-moderna de incapacidade de realização de uma obra inteira, completa, que se ofereça ao julgamento e à crítica sem subterfúgios. Mais uma vez, uma herança de Marcel Duchamp, que depois de tentar a sorte na pintura, percebeu que teria muito mais impacto declarar que a pintura estava morta e acabada desde décadas antes - o que desqualificava a obra de artistas como Picasso e Matisse, para só citar dois. Esta opinião de Duchamp só foi realmente levada a sério pelo pós-modernismo.

Por outro lado, diversos processos realmente contestadores promovidos pelas vanguardas dos anos 60 e 70 foram simplesmente ignorados pela arte pós-moderna: a denúncia do caráter ideológico dos espeaços de exposição, a tentativa de escapar da mercantilização em todas as etapas da arte, da produção à difusão etc. Por isso movimentos interessantíssimos como a land art e os earth works são hoje vistos como curiosidades históricas, ignorando-se as questões que eles colocavam em relação a materiais, lugares, técnicas, autoria etc.

A arte, simplesmente, deixou de ser o que era, e isto aconteceu duas vezes. Primeiro, nos anos 70, quando a arte se "des-definiu", na expressão do crítico Harold Rosenberg. Depois, novamente, quando ela se enquadrou ideologicamente, fazendo as pazes com as instituições e o mercado - e, portanto, com os valores da sociedade pós-moderna.

Sunday, February 10, 2008

Estado da arte (3): Do moderno ao pós-moderno


O tempo da invenção passou. Vivemos a época da reiteração, da citação, da reciclagem, da recombinação e da apropriação. Hoje tudo, rigorosamente tudo, é potencialmente validável pelo sistema da arte contemporânea, isto é, reconhecível e vendável como arte - ironicamente, até mesmo a pintura e a escultura.

Perdeu-se a perspectiva histórica. Não se trata mais sequer de negar a tradição, nem de contestá-la, mas de ignorá-la: todos os movimentos artísticos do passado só interessam hoje pelo repertório de ingredientes que fornecem para a análise combinatória pós-moderna. Mas, para entender as implicações deste novo cenário, é preciso, justamente, interpretá-lo historicamente.

À medida que avançamos no século 21, ficam mais claras as diferenças entre dois modelos ou projetos: o moderno e o pós-moderno. Por exemplo, se pensarmos nos últimos cem anos, é mais ou menos fácil identificar uma série de características comuns aos movimentos artísticos que eclodiram entre o cubismo, nos primeiros anos do século 20 - o Cubismo, por sua vez, derivou de Cézanne, que derivou dos Impressionistas, que derivaram de Manet etc, mas vamos estabelecer o Cubismo como ponto de partida, por uma razão metodológica - até as últimas vanguardas, nos anos 60 e 70; e outra série de traços típicos da produção artística do período que começou no final dos anos 70, e no qual ainda vivemos.

A, por assim dizer, "aventura moderna" durou mais ou menos 70 anos. O pós-moderno já está trintão. Paradoxalmente, a produção artística do período 1980-2000 parece mais envelhecida e datada que a de qualquer artista ou movimento moderno. Este é o preço que a arte pós-moderna (ou pós-estética, ou contemporânea) paga pela sua capitulação total a uma lógica de obsolescência acelerada, ditada pelo mercado especulativo e justificada no plano teórico pela tese do fim da História da arte. Que artista dos últimos 30 anos tem a dimensão e a importância de um Picasso, de um Matisse - ou mesmo de um Marcel Duchamp?

Todos os "ismos" modernos, mesmo os mais questionáveis - como o realismo socialista da Rússia soviética - formularam programas e manifestos que traduziam uma ambição transformadoras e emancipadora. Todos engendraram pesquisas radicais, que tinham por trás de si um norte, uma fundamentação e uma convicção, em suma, tinham metas - em nome das quais muitas vezes se caía na intolerância, é verdade. Cada movimento tinha a pretensão de superar o predecente, como portador de uma verdade absoluta.

