Tuesday, October 30, 2007

Sobre uma foto de Edward Weston







Máquina de escrever também é o nome do volume que reúne a poesia de Armando Freitas Filho. É dele este poema em prosa, a propósito de uma foto que é outro poema:

Nua, anónima, 1923. Vinte anos presumíveis,
branca, em decúbito dorsal, com o tronco
arqueado (talvez pela respiração presa
no instante único da foto, ou melhor:
foi a foto que a susteve, a suspendeu
para sempre), e mais o cheiro, parado
do grosso cabelo preto do púbis
do pouco que aparece nas axilas não raspadas
que saboreio, degusto, engulo em seco
sinto o gosto, agora, porque a pele
do corpo é de hoje, setenta e oito anos depois
e brilha, lisa, morena de sol, sem nenhum sinal
de vida, porém. Teus olhos fechados te encerram.”

Armando Freitas Filho

Monday, October 29, 2007

Liah



Quando ela apareceu
O Sol se escondeu
Não era a Lua:
Era a Liah

Máquina de escrever

Máquina de escrever, que passou a ser o título deste blog, é também uma canção de Luís Capucho (e Mathilda Kóvak). Ouvi pela primeira vez na voz de Pedro Luís e A Parede, já faz tempo. Achei no Youtube interpretada pelo autor:



Meu coração é uma máquina de escrever
As paixões passam, as canções ficam
Os poemas respiram nas prisões
Pra ler um verso, ouvir
Escutar meu coração falar
Até se calar a pulsação
Meu coração é uma máquina de escrever
No papel da solidão
Meu coração é
Da era de Gutemberg
Meu coração se ergue
Meu coração é
Uma impressão meu coração
Já era
Quando ainda não era a palavra emoção
Mas há
Palavras em meu coração
Letras e sons
Brinquedos e diversões
Que passem as paixões
Que fiquem as canções
Nos poemas nos batimentos das teclas da máquina de escrever
Meu coração é uma máquina de escrever ilusões
Meu coração é uma máquina de escrever
É só você bater
Pra entrar na minha história.

Glenn Gould e Rostropovich tocam Bach

O mundo pode ter acabado, mas algumas coisas são eternas. Glenn Gould (1932-1982) e Mstislav Rostropovich (1927-2007) interpretando Bach, por exemplo.



As duras opções da Europa







A propósito do livro Os últimos dias da Europa, de Walter Laqueur, que chega esta semana às livrarias, um interessante artigo de Daniel Pipes, publicado no site Mídia Sem Máscara. Pipes é um dos maiores especialistas em Oriente Médio, Islã e terrorismo islamista da atualidade. É autor de 12 livros, entre eles Militant Islam Reaches America, Conspiracy e The Hidden Hand. Neste artigo, ele argumenta que as relações da Europa com sua crescente minoria muçulmana seguirão uma dessas três vias: a da integração harmônica, a da expulsão dos muçulmanos, ou da dominação pelo Islã. A grande questão é: qual delas é a mais provável?

As duras opções da Europa:

O futuro da Europa é de uma imensa importância não somente para seus habitantes. Durante meio milênio, de 1450 a 1950, esses 7 por cento das terras secas do mundo guiou a história do mundo; sua criatividade e vigor inventaram a modernidade. A região pode já ter perdido essa posição decisiva há 60 anos mas continua tendo uma importância crucial em termos econômicos, políticos e intelectuais. A direção que tomar tem, portanto, enormes implicações para o resto da humanidade e especialmente para as nações que dela surgiram, como os Estados Unidos, que historicamente têm a Europa como fonte de idéias, pessoas e bens.

Segue uma avaliação da probabilidade de cada cenário.
I. Governo Muçulmano

A falecida Oriana Fallaci observou que, com o passar do tempo, "a Europa se torna crescentemente uma província do Islã, uma colônia do Islã". A historiadora Bat Yeor denominou essa colônia de "Eurábia". Walter Laqueur prevê, em seu "Last Days of Europe" ["Os Últimos Dias da Europa"], no prelo, que a Europa que conhecemos está fadada a se transformar. Mark Steyn, em "America Alone: The End of the World as We Know it" ["Os Estados Unidos a sós: o fim do mundo como o conhecemos"], vai mais longe e defende que boa parte do mundo ocidental "não sobreviverá ao século XXI, e boa parte irá efetivamente desaparecer antes de morrermos, inclusive muitos, se não a maioria dos países europeus". Três fatores – fé, demografia e senso coletivo de patrimônio cultural [sense of heritage] - indicam que a Europa está sendo islamizada.

Fé: um secularismo extremado predomina na Europa, sobretudo entre as elites, ao ponto de cristãos praticantes (como George W. Bush) serem vistos como mentalmente desequilibrados e inadequados para um cargo público. Em 2005, negou-se a Rocco Buttiglione, um ilustre político italiano e católico convicto, um cargo de comissário italiano na União Européia devido a suas posições em questões como a homossexualidade. Secularismo arraigado também significa igrejas vazias: em Londres, estimam os pesquisadores, mais muçulmanos freqüentam as mesquitas às sextas-feiras que cristãos as igrejas aos domingos, embora a cidade abrigue cerca de 7 vezes mais pessoas advindas de lares cristãos do que de muçulmanos. Enquanto o Cristianismo definha, o Islã atrai; o príncipe Charles exemplifica o fascínio de muitos europeus pelo Islã. Pode haver muitas conversões no futuro da Europa, pois, como no aforismo atribuído a G. K. Chesterton: "Quando os homens deixam de acreditar em Deus, eles não acreditam no nada; acreditam em qualquer coisa".

O secularismo europeu dá a seu discurso formas que são relativamente desconhecidas pelos americanos. Hugh Fitzgerald, ex-vice-presidente do JihadWatch.org, ilustra uma dimensão dessa diferença:

"As declarações mais memoráveis dos presidentes americanos quase sempre incluíram frases bíblicas identificáveis. (...) Essa fonte de força retórica se manifestou em fevereiro passado [2003], quando explodiu o ônibus espacial Columbia. Não fosse um ônibus americano, e sim francês, que tivesse explodido, e Jacques Chirac tivesse de fazer o discurso, ele poderia muito bem ter-se referido ao fato de que havia sete astronautas e evocado a imagem das Plêiades, assim denominadas na Antigüidade pagã. O presidente americano, em um cerimonial nacional solene, que iniciou e terminou com o hebraico bíblico, agiu de forma diferente. Retirou seu texto de Isaías 40:26 que levou a uma imperceptível passagem da combinação de admiração e reverência diante das hostes celestiais trazidas pelo Criador para o conforto diante da perda mundana da tripulação".