Para o bem e para o mal, essa pretensão foi abandonada. A inovação, a transgressão e a subversão são valores superados. Assumiram o seu lugar uma experimentação fria e tediosa, o comentário irônico do mundo, a afirmação da própria impotência da arte em transformá-lo. As obras de Picasso continuam gritando cada vez que olhamos para elas - cito Picasso como um representante emblemático do impulso transformador do Modernismo, mas poderia citar dezenas de outros artistas, por exemplo, Modigliani, Kandinsky, Marc Chagall, Egon Schiele, até mesmo Jackson Pollock. Em contrapartida, a quase-totalidade produção artística dos anos 80 e 90 já não diz mais nada, se calou, ficou muda, se dissipou numa atmosfera de tédio burocrático, sem peso.

(Isso se torna ainda mais evidente quando essa produção é assimilada pelos museus: no espaço institucional, sobressai a esterilidade e a inofensividade da produção artística contemporânea, ainda mais se comparada às obras modernas expostas nos mesmos museus; com raras exceções, as obras contemporâneas parecem envergonhadas de estar ali. Mas isso tem a ver com outra distorção: obras por natureza perecíveis ou fugazes, como as instalações e happenings, foram inicialmente concebidas para rejeitar e mercantilização e os espaços institucionais - mas foram reapropriadas pelo mercado e pelos museus, com o consentimento dos artistas, começando com o próprio urinol de Duchamp!).

Aqui é preciso tomar um partido, Para mim, este grito e este silêncio representam a negação de uma idéia pós-estruturalista, fundadora do sistema da arte atual, isto é, a de que toda arte é uma fabricação cultural, uma ficção, de que não existe perfeição estética e, a rigor, de que não existe arte tal como ela era entendida e hierarquizada. O fato de sabermos hoje que o gosto é culturalmente determinado não elimina a experiência estética que temos diante de uma grande obra, não justifica a nivelação por baixo, a relativização de todos os valores, a redução da arte a um efêmero e sempre renovável produto comercial de elite.

Somente uma arte que acredita em si mesma pode gerar algo novo e relevante, algo rico e inventivo, algo conseqüente. Assim, para citar apenas dois exemplos, o vigor do Dadaísmo lançou a sementes do ready-made, da poesia fonética, das colagens, das performances e dos happenings; o Cubismo abriu o caminho para a consciência da superfície plana da tela, para pesquisa sobre a autonomização das cores e das formas geométricas, ou sobre a especificidade dos materiais e suportes.

Quantos terrenos de investigação não foram abertos e explorados pela convicção do artista no potencial transformador de sua arte, por meio da sistematização de problemáticas e questionamentos? Isso para não falar da crítica ambiciosa que acompanhou aquela arte ambiciosa: que crítico tem hoje a pretensão de um Clement Greenberg, de quem ainda hoje se lêem com proveito textos escritos há 50 ou mesmo 70 anos - por exemplo, seu ensaio Vanguarda e Kitsch, de 1939 (!) levanta questões de impressionante atualidade - mas sobre as quais hoje não interessa a ninguém refletir.

No projeto moderno, a arte tinha uma solidez cultural, política e social que se desmanchou no ar da pós-modernidade. Arte e sociedade se complementavam, mesmo quando se desafiavam mutuamente. Hoje, apesar de pacificadas pelo mercado, não acrescentam nada uma à outra.

Na ilustração, uma obra de Vanessa Beecroft, artista italiana contemporânea.

Saturday, February 09, 2008

Estado da arte (2): Eternamente passageira, como a moda e a publicidade


A aliança entre a arte e a moda é cada vez mais explícita: artistas assinam peças de griffes famosas, estilistas se tornam grandes colecionadores, mecenas e, por vezes, até temas de exposições - caso da mega-exposição sobre Giorgio Armani no Gugenheim de Nova York. Os ambientes das lojas de roupas sofisticadas se parecem cada vez mais com os das galerias (e vice-versa), e uma série de fotografias de Andreas Gursky retrata, justamente, o interior de lojas Prada. Fotografias que custam centenas de milhares de dólares cada.

Seria difícil negar que estas mesmas fotografias passariam quase despercebidas num catálogo da coleção de outono/inverno da Prada. A implicação direta disso, mais uma vez, é que cada vez mais o objeto de arte depende de uma designação e de uma mise-en-scène, de um dispositivo de relações cuja função é alertar o público desavisado: Atenção! Isto é arte!

O fascínio mais do que sugestivo pela griffe Prada também marca a obra da artista sjuíça Fleury Sylvie, que designou um par de sapatos como obra de arte (Prada Shoes, foto abaixo). Fleury é uma artista tipicamente pós-moderna, em outro post voltarei a falar sobre ela).


Nesse sentido, o título de um livro da crítica francesa Elisabeth Couturier é revelador: Art contemporain, modes d'emploi. Porque um traço da Arte Conceitual - a prevalência da idéia sobre o objeto - se estendeu, de forma distorcida, a toda a produção artística contemporânea: ela precisa de uma validação exterior, com a diferença de que não o índice de validação da obra não é mais um texto explicativo criado pelo artista, mas o próprio ato da validação executado pelo sistema, que prevalece sobre a obra e o artista. Este é o novo "modo de usar" do sistema da arte.

Ao público resta apenas aceitar e consumir passivamente os signos daquilo que lhe é vendido como arte. Não se espera mais dele sequer um olhar concentrado e inquiridor, mas apenas uma percepção difusa do ambiente que o envolve. Não se trata mais de entender a obra, verbo superado, mas de frui-la - da mesma forma, mal comparando, que se frui a música eletrônica numa rave (em oposição à experiência estética implícita que representava ouvir Beethoven, ou mesmo Jimmy Hendrix); a comparação não é de todo ruim, pois o artista, de certa forma, virou um DJ, ao samplear e remixar coisas prontas. E para isso só se requer formação, talento ou aprendizado numa escala minúscula.

Como uma boa peça publicitária, a arte não deve exigir nada da inteligência crítica e concentrada, mas deve, justamente, apagá-la - pois a própria arte depende cada vez mais deste apagamento. Como a moda, ela se tornou essencialmente ritualística, relacional e transacional. Por um lado, eternamente passageira, num processo de reciclagem sem fim de linguagens e temas. Por outro ancorada em relações sociais que seguem a lógica de clubes exclusivos, de iniciados, de happy few: ou você está dentro ou está fora, e só isso importa (não o que você faz, nem o que o grande público pensa do que você faz). Aquele que é reconhecido pelo sistema e porta valor especulativo adquire o dom de tornar qualquer coisa especial, artística, mesmo as experiências mas banais. Esse coeficiente de "artisticidade" não é substancial, não é inerente à obra: é relacional, é atribuído de fora.

Num ambiente de ausência de qualquer reflexão crítica, operam-se deslocamentos sutis. A aliança da arte com a publicidade, por exemplo, é sutil. Não se trata mais, como na época da Pop Art, de uma apropriação irônica, em "segundo grau", da iconografia publicitária e da adoção de recursos como a serialização, mas da diluição da arte como um todo num ambiente publicitário-mediático, isto é, da adesão incondicional a um mundo que é fabricado e constituído (e não mais apenas representado) pela mídia.

Nesse contexto não existe mais qualquer possibilidade de surgirem correntes em torno de uma pesquisa, de uma linha teórica ou de um manifesto: quem contestar o pluralismo, a coexistência pacífica de múltiplas manifestações abençoadas pelo mercado - que potencializa ao máximo todos os nichos, especulando com todos os tipos de minorias - corre o risco de ser expulso do clube. Essa relativização total leva à neutralidade política, e a neutralidade leva à alienação - qual é o conteúdo político do coelho de alumínio de Jeff Koons ou do tubarão cortado ao meio de Damien Hirst? Ou das maçãs espalhadas pela galeria, do quebra-molas de paçoca e do cachorro que morre de fome? Nenhum.

É uma situação radicalmente oposta à do Modernismo, já que pelo menos desde Courbet, nos anos 1850, os artistas refletiam ou anunciavam revoluções de toda ordem. Hoje o mesmo artista que se julga de esquerda alimenta e se beneficia de mecanismos selvagens de especulação capitalista.

Friday, February 08, 2008

Estado da arte (1)


Apesar da desestetização da arte - processo que o crítico americano Harold Rosenberg identificou já em 1972, ao analisar o neo-dadaísmo e os happenings - a estética invadiu todas as outras esferas da vida. O efeito estético vem impregnando cada vez mais o cotidiano das pessoas: hoje ele se encontra em toda parte - mas cada vez menos nos ateliês, museus e galerias.

Rosenberg foi o primeiro crítico a usar o termo "pós-moderno" aplicado às artes plásticas. Analisando a produção de Robert Rauschenberg, ele percebeu que algo diferente estava acontecendo: o deslocamento do conteúdo artístico do objeto de arte em si para as intenções, atitudes e procedimentos do artista. Era um daqueles momentos em que, segundo Walter Benjamin, de tempos em tempos o modo de percepção da sociedade se transforma.