A fé fervorosa dos muçulmanos, com a conseqüente sensibilidade jihadista e o supremacismo islâmico, não poderia ser mais diferente da fé dos apóstatas cristãos da Europa. Esse contraste leva muitos muçulmanos a ver a Europa como um continente pronto para a conversão e o domínio. Seguem disso exorbitantes afirmações de supremacia, como a de Omar Bakri Mohammed: "Quero que a Grã-Bretanha se torne um estado islâmico. Quero ver a bandeira do Islã erguida no número 10 da Rua Downing". Ou a previsão de um imã da Bélgica: "Logo assumiremos o poder nesse país. Aqueles que agora nos criticam vão se arrepender. Terão de nos servir. Preparem-se, pois a hora está próxima" [1].

População: implosão demográfica também indica uma Europa se islamizando. A taxa total de fertilidade na Europa hoje em dia está, em média, em cerca de 1,4 por mulher, enquanto para se manter a população é necessário um pouco acima de 2 crianças por casal, ou 2,1 criança por mulher. A taxa atual é apenas dois terços do que precisa ser; um terço da população necessária simplesmente não está nascendo.

Para evitar uma aguda diminuição da população, com todo o sofrimento que isso implica - e, especificamente, a falta de trabalhadores para financiar os generosos planos de pensão -, a Europa precisa de imigrantes - muitos deles. A terça parte importada da população tende a ser muçulmana, em parte porque os muçulmanos estão por perto - são somente 13 quilômetros do Marrocos até a Espanha, somente uns duzentos para chegar à Itália da Albânia ou da Líbia; em parte porque os laços coloniais continuam ligando o Sul asiático à Grã-Bretanha ou o Magrebe à França; e em parte devido à violência, tirania e pobreza que dominam o mundo muçulmano hoje, o que provoca ondas e mais ondas de emigração.

Da mesma forma, a alta fertilidade dos muçulmanos complementa a escassez de crianças entre os cristãos locais. Embora a taxa de fetilidade muçulmana esteja caíndo, ela continua significativamente mais alta do que a da população nativa da Europa. Sem dúvida, as altas taxas de natalidade têm algo a ver com as circunstâncias pré-modernas em que muitas mulheres muçulmanas da Europa se encontram. Em Bruxelas, "Muhammad" já é há alguns anos o nome mais popular entre os bebês do sexo masculino, enquanto Amsterdã e Roterdã estão a caminho de ser, até cerca de 2015, as primeiras grandes cidades européias com população majoritariamente muçulmana. O analista francês Michel Gurfinkiel estima que uma guerra de rua étnica na França iria encontrar os filhos de "indigénes" e de imigrantes em uma relação de aproximadamente 1 para 1. As previsões atuais vêem uma maioria muçulmana no exército russo até 2015 e no país como um todo até cerca de 2050.

Senso coletivo de patrimônio cultural: o que geralmente é caracterizado como sendo o politicamente correto europeu reflete o que acredito ser um fenômeno mais profundo, a saber, o alheamento de muitos europeus em relação a sua civilização, uma noção de que não vale a pena lutar por sua histórica cultura ou sequer conservá-la. É impressionante perceber as diferenças nesse quesito dentro da Europa. Talvez o país menos disposto a esse alheamento seja a França, onde o nacionalismo tradicional ainda exerce grande influência e os franceses se orgulham de sua identidade. A Grã-Bretanha é o país onde esse alheamento é maior, como simboliza o patético programa de governo "ICONS – A Portrait of England” [ÍCONES – Um Retrato da Inglaterra], que espera, de forma capenga, reviver o patriotismo conectando os britânicos a seus "tesouros nacionais", como o Ursinho Pooh e a mini-saia.

Essa timidez tem implicações diretas e adversas para os imigrantes muçulmanos, como Aatish Taseer explicou na revista Prospect:

"A britanidade é o aspecto de identidade mais insignificante para muitos jovens britânicos de origem paquistanesa. (...) Se se vilipendia sua própria cultura, corre-se o risco de os mais recém-chegados irem procurar por uma em algum outro lugar. Tão distante, nesse caso, que para muitos da segunda geração de britânicos com essa origem, a cultura do deserto dos árabes lhes era mais atraente do que a cultura britânica ou do sub-continente. Apartados três vezes de um senso de identidade consistente, a vigorosa perspectiva extra-nacional do Islã radical tornou-se uma identidade à disposição dos paquistaneses de segunda geração".

Os imigrantes muçulmanos têm um enorme desdém pela civilização ocidental, especialmente quanto à sexualidade (pornografia, divórcio e homossexualidade). Os muçulmanos não estão sendo assimilados em nenhum lugar da Europa, raramente ocorrendo casamentos cruzados. Um interessante exemplo do Canadá: a mãe da infame prole dos Khadr conhecida como a primeira família terrorista do país, voltou do Afeganistão e do Paquistão para o Canadá em abril de 2004 com um de seus filhos. Apesar de estar pedindo asilo no Canadá, ela insistia publicamente, apenas um mês antes de fazer o pedido, que os campos de treinamento financiados pela Al-Qaeda eram o melhor lugar para seus filhos. "Você quer que eu crie meus filhos no Canadá para, quando chegarem aos 12 ou 13 anos de idade, usarem drogas ou tenham relações homossexuais? Isso é melhor?"

(Por ironia, em outros séculos, como documentou o historiador Norman Daniel, os cristãos europeus menosprezavam os muçulmanos com suas múltiplas esposas e haréns, por serem hipersexualizados, sentindo-se assim moralmente superiores).

Resumidamente: esse primeiro argumento mantém que a Europa será islamizada, submetendo-se silenciosamente ao status de dhimi ou convertendo-se ao Islã, pois o yin da Europa e o yang dos muçulmanos se encaixam muito bem: baixa e alta religiosidade, baixa e alta fertilidade, baixa e alta confiança cultural.[2] A Europa é uma porta aberta pela qual os muçulmanos estão adentrando.

(continua)

Sunday, October 28, 2007

'A sociedade precisa escolher'


Complementando o post "Eu ajudei a destruir o Rio de Janeiro", seguem alguns trechos da entrevista do Secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, à revista Veja.

Ao longo do tempo, as quadrilhas se fortaleceram a tal ponto que hoje têm a audácia de abanar armas para a polícia.

No Rio não existe mais o crime famélico. Ninguém mais rouba um celular aqui para trocar por um pedaço de pão. O menino rouba um celular porque a facção criminosa do lugar onde ele mora quer um ou dois aparelhos para usá-los em negócios ilícitos.