A caixa de Pandora aberta por Marcel Duchamp com os ready-made, no começo do século passado, finalmente fez com que a arte deixasse de ser uma essência para se tornar uma função, isto é, não mais importava o objeto em si, mas a sua designação como arte pelo artista, e a sua legitimação pelos agentes do sistema - críticos, marchands, curadores, galeristas, colecionadores. Quanto ao talento e ao conhecimento técnico, se tornaram perfeitamente dispensáveis, como a própria mão do artista.

Nesse movimento, mesmo tendo continuado a existir, concretamente, o objeto de arte, a arte em si foi desmaterializada; desta forma, toda produção artística se tornou de alguma maneira conceitual: a natureza da criação mudou, e com ela o regime da arte, na sua totalidade. A obra, num certo sentido, desapareceu.

Por outro lado, nos anos 70 o impulso do artista continuava sendo moderno, no sentido de se contrapor criticamente às convenções do sistema e suas instituições (e, mais do que isso, aos valores da sociedade capitalista). Por isso é mais do que certo dizer que os diversos movimentos surgidos entre o final dos anos 50 e o final dos anos 70 foram as últimas vanguardas do século 20.

Aquele foi um período de efervescência e experimentação invejável, no qual se ampliaram todos os limites da arte. A busca moderna do novo foi levada a extremos: nada parecia impossível.

A semelhança com o pluralismo que observamos hoje é enganosa. A partir dos anos 80, o mundo assistiu a uma onda conservadora que encontrou sua melhor tradução teórica na idéia do fim da História: o neoliberalismo foi apresentado como a linha de chegada da humanidade. Isso coincidiu, é claro, com a crise dos ambiciosos valores modernos ligados à verdade, ao progresso, à ciência, à linearidade da História, e com o colapso da utopia comunista, que tinha representado um norte para várias gerações.

Na arte, isso se refletiu de duas maneiras: primeiro, o fim da tradição do novo, isto é, a idéia de que tudo já tinha sido feito, e que só restava citar, recombinar, copiar ou simplesmente se apropriar de recursos do passado; segundo, a capitulação do artista ao mercado e às instituições. Os próprios museus aderiram a uma dinâmica associada ao consumo, ao entretenimento e ao espetáculo: a arte se tornou uma ramificação a mais da indústria cultural, e hoje, em termos práticos, seu status no mundo é mais ou menos semelhante ao da moda, com todas as suas características (incluindo as famosas tendências). A esfera da cultura se reduz ao lazer e entretenimento comercializável, perdendo sua função crítica.

Não se acredita mais no seu potencial transformador ou emancipador, nem muito menos na possibilidade de um gosto consensual, de uma “utopia da arte” baseada na num julgamento de valor universal e desinteressado. Perdida a crença em todas as utopias, restam como alternativas a acomodação, o desespero e o cinismo.

Não é à toa que hoje um dos nomes mais poderosos do mundo artístico seja o de um publicitário: Charles Saatchi, o inventor de Damien Hirst e dos chamados Young British Artists (hoje já não tão young). Nem é por acaso que as grandes corporações e instituições financeiras estejam entre os maiores colecionadores privados. Tampouco é casual o esvaziamento do papel do crítico, ou o distanciamento do público.

Tudo isso é conseqüência direta da arte como especulação. Basta acessar o ranking dos artistas mais valorizados no site www.artprice.com e suas cotações para perceber que hoje a arte é fundamentalmente business: todo o resto - incluindo o próprio artista - é acessório. Não se trata mais de obras de arte, mas da negociação e circulação incessante de signos portadores de valor financeiro.

Por tudo isso, não se trata aqui de contestar este ou aquele artista, esta ou aquela obra, o que seria inútil, mas de compreender o contexto e a dinâmica da produção artística contemporânea. Existem, é claro, artistas de verdade e impostores, mas para o sistema isso não faz diferença. Ou alguém realmente acredita que um coelho de alumínio de Jeff Koons (coelho no qual ele sequer encostou o dedo) pode valer (eu disse valer, não custar) mais que um quadro de Van Gogh ou uma escultura de Henry Moore?