No Brasil, e no Rio de Janeiro em particular, a convivência promíscua entre o legal e o ilegal, o formal e o informal, provocou essa situação ambígua. Agora chegamos a um ponto em que precisamos decidir. A sociedade precisa escolher de que lado está.

Não podemos passar a mão na cabeça dos marginais, com a desculpa de que eles são excluídos sociais. Não me apresentem discursos acadêmicos como se eles fossem solução. A meu ver, esse é um equívoco que as ONGs cometem, pois não conseguem enxergar nada além das ciências sociais.

Assim são os jovens hoje no morro. Se não for apresentado a nenhuma outra opção, o jovem se espelhará no ídolo dele, que é o dono da boca-de-fumo: um sujeito com o corpo malhado, que tem correntinha de ouro, transa com qualquer menina e tem o carro que quer porque manda roubar, tem o celular bom porque manda roubar. É imprescindível que o estado, as políticas públicas, ataquem isso.

Eu ajudei a destruir o Rio de Janeiro
















No Brasil existem temas em que é impossível o debate avançar, simplesmente porque as pessoas estão fechadas com uma determinada posição. Qualquer discussão construtiva pressupõe um mínimo de disposição para reconhecer que você está certo e eu estou errado, se isto for racionalmente demonstrado. Ou seja, disposição para aceitar a possibilidade de mudar de idéia.

Aqui isso não existe. Elege-se uma opinião como uma segunda natureza, uma trincheira impenetrável, mesmo quando todas as evidências demonstram a sua fraqueza. E este compromisso vira um credo, uma religião em torno da qual se desenvolvem as referências e as redes de relacionamento do indivíduo. Este constrói sua identidade não através do exame crítico do que acontece à sua volta, mas por meio da adesão incondicional àquilo que for mais favorável aos seus interesses imediatos. O melhor caminho é para onde o vento sopra.

Para muita gente, por exemplo, o petismo é uma religião. Quem teve a oportunidade de participar de um grupo de discussões do PT sabe que o que importa ali é reforçar mutuamente a convicção de que tudo que o partido fizer está certo, simplesmente por ser o PT. Qualquer diferença é esmagada e expelida. A cegueira voluntária dos petistas na época do escândalo do Mensalão foi exemplar. Que importância tinha a verdade, quando comparada à força desta convicção? Que sacrifício podia ser considerado alto demais, diante desta certeza?

A questão das drogas no Rio de Janeiro é outro tema que parece impermeável a qualquer debate produtivo. Ninguém vai deixar de fumar seu baseado ou cheirar seu pozinho por meio do convencimento racional, mesmo que se demonstre por A + B que isso alimenta a cadeia de produção de uma engrenagem que tem gerado violência e dor em escala industrial. É desanimador. Mesmo assim:

O impacto social negativo da droga hoje prevalece de goleada sobre o eventual impacto individual positivo que ela teve ou tem. A desordem coletiva não está compensando a eventual desordem individual - que pode ser criadora, gerar prazer sensorial etc. Ainda é possível, honestamente, associar as drogas à rebeldia libertária, à resistência ao sistema ou à desobstrução da criatividade artística? No passado pode ter sido assim: hoje o consumo integra uma indústria milionária que tem como um de seus motores a destruição indiferente de vidas, em todas as classes sociais, do menino do morro ao jovem da Zona Sul.

Será que algum usuário de Ipanema que ficou indignado com o filme Tropa de elite faz idéia do que é o cotidiano das pessoas na Favela da Coréia, em Senador Camará, ou em qualquer comunidade dominada pelo tráfico? Duvido muito. A liberdade e a autonomia do indivíduo são valores fundamentais, mas cada escolha implica responsabilidades e deveres em relação à coletividade, não apenas direitos.

Não se trata de culpabilizar o usuário, mas de fazer com que ele entenda as implicações que o consumo pode ter na vida das pessoas à sua volta e na qualidade de vida da cidade onde mora. A vida é feita de escolhas: não dá para financiar o tráfico no sábado à noite e participar de passeata pela paz no domingo de manhã. A não ser que se deixe de lado a hipocrisia e se vista logo uma camiseta com os dizeres:

Eu ajudei a destruir o Rio de Janeiro

Saturday, October 27, 2007

Meu pintor favorito




Yves Klein desafiou todos os limites das artes plásticas. Tornou-se conhecido sobretudo por suas monocromias, chegando a patentear uma cor - a International Klein Blue. Mas foi muito além: aboliu os pincéis, usando pigmentos puros, encenou performances de arte corporal, usando corpos femininos como pincéis fivos (ver vídeo), pintou com luz, com fogo e com água, concebeu visionárias propostas arquitetônicas feitas de correntes de ar. Foi um artista conceitual que explorou todas as formas e materiais em busca da imaterialidade.

Faixa-preta de judô, Yves Klein morreu aos 34 anos, em 1962.

Thursday, October 25, 2007

Scorsese sobre Antonioni



Martin Scorsese fala sobre o filme O eclipse, de Michelangelo Antonioni. Documento de uma época em que o cinema era feito para adultos, e não para adolescentes, como é hoje.

Wednesday, October 24, 2007

Sobre a chuva







"Tomate tá cinco! Tomate tá cinco!" Demorei a entender por que tinha tanta gente vendendo tomate na rua, ainda mais num dia chuvoso, até que percebi que não eram tomates que estavam oferecendo, mas guarda-chuvas (au)"tomáticos". Meu ouvido transformou "(Au)tomático a cinco!" em "Tomate tá cinco!". Vai entender.

Eu já estava com o meu tomático, sempre que chove compro um, e tinha acabado de chegar ao prédio da editora depois de duas horas de um percurso que geralmente consome 30 minutos (Ipanema-Centro). Num determinado trecho, o trânsito ficou tão parado que pensei em Weekend, o filme de Jean-Luc Godard inspirado no conto de Julio Cortázar, A autopista do sul, sobre um engarrafamento-monstro, que acaba fazendo as pessoas cedrem aos instintos mais rudimentares e regredirem a um estágio bárbaro da civilização. Senti saudade da época, já remota, em que Godard e Cortázar tinham alguma relevância.

A violência e a barbárie se tornaram rotineiras. Ver sete mil toneladas de terra caindo sobre a entrada do Túnel Rebouças não despertou exatamente surpresa, nem indignação. Na verdade o que me espanta é que coisas assim não aconteçam todos os dias, tamanha é a irresponsabilidade com que os governos, um após outro, deixaram as favelas ocuparem as encostas, de forma criminosa. Mas, pensando bem, nem isso me espanta mais. Somos a enésima geração de atores vivendo os personagens de um mesmo roteiro. As coisas, as estruturas, os padrões nos ultrapassam e sobrevivem a nós. Gente pobre morrendo ou perdendo tudo (mesmo quem não tem nada), classe média sofrendo para chegar ao trabalho etc. Quantas vezes esse roteiro já não foi encenado?

Quem usa muito a Internet, como eu, já deve ter recebido uma mensagem com esse assunto: "Não precisa ler, basta repassar!". Ora, se todos só repassarem, sem ler, qual é o sentido da mensagem? Justamente, o sentido é este: movimentar alguma coisa, gerar algum tráfego, sentir a ilusão de que alguma coisa está acontecendo, ou de que estaremos fazendo algo relevante se passarmos adiante uma mensagem que sequer lemos. Já minha humilde ilusão de revolta é não ler, nem repassar.

Outra ilusão de revolta e pseudo-engajamento que tem sido muito freqüente é classificar de fascista tudo aquilo de que discordamos. Tropa de elite é uma vítima disso. Não quero escrever agora sobre o filme, mas seguramente ele levanta diversas questões pertinentes. Curiosamente, quem ergueu a voz mais alto em protesto não foi a PM, esculhambada do início ao fim do filme, mas... os injustiçados maconheiros. Como??? Quer dizer que quem fuma é cúmplice do tráfico??? Que absurdo!!! Pois é: triste do país em que as verdades provocam indignação, e a hipocrisia é recompensada com o silêncio. É por isso que a nossa vida está assim.

Tuesday, October 23, 2007

Funeral Blues, de W.H. Auden







W.H. Auden (1907-1973), poeta e crítico inglês, foi a grande voz dos jovens intelectuais de esquerda dos anos 30. Sua poesia é sempre perturbadora, seja quando aborda temas sociais e políticos, seja quando fala de assuntos espirituais e de impulsos homossexuais reprimidos. Quando T.S. Eliot, na época editor da Faber & Faber, publicou a primeira coletânea de Auden, Poemas (1930), ele foi imediatamente reconhecido como porta-voz de sua geração. Auden foi amigo de Stephen Spender e Christopher Isherwood, com quem escreveu peças teatrais.

As ideias de Auden mudaram radicalmente com o tempo. Ardente defensor do socialismo e da psicanálise na juventude, na sua fase mais tardia a sua preocupação central passou a ser o Cristianismo e a teologia dos protestantes modernos. Em 1939, Auden mudou-se com Isherwood para a América, onde conheceu seu companheiro Chester Kallman. Com ele, escrevu libretos de ópera, incluindo The rake's progress, para Stravinsky.

O poema Funeral Blues foi escrito por Auden em 1936, como a Canção 9 do livro Twelve songs, e costuma ser citado como expressão exemplar de um forte sentimento de perda e de luto, individual ou coletivo. Representativo do controle extraordinário do verso e da habilidade na manipulação da métrica do autor, o poema ganhou popularidade internacional no filme Quatro casamentos e um funeral, numa cena em que o personagem Matthew homenageia seu companheiro morto. Funeral Blues foi musicado por Benjamin Britten. Segue o original e algums traduções, que mostram como é difícil o desafio de se traduzir bem boa poesia.

Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message 'He is Dead'.
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last forever: I was wrong.

The stars are not wanted now; put out every one,
Pack up the moon and dismantle the sun,
Pour away the ocean and sweep up the woods;
For nothing now can ever come to any good.

April 1936

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Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o piano e que o tambor sancione
a vinda do caixão com seu cortejo atrás.

Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Que as pombas guardem luto — um laço no pescoço —
e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.

Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto
viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;
quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.

É hora de apagar estrelas — são molestas —
guardar a lua, desmontar o sol brilhante,
de despejar o mar, jogar fora as florestas,
pois nada mais há de dar certo doravante.

(tradução de Nelson Ascher)
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Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Não deixem o cão ladrar aos ossos suculentos,
Silenciem os pianos e com os tambores em surdina
Tragam o féretro, deixem vir o cortejo fúnebre.

Que os aviões voem sobre nós lamentando,
Escrevinhando no céu a mensagem: Ele Está Morto,
Ponham laços de crepe em volta dos pescoços das pombas da cidade,
Que os polícias de trânsito usem luvas pretas de algodão.

Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Este e Oeste,
A minha semana de trabalho, o meu descanso de domingo,
O meio-dia, a minha meia-noite, a minha conversa, a minha canção;
Pensei que o amor ia durar para sempre: enganei-me.

Agora as estrelas não são necessárias: apaguem-nas todas;
Emalem a lua e desmantelem o sol;
Despejem o oceano e varram o bosque;
Pois agora tudo é inútil.

(tradução de Maria de Lourdes Guimarães)
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Parem já os relógios, corte-se o telefone,
dê-se um bom osso ao cão para que ele não rosne,
emudeçam pianos, com rufos abafados
transportem o caixão, venham enlutados.

Descrevam aviões em círculos no céu
a garatuja de um lamento: Ele Morreu.
no alvo colo das pombas ponham crepes de viúvas,
polícias-sinaleiros tinjam de preto as luvas.

Era-me Norte e Sul, Leste e Oeste, o emprego
dos dias da semana, Domingo de sossego,
meio-dia, meia-noite, era-me voz, canção;
julguei o amor pra sempre: mas não tinha razão.

Não quero agora estrelas: vão todos lá para fora;
enevoe-se a lua e vá-se o sol agora;
esvaziem-se os mares e varra-se a floresta.
Nada mais vale a pena agora do que resta.

(tradução de Vasco Graça Moura)
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Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Não deixem o cão ladrar aos ossos suculentos,
Silenciem os pianos e abafem o tambor
Tragam o caixão, deixem passar a dor.

Que os aviões voem sobre nós lamentando,
Escrevinhando no céu a mensagem: Ele Está Morto,
Ponham laços de crepe nos pescoços das pombas da região,
Que os polícias de trânsito usem luvas pretas de algodão.

Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Este e Oeste,
A minha semana de trabalho, o meu descanso de domingo,
O meu meio-dia, a minha meia-noite, a minha conversa, a minha canção;
Pensei que o amor ia durar para sempre: “não tinha razão”.

Agora as estrelas não são necessárias: apaguem-nas todas;
Emalem a lua e desmantelem o sol;
Despejem o oceano e varram a floresta;
Pois agora nada mais de bom nos resta.

(tradução de ???)
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Pare os relógios, cale o telefone
Evite o latido do cão com um osso
Emudeça o piano e que o tambor surdo anuncie
a vinda do caixão, seguido pelo cortejo.