Thursday, February 07, 2008

Citações pós-modernas

Figura 1 - Walker Evans, Sem Título, 1936.
Figura 2 - Sherrie Levine, After Walker Evans 1979.
Figura 3 - Michel Mandiberg, After Sherrie Levine, 2001.

Acredite, o que você vê acima são três obras assinadas por três artistas diferentes - e reconhecidas como tal pelo sistema da arte. E, se bobear, a cotação da obra de Sherrie Levine (a do meio) é maior que a da foto original de Walker Evans. Já que é assim, vou dar minha própria contribuição ao pós-modernismo (mesmo sabendo que ninguém vai atribuir valor à minha obra):


Figura 4 - Luciano Trigo, After Michel Mandiberg, 2008

Wednesday, February 06, 2008

Premissas para um livro sobre arte contemporânea


Sentimentos contraditórios assaltam hoje qualquer pessoa medianamente interessada em artes plásticas. Por um lado, existe uma justificada euforia com o crescimento do mercado e do interesse pela produção artística contemporânea, alimentado, no caso brasileiro, pela assimilação de novos artistas ao circuito internacional. Por outro lado, existe também um sentimento generalizado de mal-estar diante desta mesma produção, caracterizada pelo pluralismo, pela falta de rumos definidos, pela despretensão e, principalmente, pela aliança incondicional dos artistas com as instituições e o mercado - as mesmas instituições e o mesmo mercado que os diversos movimentos artísticos dos primeiros 80 anos do século passado se empenharam em ontestar.

De tal modo que, hoje, o sonho de qualquer jovem artista é ser absorvido pelo sistema, ter cotação internacional, expor nas galerias e museus da moda, aparecer na mídia. Desapareceu qualquer projeto crítico, não apenas em relação às condições de funcionamento do sistema da arte, mas em relação à própria sociedade como um todo - sociedade, como se sabe, cada vez mais dominada pelos valores do neoliberalismo e da globalização que representam a realização extrema de tudo aquilo a que os artistas se opunham num passado recente.

Vivemos um momento confuso e cheio de nuances. O legado das grandes tradições artísticas do passado - incluindo a tradição do Modernismo - é desprezado, ou quando muito, distorcido como pastiche, em reapropriações puramente formais, pelas correntes mais representativas da arte contemporânea. Esse processo começou em algum momento entre o final dos anos 60 e o início dos 80, quando uma série de deslocamentos simbólicos sutis mudou a percepção do papel da arte e do artista na sociedade. Não por coincidência, isso se deu no mesmo momento em que uma onda politicamente conservadora tomou conta do mundo, com Ronald Reagan na América e Margaret Thatcher na Inglaterra, beneficiada pela autodestruição do bloco soviético,
pela queda do Muro de Berlim etc.

Essas transformações geopolíticas radicais - dentro de cujo ambiente ainda vivemos - encontrou sua justificação teórica no livro "O fim da História e o último homem", de Francis Fukuyama, cientista político e funcionário do Departamento de Estado americano. Por sua vez, as transformações no meio da arte também encontraram uma tradução teórica análoga nas obras de diversos críticos, sobretudo Arthur C.Danto e Hans Belting, que decretaram o "fim da História da arte" (sintomaticamente, nenhum dos dois faz qualquer menção a Fukuyama, mas os paralelos são evidentes).

Um e outro endossaram o novo paradigma da arte, caracterizado, entre outros fatores que serão analisados mais tarde, pela redistribuição de papéis dentro do sistema (entre artista, curador, crítico, marchand e instituições), pela reversão de processos radicais promovidos pelas últimas vanguardas, nos anos 60 e 70 (por exemplo, em relação à negação dos museus, da mercantilização da arte e da própria noção de autoria) e pela assimilação total de uma lógica especulativa e mrcadológica que aproxima a arte da moda, da publicidade e das imagens comerciais da cultura de massa (mas a que preço?). Tudo isso se insere, é claro, no debate sobre o pós-moderno, a diluição das fronteiras culturais e o fim das grandes narrativas, que também será analisado mais à frente.