Que os aviões voem em círculos, gemendo
e que escrevam no céu o anúncio: ele morreu.
Ponham laços pretos nos pescoços brancos das pombas de rua
e que guardas de trânsito usem finas luvas de breu.

Ele era meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste
Meus dias úteis, meus finais-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, minha fala e meu canto.
Eu pensava que o amor era eterno; estava errado

As estrelas não são mais necessárias; apague-as uma por uma
Guarde a lua, desmonte o sol
Despeje o mar e livre-se da floresta
pois nada mais poderá ser bom como antes era.

(tradução de ???)
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Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Impeçam os cães de ladrar com um osso apetitoso,
Calem-se os pianos e com ribombares abafados
Tragam o caixão, que as carpideiras chorem.

Que os aviões circulem gemendo sobre nós
Escrevendo no céu a mensagem Ele Está Morto,
Ponham fitas crepe nos pescoços brancos das pombas públicas,
Que os polícias de trânsito usem luvas de algodão preto.

Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Este e Oeste,
A minha semana de trabalho e o meu descanso de Domingo,
O meu dia, a minha noite, a minha conversa, a minha canção;
Pensava que o amor durava para sempre: estava errado.

As estrelas já não são desejadas; apaguem uma a uma;
Embalem a lua e desmanchem o sol;
Despejem o oceano e varram as florestas;
Pois já nada pode vir a ser bom.

(tradução de ???)
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Sunday, October 21, 2007

Sessão Coruja


Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças

(Fernando Pessoa)

Existe coisa mais linda que a Valentina?

O mundo que ele viu












Esgotado há décadas no Brasil, o livro de memórias de Stefan Zweig, O mundo que eu vi (Die Welt von Gestern, literalmente O mundo de ontem) é uma leitura fundamental. Zweig terminou de escrevê-lo durante seu curto exílio em Petrópolis, em 1942, quando a Europa estava em ruínas e os horrores da Segunda Guerra ainda estavam longe de terminar. Pouco depois se suicidou, deprimido. Para quem se interessar pelo seu período em Petrópolis, recomendo a leitura de Morte no paraíso, do jornalista Alberto Dines.

Por algum motivo incompreensível, Zweig é hoje pouco lido, mas é difícil exagerar a importância e a qualidade de sua obra. Suas memórias são povoadas por personagens decisivos da cultura européia, com quem conviveu, como Theodor Herzl, Rainer Maria Rilke e Sigmund Freud.

Zweig foi, por assim dizer, devorado pela História que tentou interpretar. Passou a maior parte de sua vida adulta fugindo. Privado repetidas vezes dos valores que lhe eram mais caros - a segurança e a liberdade - era um sobrevivente de uma era civilizada, que tinha com a cultura e as artes uma relação vital.

Seu drama e sua tragédia se confundem com o drama e a tragédia do continente europeu. É significativo que a eclosão da Primeira Guerra o pegue de surpresa, num jardim de Viena, com um livro nas mãos e uma orquestra tocando ao fundo. Subitamente, a música e a leitura foram interrompidas por uma brisa gélida: Francisco Ferdinando, o herdeiro do trono austríaco, era assassinado em Sarajevo. Era apenas o prólogo de um período sombrio, da ascensão da barbárie, da derrota da razão e do triunfo da brutalidade.

A elegância e a profundidade do texto são temperadas o tempo inteiro por dois sentimentos: o de fragilidade e o de privação. Não foi por acaso que Freud e Zweig foram contemporâneos: um e outro foram testemunhas diretas de processos históricos que revelaram a debilidade dos valores e das instituições da chamada civilização; um e outro entenderam na marra a força esmagadora que os impulsos destrutivos podem adquirir quando não são devidamente enquadrados e reprimidos.

Saturday, October 20, 2007

Friday, October 19, 2007

DNA e Racismo









Leio que o cientista James Watson, Prêmio Nobel de Medicina em 1962 por suas descobertas sobre a estrutura do DNA, se desculpou hoje pelas declarações infelizes que fez sobre a inteligência dos negros e o atraso do continente africano. Mas uma leitura atenta do artigo em que ele se retrata, publicado no jornal inglês The Independent, sugere que Watson pode ter-se arrependido das declarações pela repercussão negativa que tiveram, mas pensa exatamente o que disse (para quem não acompanhou a história: "Todas as nossas políticas sociais são baseadas no fato de que a inteligência deles [dos negros] é igual à nossa, apesar de todos os testes dizerem que não. (...) Pessoas que já lidaram com empregados negros não acreditam que isso [a igualdade de inteligência] seja verdade")

O artigo-retratação começa assim: "A ciência não é estranha à controvérsia. A busca de conhecimento é freqüentemente desconfortável e desconcertante. Nunca temi declarar o que acredito ser verdade, não importando o quão difícil seja. Isso, de vez em quando, me deixa em maus lençóis." Em seguida Watson pede rápidas desculpas, acompanhadas de um "Não foi o que eu quis dizer", fala do filho esquizofrênico e, no resto do artigo, defende a genética comportamental, isto é, aquela que afirma que seqüências de DNA têm influência direta no comportamento das pessoas - o que abre terreno para desdobramentos perigosos (ver o post abaixo): "A idéia de que algumas pessoas são más por natureza me perturba. Mas a ciência não está aqui para fazer a gente se sentir bem".

O assunto é mais complexo do que parece. O conhecimento científico deixou de ser absoluto: ele está associado a valores, projetos ideologias etc. A própria idéia de verdade científica já foi posta em questão. Pesquisas diferentemente orientadas podem chegar a resultados opostos sobre um mesmo tema ou objeto, dependendo da vontade de quem encomenda a pesquisa, mas, mais do que isso, de um ambiente geral que determina o que convém ou não ser pesquisado e dito. Em outras palavras: aquilo para o que é legítimo procurar uma "base científica".

É um avanço, em todo caso, que declarações como a de Watson provoquem hoje uma controvérsia internacional. Mas não foi a primeira vez que o geneticista fez comentários inconvenientes - a Folha de S.Paulo de hoje pinçou mais alguns:

-Sobre homossexuais
"Se alguém encontrar um gene que determine a sexualidade [de um feto], e uma mulher [grávida] decidir que ela não quer ter uma criança homossexual, deixe ela."

-Sobre obesos
"Sempre que você faz uma entrevista [de emprego] com pessas gordas, você se sente mal, porque sabe que não vai contratá-las."

-Sobre mulheres feias
"As pessoas dizem que seria terrível se nós tornássemos todas as garotas bonitas [por meio de manipulação genética]. Eu acho que seria ótimo."