Mas alguns elementos do projeto moderno foram seletivamente preservados nesse novo paradigma. Em meio a mudanças estruturais profundas, reforçou-se a imagem do artista como alguém ainda engajado numa agenda experimental e transformadora - apenas na aparência, é claro, já que este mesmo artista vendeu a alma para o sistema da arte que lhe confere status de estrela. Apagam-se todos os vestígios de associação deste impulso experimental às raízes profundas da História da arte e de sua missão, por assim dizer, filosófica - raízes que ainda estavam claras no Modernismo.

O artista deixou de ser um contestador para ser um provocador: basta observar as obras do inglês Damien Hirst e do americano Jeff Koons, dois dos mais valorizados nomes no mercado internacional hoje. Um e outro fazem releituras de procedimentos do passado, mas esvaziadas de significação estética ou histórica. Um e outro sequer encostam o dedo em suas obras, produzidas por uma equipe de assistentes sob sua orientação. Um e outro assinam peças que valem, ou melhor, são compradas e vendidas, por milhões de dólares.

Nesse contexto, parece mais do que necessária a atualização do debate sobre o estado da arte contemporânea, sobre o novo papel dos museus e galerias, sobre as dinâmicas do mercado, sobre o lugar e a função que o artista pode ou deve assumir dentro de uma sociedade democrática baseada no consumo e na redução de todas as esferas da vida à economia.

O objetivo deste livro é investigar alguns aspectos deste processo, que começou há mais ou menos 30 anos e ainda está em curso. Como o número de artistas em atividade no Ocidente chega às dezenas de milhares, seria impossível fazer um balanço exaustivo da produção contemporânea. Citarei apenas aqueles artistas "sintomáticos", representativos de determinados fenômenos, como ilustração de algumas teses. Sei perfeitamente que os artistas bem-sucedidos correspondem a uma fração mínima da classe; no Brasil então nem se fala: excluídas exceções que se contam nos dedos, uma grande parcela dos artistas brasileiros vive precariamente, e uma parcela maior
ainda nem consegue chegar na periferia do sistema da arte, expondo em coletivas etc - e com eles me solidarizo. Contudo, para a investigação aqui proposta, foi preciso ir nos exemplos mais típicos do modelo vigente, desmontando fraudes e embustes que fazem sucesso, porque é nesses casos que se manifestam os problemas e contradições mais graves do sistema.

(Na ilustração, o artista contemporâneo Matthew Barney)

Tuesday, February 05, 2008

Marilyn no divã

Em termos práticos, são dois os objetivos da psicanálise: recuperar a capacidade de amar e recuperar a capacidade de trabalhar do analisando. Durante 30 meses, de janeiro de 1960 a agosto de 1962, a insone, neurótica e insegura Marilyn Monroe freqüentou o consultório do psicanalista Ralph Greenson tendo isso em mente. Mas o processo psicanalítico fracassou, sendo interrompido pelo suicídio da atriz, aos 36 anos: Greenson foi a última pessoa a vê-la viva e a primeira a vê-la morta. É a história desta relação - uma relação extrapolou e muito os limites da análise - que é contada no romance Marilyn - As últimas sessões, de Michel Schneider, que será lançado no Brasil pela Alfaguara.

Ele próprio psicanalista, Michel Schneider parece bem equipado para a tarefa. Conheço textos sérios seus sobre Baudelaire (Les années profondes, 1995) e o pianista Glenn Gould (Piano solo, 1988)- outros dois personagens de psicologia complexa - em que ele combina suas duas competências (de psicanalista e escritor). Em Maman (1999), o tema foi a relação de Marcel Proust com sua mãe. Mas foi com este livro sobre Marilyn que o autor despontou para a fama internacional, em 2006, quando foi finalista de vários prêmios, incluindo o Goncourt, e foi traduzido em 18 países.


Embora diversos personagens reais apareçam no livro - Kennedy, Truman Capote, Anna Freud, Elia Kazan, Arthur Miller - não se esperem revelações de bastidores nem passagens que reforcem o mito de deusa do sexo, nem teorias mirabolantes sobre a sua morte: Schneider está mais interessado na conturbada vida interior da atriz, na sua incapacidade de lidar com sua imagem pública, na angústia que a levou a viciar-se em barbituricos e anfetaminas e a entrar num processo auto-destrutivo sem volta.

Schneider também sugere uma relação entre a psicanálise e o cinema, um mundo dominado por intrigas e aparências. Vale lembrar que entre 1945 e 1965 diversas produções hollywoodianas tematizaram a teoria freudiana; não por acaso, a grande maioria dos diretores, produtores e estrelas à beira de um ataque de nervos freqüentavam divãs e consumiam barbitúricos rotineiramente. O clima intelectual em Los Angeles nas décadas de 50 e 70 era tão fortemente impregnado pela psicanálise que buscar um analista famoso era um passo quase imprescindível para qualquer ator ou atriz de sucesso.

(A história da penetração da psicanálise nos Estados Unidos, estimulada pela imigração de membros judeus do círculo freudiano, á fascinante; não é assunto para este post, mas vale lembrar que Freud, ao desembarcar pela primeira vez em Nova York para uma série de conferências, comentou: "Estamos trazendo a peste, e eles nem desconfiam").

Marilyn Monroe procurou a psicanálise pela primeira vez em 1955, por recomendação do diretor Elia Kazan e de Lee Strasberg, professor da escola de arte dramática Actors Studio, que a atriz freqüentava para melhorar a sua técnica interpretativa. O famoso "Método", de Strasberg, baseado nas teorias do russo Stanislawsky, estimulava os atores a interrogar suas vivências emocionais passadas para a construção dos seus papéis. Antes de Greenson, Marilyn já tinha sido analisada por duas mulheres, Margaret Hohenberg e Mariane Kriss - que chegou a interná-la numa clínica psiquiátrica. Kris era ligada a Anna Freud e também foi analista de Jacueline Kennedy, cujo marido, como se sabe, foi amante de Marilyn.

Greenson ainda não tinha 50 anos quando iniciou a terapia de Marilyn, mas já era considerado uma vedete do inconsciente em Holywood - entre os pacientes ricos e famosos de seu consultório em Beverly Hills estavam Frank Sinatra e Tony Curtis. A atriz foi ao seu consultório no início de 1960, no início das filmagens de Adorável Pecadora (Let,s make love), de George Cukor, em que contracenou com Yves Montand (foto). Durante os quase seis meses de filmagem, Marilyn abandonaria set todas as tardes para ir ao consultório do psicanalista. Para superar as crises de depressão e vencer as inibições e angústias que a paralisavam nos sets, ela tinha iniciado o primeiro tratamento cinco anos antes, em Nova York. Tornou-se, então, uma adepta apaixonada da psicanálise. Durante as filmagens, em Londres, de ... (The Prince and the Chorist, com Laurence Olivier), Marilyn chegou a ser acompanhada por Anna Freud.

Greenson não era um amador. Ele fez sua formação na Europa, no final dos anos 30 com Otto Fenichel, aluno de Freud, e na América publicou diversos ensaios sobre a técnica psicanalítica. Num desses ensaios, As drogas na situação psicoterapêutica, ele afirma: "Os psiquiatras e os médicos devem estar dispostos a ficar emocionalmente implicados com os doentes se esperam estabelecer uma relação terapêutica fiável"

Greenson foi membro fundador da Sociedade Psicanalítica de Los Angeles, onde se instalou aos 26 anos, e autor do manual Técnica e prática da psicanálise. Tinha menos de 50 anos quando começou a analisar Marilyn, e desde o começo ficou clara sua dificuldade em preservar os limites recomendáveis num processo psicanalítico. Num determiando momento, as sessões foram transferidas para a casa de Greenson, com o pretexto de fugir da atenção da mídia. Em seguida, ela passou a compartilhar regularmente as refeições da família Greenson e a passear com os filhos do analista. Um detalhe revelador, é que na geladeira dos Greenson havia sempre uma garrafa de champagne disponível para Marilyn, e ela tomava uma taça após as sessões.

A estratégia de Greenson foi desenvolver uma "terapia de adoção", isto é, tornar-se um substituto para as carências emocionais de Marilyn em relação aos pais. Os resultados foram desastrosos. No último ano da vida da atriz, ela liga para ele a qualquer hora, pedindo ajuda em relação ao contrato com a Fox e conselhos em relação ao seu círculo de amizades (um dos conselhos que ele deu foi vender a casa e comprar outra, mais perto dele). Marilyn chegou a declarar: "Finalmente eu o encontrei. É meu salvador. (...) Ele faz coisas formidáveis por mim. Ele me ouve. Ele me dá coragem. Ele me torna inteligente. Ele me faz pensar. Com ele, posso enfrentar qualquer coisa, não tenho mais medo". Por sua vez, após a morte da atriz, Greenson delcarou: "Ela tinha virado minha filha, minha dor, minha irmã, minha loucura". Abalado pela morte da paciente e crucificado pela imprensa, ele procurou um colega para retomar sua análise: a primeira sessão durou 12 horas.