Nada disso é aceitável vindo da boca de um cientista, mas quantas pessoas, intimamente, não concordam com pelo menos uma dessas idéias? O imperativo de se combater qualquer tipo de preconceito não muda o fato de que a vida real costuma ser dura para homossexuais, obesos e mulheres feias. Talvez a ciência devesse, sim, trabalhar para fazer as pessoas se sentirem bem, e não para reforçar sua infelicidade.

Acho que foi Einstein quem disse que é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito.

Thursday, October 18, 2007

A Al Qaeda é moderna?
















John Gray faz uma interpretação original e ousada do terrorismo contemporâneo em Al Qaeda and what it means to be modern (Al Qaeda e o que significa ser moderno), um livrinho com pouco mais de 120 páginas (há uma edição brasileira, lançada pela Record). Na contracorrente dos que enxergam em Bin Laden e nos atentados de 11 de Setembro uma regressão a valores medievais e um ataque à civilização ocidental, o autor defende a tese, algo polêmica, de que a Al Qaeda - tanto quanto os cartéis internacionas de drogas e as corporações de negócios virtuais - é um produto da modernidade e do Ocidente, da desregulamentação dos fluxos de capital e da globalização, fenômenos sem os quais sua existência seria inviável.

Além disso, o fundamentalismo islâmico contemporâneo compartilha com outros projetos radicais de transformação social do passado recente algumas características básicas. Gray lembra que os horrores do Nazismo e do Stalinismo foram cometidos em nome da crença numa sociedade melhor e na emancipação total do homem. Foram, desnecessário dizer, experiências desastrosas, com um custo monstruoso em vidas e sofrimento.

Mas, o autor argumenta, da mesma forma que os Gulags e as câmaras de gás foram acontecimentos tipicamente modernos (inconcebíveis antes do projeto iluminista), a crença dos neoliberais no livre mercado como panacéia para todos os males da humanidade também pode ter conseqüências terríveis. E o fundamentalismo islâmico teria em comum com o evangelho neoliberal a convicção de conhecer o caminho para a superação dos conflitos, o caminho para o fim da História. Desta forma, o Islã radical é, como o Nazismo, como o experimento soviético, como o liberalismo globalizado, um fenômeno tipicamente moderno.

Gray é particularmente convincente ao analisar o comunismo. O totalitarismo de Lênin e Stálin, afirma, não foi um desvio ou uma deformação do projeto marxista, mas sua realização levada às últimas conseqüências. A utopia bolchevique virou um pesadelo por se basear numa premissa equivocada do marxismo: a de que a principal fonte de conflitos entre os homens é a luta de classes, quando na verdade esses conflitos têm raízes mais profundas e complexas, ligadas a diferenças étnicas e religiosas, à escassez de recursos e ao permanente choque de valores entre diferentes culturas.

Em relação ao nazismo, Gray afirma corajosamente algo que a maioria dos historiadores escamoteia: apenas em retrospecto as idéias nazistas parecem absurdas e hediondas; na época, ela representavam a encarnação extrema de crenças, práticas e valores muito difundidos. O anti-semitismo era lugar-comum na Europa dos anos 30 - na Polônia e na Áustria, por exemplo, mais até do que na Alemanha. Cientistas e intelectuais respeitáveis, como H.G. Wells e G.B. Shaw, brincavam com a idéia de que a ciência poderia aprimorar a espécie humana.

Paradoxalmente, o sonho de revolucionar a sociedade e moldar uma nova humanidade está na raiz das maiores trágédias da modernidade.

Wednesday, October 17, 2007

Qual é o futuro da Europa?










Para o historiador Walter Laqueur, a imigração, as políticas sociais e o fracasso da unificação desenham um quadro assustador para o continente.

“Os últimos dias da Europa retrata uma incômoda realidade. Espero que este livro aumente a conscientização e provoque debates, e que se tenha a coragem de dar os passos necessários para lidar com os problemas da Europa”
Henry Kissinger


Nas livrarias 25/10:
Os últimos dias da Europa – Epitáfio para um velho continente, de Walter Laqueur. Tradução de André Pereira da Costa. Odisséia Editorial, 208 páginas, R$ 34,90

Em diversas capitais da Europa, mais de 50 por cento das crianças que nascem por ano já são filhas de imigrantes; mas cada vez mais mulheres européias decide não ter filhos. O que acontece quando uma baixa taxa de natalidade colide com uma imigração descontrolada? Na contracorrente das análises politicamente corretas, Walter Laqueur, um dos mais importantes historiadores da atualidade, critica a imigração maciça de populações da Ásia, da África e do Oriente Médio para os países europeus - sobretudo porque estas levas de imigrantes não buscam a assimilação nas sociedades européias, mas apenas se beneficiar dos generosos serviços sociais oferecidos por aqueles países. Isso acaba levando à multiplicação de guetos e ao aumento da xenofobia entre os europeus nativos. Este é um dos temas abordados de forma corajosa e polêmica em OS ÚLTIMOS DIAS DA EUROPA – EPITÁFIO PARA UM VELHO CONTINENTE, do historiador americano de origem alemã Walter Laqueur. Ele acredita que a Europa está atravessando uma crise de identidade sem precedentes na História.

Mas Laqueur, autor de mais de vinte livros consagrados sobre o terrorismo, o fascismo e o anti-semitismo, não se limita a apontar o impacto da imigração (sobretudo de muçulmanos) nas sociedades européias. A questão demográfica é séria, mas ainda mais grave é a crise de valores políticos, culturais e sociais que afeta o continente. Crise que se reflete na (e é resultado da) decadência do sistema educacional. Por exemplo, uma pesquisa de opinião revelou em 2005 que mais de 40 por cento dos muçulmanos britânicos achavam que os judeus são um alvo legítimo para ataques terroristas. Laqueur associa a crescente vulnerabilidade da Europa à fúria de minorias extremistas com o excesso de tolerência e autocrítica dos líderes europeus, cujas políticas fracassaram na integração e aumentaram as tensões sociais, em vez de diminuí-las.

No terreno da economia, a maioria dos países da Europa vem apresentando baixas taxas de crescimento há anos, o desemprego aumenta e a produtividade não cresce. Ao mesmo tempo, a carga dos benefícios sociais e trabalhistas vem se tornando insuportável para os governos. Desenvolveu-se, além do mais, um ambiente de aversão ao trabalho, com semana de 35 horas e férias prolongadas. A longo prazo, as políticas de bem-estar social afetaram a competitividade das empresas, geraram apatia econômica e demonstraram ser insustentáveis. Somem-se a isso tudo os impactos provocados pelas dificuldades do processo de unificação e pela instabilidade econômica da Rússia, e o resultado é assustador. Se não demonstrar capacidade de renovação, a Europa pode se transformar em pouco empo numa espécie de museu temático, de parque cultural jurássico, adverte o autor.