Greenson, que definiu o fim da análise como o acesso do paciente à independência de pensamento, fez exatamente o contrário. Além de vê-la cinco ou seis vezes por semana, encorajou Marilyn a lhe telefonar todos os dias. "Porque ela estava tão sozinha e não tinha mais ninguém para ver, nem nada a fazer além da filmagem, se eu não a recebesse", desculpou-se o psicanalista, que acabou mergulhando nos medos e obsessões da própria paciente nos últimos e turbulentos meses antes de sua morte.

De certa forma, o livro sugere que Marilyn procurou na análise uma morte assistida, mas ela e Greenson acabaram se envolvendo, nada ortodoxamente, numa confusa simbiose emocional e intelectual, envolvendo paixão platônica e dependência mútua. Tecnicamente falando, Greenson interferiu na vida de sua analisanda de forma desastrosa, a ponto de usar sua empregada doméstica como uma espiã da intimidade da atriz. Em vez de trabalhar pela autonomização da paciente, Greenson a tornou totalmente dependente não apenas das sessões de análise como dos barbitúricos quer ele receitava.

Realidade e ficção se confundem: baseado numa pesquisa rigorosa, Schneider fundamenta com detalhes reais os vôos de sua imaguinação, produzindo no leitor um "efeito de verdade" em seu mergulho abismal na alma de Marilyn. "Como os cabelos de Marilyn, este romance é verdadeiramente falso", escreve o autor. "Eles não tinham um caso de amor, mas viveram uma história passional de domínio e dependência recíprocas, a mil léguas de distância da ortodoxia freudiana'', disse Schneider ao jornal Le Monde.

Ele conta uma história, mas também faz uma reflexão sobre as ilusões da fama e os limites da psicanálise, e sobre o conflito permanente entre realidade e representação. As aparentemente desordenadas idas e vindas no tempo associam episódios diversos da vida da atriz a uma cronologia freudiana, à medida que vêm à tona lembranças reprimidas da infância traumática, da ausência do pai, dos abusos sexuais etc. Verdades fragmentárias como as peças de um quebra-cabeça, que o leitor ajuda a montar.

Desta forma, Schneider proporciona ao leitor a oportunidade de acompanhar por dentro o processo analítico - no qual, como se sabe, é impossível mentir. Por isso, de certa forma, Marilyn - As últimas sessões é mais verdadeiro que muitos livros já escritos sobre a loura.

TRECHO DO LIVRO

Nova York, abril de 1955. O escritor Truman Capote assiste com Marilyn a um enterro.

- Preciso de uma tintura - diz ela. - E não tive tempo de cuidar disso.

Ela lhe mostra uma linha escura na risca que divide os cabelos.

- Pobre inocente que sou. Sempre pensei que você fosse cem por cento loura.

- Eu sou loura de verdade. Mas ninguém é naturalmente assim. Aliás, não me enche o saco.

Como os cabelos de Marilyn, este romance - estes romances emaranhados - é verdadeiramente falso. Contrariando a advertência obsoleta dos velhos fi lmes, ele se inspira em fatos reais, e seus personagens aparecem com seus nomes verdadeiros, salvo exceções que visam respeitar a vida privada de pessoas vivas. Os lugares são exatos; as datas, verifi cadas. As citações, retiradas de suas narrativas, notas, cartas, artigos, entrevistas, livros, fi lmes etc., são suas próprias palavras.

Quando muito, o falsário que sou não hesita em imputar a uns o que outros disseram, viram ou viveram, em lhes atribuir um diário íntimo que nunca foi encontrado, artigos ou notas inventadas, e em lhes emprestar sonhos e pensamentos que nenhuma fonte atesta.

Nesta história de amor sem amor, entre duas pessoas reais, Marilyn Monroe e Ralph Greenson, seu último psicanalista, ligados um ao outro pelos fi os do destino, não se procurará nem o verdadeiro nem o verossímil. Eu os observo ser o que foram e acolho a estranheza de uma e de outra fi gura como se ela me falasse da minha.