Baixa taxa de crescimento demográfico, alta taxa de imigração, políticas de bem-estar social dispendiosas e problemas na unificação. Nesse contexto, os desafios que a Europa enfrenta, adverte Laqueur com consternação, podem ser mortais. Na verdade, a Europa que ele conheceu profundamente já está desaparecendo. E aos que consideram suas análise excessivamente pessimistas, alarmistas e sombrias, ele lembra que os museus estão cheios de restos de civilizações desaparecidas.

O autor


Walter Laqueur escreveu mais de vinte livros, entre eles O terrível segredo, O herói solitário e O fim de um sonho, já publicados no Brasil. Foi fundador do Journal of Contemporary History, de Londres e diretor do Center for Strategic and International Studies, em Washington. Lecionou nas universidades de Chicago, Harvard, Johns Hopkins e Tel Aviv.

Sunday, October 14, 2007

O Bispo


Chegam hoje às livrarias os 700 mil exemplares - até onde eu sei, tiragem inicial sem precedentes no mercado editorial brasileiro - da biografia autorizada do Bispo Edir Macedo, O Bispo - A história revelada de Edir Macedo, de Douglas Tavolaro e Christina Lemos (Editora Larousse). Escolheram para a capa uma foto do Bispo atrás das grades, na prisão - uma escolha temerária, que associa a imagem do biografado à ilegalidade, mais que à perseguição injusta, o que deve ter sido a intenção do editor. Justamente por isso, muitas pessoas julgarão, com ironia, a capa perfeitamente adequada. De qualquer forma, imagino que os canais de distribuição próprios da Igreja Universal devem garantir o escoamento rápido dessa tiragem liliputiana, gigantesca num mercado em que a imensa maioria dos livros não vende nem dois mil exemplares. Mas as grandes e pequenas redes de livrarias, que querem mais é vender, também devem apostar nesse produto, e a Larousse não é um selo qualquer.

Por outro lado, é natural que O Bispo enfrente a resistência de inimigos poderosos. Poderosíssimos, eu diria. O livro receberá atenção da mídia? Será que vai entrar nas listas de mais vendidos? Se não entrar, pode ser um bom ponto de partida para se iniciar um debate sobre essas listas, que de termômetros neutros para aferir o gosto do público se transformaram em ferramentas de marketing poderosas e, portanto, em objetos de desejo de todas as editoras. Por isso mesmo, há dentro das próprias editoras quem compre centenas de exemplares de um título na semana do lançamento para forçar artificialmente a sua entrada nas listas e, conseqüentemente, atrair a atenção da mídia: a partir daí, tudo fica mais fácil, aumenta a boa vontade dos livreiros etc - e esta é apenas uma das ditorções a que as listas de mais vendidos estão sujeitas hoje, por mais sérias e bem intencionadas que sejam. As apostas são cada vez mais altas altas, há muita coisa em jogo: está valendo tudo para entrar nas listas.

Às vezes os espertos caem do cavalo, é claro. Foi o que aconteceu dois anos atrás com uma rede de livrarias que também era editora, que forneceu números inflados sobre as vendas de um título seu, uma reportagem sobre o Mensalão, para que ele entrasse na lista. A Veja descobriu e baniu a rede de sua lista de livrarias consultadas para a composição da lista. Talvez por práticas como esta, a tal rede, outrora importante, tenha entrado em triste e inexorável decadência. Como disse JFK, é possível enganar todo mundo durante algum tempo, ou parte das pessoas o tempo inteiro, mas não se engana todo mundo o tempo inteiro. Os maus podem se beneficiar de suas mentiras e falta de escrúpulos durante algum tempo, mas a hora deles acaba chegando.

Mas acabei fugindo do assunto. O que eu queria dizer é que seguramente nenhum dos 700 mil exemplares de O Bispo irá parar na minha biblioteca, até porque não tenho simpatia por biografias autorizadas (o mais interessante da história geralmente não aparece, é claro, exatamente por ser "não-autorizado"). Mas, correndo o risco de ser apedrejado, eu defendo o direito das Igrejas evangélicas à existência. E acho que, se elas cresceram tanto no Brasil, é porque cumprem uma função social e simbólica importante: dão sentido e dignidade às vidas de um verdadeiro exército de excluídos, que podiam estar roubando, podiam estar matando, podiam estar traficando, podiam estar no Bope, podiam virar políticos. Que se puna com o rigor devido qualquer ilegalidade que cometerem. Mas sem hipocrisia. Se pedem dízimo dos fiéis, talvez seja até barato pelo que estes recebem em troca. Muito pior é um Estado que arrecada impostos e não os devolve em serviços à população.

Não que minha opinião faça alguma diferença, nem que a Igreja Universal precise de qualquer apoio adicional: basta dizer que a rede de fast food Mc Donald's está presente em 118 países; a Universal, com 4.748 templos e 9.660 pastores apenas no Brasil, já se infiltrou em 172 países. Até em Israel o Bispo Edir Macedo está arregimentando fiéis em escala industrial. Outro dia encontrei o Affonso Romano de Sant'Anna, que tinha acabado de voltar de uma viagem a Tel Aviv, e ele me contou que ao lado do prédio onde participava de um debate sobre literatura, num auditório com platéia discreta, o Bispo Edir Macedo estava falando num templo abarrotado de gente. Efeitos da globalização.

De qualquer forma, do ponto de vista do mercado editorial, O Bispo será um "case" interessante de se acompanhar.

Saturday, October 13, 2007

Rabiscos (2)


Aquarela, 2007

Rabiscos


Desenho a carvão, 2007

Galbraith e uma nova era de certezas







Leio, na introdução de um livro antigo, mas fundamental, A era da incerteza, de John Kenneth Galbraith, que o propósito do autor era fazer um cotejo das grandes certezas do pensamento econômico do século XIX com a grande incerteza do momento em que ele escrevia (1977): "No século que passou, os capitalistas tinham plena certeza do êxito do capitalismo, os socialistas do socialismo, os imperialistas do colonialismo, e os dirigentes políticos sabiam que era seu dever dirigir", escreve Galbraith. "Muito pouca dessa certeza existe hoje em dia".

Trinta anos depois, os socialistas estão em crise de identidade, os imperialistas mudaram de estratégia, e os dirigentes políticos dirigem cada vez menos - aliás a política tem cada vez menos importância e é cada vez mais subordinada, justamente, à economia. Mas os capitalistas parecem ter recuperado sua plena certeza no êxito do capitalismo. A confiança hoje globalmente depositada no ideário liberal como único caminho viável para a sociedade é sem paralelos na História - o que se deve em grande parte à falta de um modelo alternativo convincente, é claro.

A não ser que se considere como alternativa viável(e há quem o faça) o requentado populismo de Hugo Chávez e Evo Morales. Quanto a Lula, quem acredita que ele ainda seja de esquerda? Leitura valiosa para quem quiser se aprofundar neste tema é A volta do idiota, de Plinio Apuleyo Mendoza, Carlos Alberto Montaner e Álvaro Vargas Llosa. que será lançado no Brasil em novembro e certamente será assunto de um post futuro. É uma espécie de continuação do Manual do perfeito idiota latino-americano, lançado dez anos atrás.

Etimologia das paixões


Os segredos por trás da língua

Nas livrarias:
Etimologia das paixões
de Ivonne Bordelois.
Tradução de Luciano Trigo
Odisséia Editorial, 176p., R$29,90

Ivonne Bordelois desvenda a história secreta das palavras que nomeiam as nossas paixões

O que palavras como amor, ira, inveja, cobiça e esperança têm a nos dizer? Por trás de seus sentidos aparentes — e dos significados cristalizados nos dicionários — as palavras têm uma vida secreta e uma história oculta. No caso daquelas que nomeiam as paixões, investigar o seu passado pode levar a descobertas reveladoras, arrancando de um esquecimento imemorial verdades surpreendentes sobre o ser humano e suas paixões. É este o empreendimento da lingüista e poeta argentina Ivonne Bordelois em Etimologia das paixões. Numa abordagem original e ousada, ela interroga a própria linguagem, enveredando pelas suas raízes mais remotas, mas sem jamais perder de vista a clareza e a leveza do texto.

A etimologia, nesse sentido, pode ser entendida como uma arqueologia da sabedoria coletiva submersa na língua, uma exploração destinada a encontrar tesouros escondidos em ruínas. Ivonne Bordelois consegue conciliar a ciência dos dicionários e a erudição dos estudos etimológicos numa reflexão clara e envolvente, proporcionando ao leitor uma viagem pelos labirintos da linguagem percurso enriquecido pela remissão a filósofos como Platão, Nietzsche e Espinosa. A autora acredita que a busca da origem de determinadas palavras — aquelas que exprimem idéias ou sentimentos fundamentais, que muitas vezes nascem de sensações primitivas ou mesmo corporais — pode levar à superação de bloqueios individuais e sociais e ao entendimento da nossa relação, como indivíduos e comunidades falantes, com o nosso passado histórico e com as vicissitudes da nossa própria experiência pessoal.

A linguagem se torna assim um espelho de nós mesmos e de nossa sociedade: recuperando significados reprimidos pela cultura ou pela ciência ou apontando desvios inusitados no percurso das palavras, Ivonne Bordelois passeia por múltiplos saberes — a lingüística, a filosofia, a psicanálise, a mitologia — iluminando e enriquecendo a nossa compreensão do mundo, de nossos valores e paixões. Ela mostra, por exemplo, como a ira e o delírio já foram paixões positivas, associadas aos deuses, antes de ser consideradas algo de ruim, e como a esperança, em contrapartida, surgiu como uma paixão negativa. Mostra como a associação entre o amor e o sofrimento é um fenômeno cultural e revela as origens remotas da felicidade e da tristeza. Por tudo isso, Etimologia das paixões é uma leitura fundamental.

Entrevista de Ivonne Bordelois ao jornal argentino Página 12

“Com este livro, vivi uma supresa atrás da outra”, afirma Ivonne Bordelois em antrevista ao Página 12. “A linguagem escapa de qualquer modelo de evolução genética molecular, ela é mãe e pai ao mesmo tempo. O homem não sabe como a palavra se inseriu na sua realidade; a palavra, que nos distingue como espécie, de certa forma ainda permanece inacessível para nós”. Ainda assim, com paciência e perseverança, Ivonne pesquisou definições e raízes de mais de vinte dicionários etimológicos e as cruzou com um vasto corpo de leituras — que incluem Platão, Espinosa, Freud, Nietzsche, Benjamin e Foucault — para demonstrar que existe uma história da palavra que se entrelaça com a história do ser humano.

Você observa que existe um tabu com a palavra “parente”, que significa originalmente “aquele que está parindo”. Como explicaria esse tabu?
IVONNE BORDELOIS: A palavra “parir” é muito forte, e é mais associada ao parto dos animais. Os idiomas em geral são muito cuidadosos em relação a certas atividades, como a de parir ou dar a luz, que é uma expressão bonita mas muito literária, ou a outras, ligadas à sexualidade. As sociedades reprimem a linguagem nas zonas de atividades fundamentais da vida, como a sexualidade. Estudos como o meu evidenciam que, mesmo julgando que somos muito liberados neste século 21, na verdade ainda somos muito reprimidos em relação a realidades básicas.

Por que você afirma que a paixão é moderna?
IVONNE: O que é moderno é o significado que damos à paixão. Quando falamos de paixão nos referimos a um movimento muito intenso, mas não a associamos, como ocorria em sua origem, ao siginificado de sofrimento e passividade. O espectro de sentido dessa palavra mudou muito: ela sempre existiu, mas tinha conotações rigorosamente diferentes. E é interessante analisar como ela vai mudando, e em que contextos se produziu o deslocamento dos primeiros sentidos aos atuais, que só secundariamente evocam a idéia de sofrimento, e de forma ainda mais remota a idéia de inação. Assim o sofrimento foi sendo apagado o sofrimento da passio latina.

A contraposição entre razão e paixão parece muito fecunda, quando se pensa na pulsão erótica?
IVONNE: Sim, efetivamente. Etimologicamente, o desejo sexual nunca tem a ver com o amor ou o prazer, está sempre vinculado à cólera — o que indicaria que na pulsão erótica existe um dinamismo que envolve a violência e a ira. Curiosamente não existem textos psicanalíticos que sugiram uma proximidade específica entre a ira e a pulsão sexual.

A autora

Ivonne Bordelois é poeta e ensaísta. Doutorou-se em Lingüística com Noam Chomsky no Massachusetts Institute of Tecnology e ocupou uma cátedra na Universidade de Utrecht, na Holanda. Recebeu uma bolsa da Fundação Guggenheim em 1983 e é autora de diversos livros, entre eles El alegre apocalipsis (1995), Un triángulo crucial: Borges, Lugones y Güiraldes (1999) e La palabra amenazada (2003). Em 2005 recebeu o Premio Nación-Sudamericana. Etimologia das paixões é seu primeiro livro publicado no Brasil.